O JARDINEIRO DO JORGE

Quem convive comigo sabe que transmito o conceito da O.M.S. sobre a saúde, desta forma: _A saúde é conseqüência do melhor equilíbrio entre o bem estar físico, psíquico e social. Isto porque não existem pessoas totalmente sadias, mas com um pouco mais de saúde, que as outras. Os motivos: poluição, indicadores sócio-econômicos e devastação do meio ambiente, por si só confirmam o que eu digo.

Acho pobre o papel de quem só medica; é preciso ensinar medicina preventiva, encorajar para o alcance de metas otimizadas, revoluindo (evoluir, revendo como foi feita a evolução) via estudo, perda do medo de errar, quando se tenta acertar, e aumento da auto-estima, melhorando a audácia, com prudência.

Claro está que esta meta não se obtém como um tratamento de uma gripe, mas pelo exercício da confiança que o profissional deve transmitir ao seu cliente, fazendo-se amigo, médico de confiança da família.

Infelizmente, esta meta vem sendo negligenciada pelos mestres contemporâneos, que ganham pouco, têm a saúde psíquica abalada pelas despesas diuturnas e eles terminam ensinando o básico exigido pelo currículo aos seus alunos.

Assim formam médicos preocupados com a rapidez no atendimento, que perdem a magnífica chance de serem médicos por inteiro, tornando-se meros instrumentos da ignorância mercantilista.

Creio que um médico voltado para a consecução dos ideais acima, pode ser comparado a um escultor, que se orgulha da sua arte final.

Por estes dias assisti ao filme "O jardineiro Fiel". Foi-me recomendado por uma cliente querida, que se disse maravilhada com a denúncia feita à indústria farmacêutica. Ao final da película tive a sensação de quem come um doce ruim, que já provara.

Corria a década de 80 e, como sempre estive afeito às pesquisas farmacológicas na clínica, muito bem orientado neste campo pelo Mestre Dr. Jorge Paprocki, fui convidado por um laboratório cujo nome, por questões éticas omito, para testar um novo antidepressivo.

O teste era duplo cego, onde nem o médico ou o cliente sabiam o que estava sendo administrado, exceto uma enfermeira de alto padrão que fazia os contrôles, e após um certo tempo, considerado satisfatório, as cápsulas, idênticas, eram trocadas. Uma tinha amido, a outra o princípio ativo. Testava-se, com isto, saber o diferencial, caso existisse, entre o princípio ativo e o placebo (substância inerte, mas carregada de sentimentos de esperança de cura, por parte dos dois, médico e paciente).

Após o período previamente combinado, com avaliações semanais, segundo uma escala de medição do estado depressivo, constatavam-se os achados terapêuticos da cápsula A e B. Se o princípio ativo fosse muito superior que o placebo, ele seria indicado como possível agente terapêutico e o tempo de uso, afirmaria ou retificaria a visão inicial. Assim é feito até hoje.

Jorge nos ensinara a Teoria da Negação: _ Quanto mais resiste uma tese à sua anulação, mais consistente ela se torna.

Assim, além dos quesito exigidos pela pesquisa, procuramos submeter nossos clientes a um Hemograma (avaliação dos componentes do sangue).

O princípio ativo foi de pronto, percebido ser o componente da cápsula B. Deixava o cliente "ligado", ansioso, insone e, o que é pior, baixava em curto prazo os glóbulos brancos, ao fazermos o hemograma controle.

Na data aprazada, veio ter conosco o diretor científico do laboratório, que num voto de confiança, nos pagava antecipadamente, à entrega dos resultados, que ao serem lidos, causou-lhe uma reação de inquietação: "Doutor, isto não pode acontecer, deve ter havido algum engano". Mostrei a ele os prontuários, os resultados de hemograma e conclui dizendo que o produto era um timerético (estimulante) e não um timoléptico (antidepressivo), com o agravante, de causar uma leucopenia: inibição da medula óssea (tutano no linguajar comum) na produção de glóbulos brancos.

O diretor me garantiu, que o trabalho não poderia ser publicado, sob pena de prejudicar o lançamento do remédio no comércio. Retruquei: "E a verdade?" Resposta: "Os gastos com a pesquisa são muitos, impossível parar agora!" Contra-argumentei: "Eu não o receitarei e irei divulgar, por conta própria, o trabalho!".

Despedimo-nos e três semanas depois eu estava na clínica, onde prestava assistência, quando recebi a notícia de uma enfermeira: "Tem uns homens aí, querendo falar com o senhor. Um deles é aquele que esteve aqui outro dia. Traz consigo um da fala estrangeira...". Acabava de receber a visita do alemão Herr Diretor Científico Internacional do Laboratório em questão.

Tentou botar, via intérprete, ventilador na minha farofa, mas aluno do Paprocki não se intimida e acabei devolvendo o vento no seu rosto. Quando viu que não conseguia pela intimidação, convidou-me a participar na Alemanha, de um Simpósio sobre "depressão mascarada", onde eu apresentaria um trabalho sobre o assunto e ouviria falar sobre os trabalhos feitos com o medicamento, que eu rejeitara. Agradeci, fingindo comoção e dizendo que não iria, pois a época era de inverno rigoroso na Alemanha e eu detestava, como detesto, viver em locais de neve. "Soy latino, de sangre caliente!" (e com vergonha na cara).

Cerca de trinta dias depois, o Diretor Científico Brasileiro me ligou e pediu desculpas em nome do Herr, pois encontraram nos EE.UU. os mesmos dados que os meus e o produto fora interditado pelo "Food and Drugs Administration". Aceitei e agradeci a gentileza do cavalheiro, fato este, diferente do que aconteceu ao Jardineiro Fiel, que conservando sua dignidade, denuncia de forma dramática a canalhice de um laboratório inglês.

Desde aquele episódio lamentável, continuo pesquisando lançamentos novos, mas jamais os venderei a laboratórios. Estas pesquisas só interessam à satisfação da minha dúvida. Isto porque não existem substâncias inocentes, desprovidas de efeitos colaterais. Duvida? Experimente tomar um litro de chá de erva-doce em curto prazo e verá o que digo.

Não tento, com este artigo, me equiparar ao personagem do filme: fui homenageado com o pedido de desculpas, mas presto-lhe minha humilde reverência: eu sempre pensei que meu trabalho deveria ser o de um escultor, que ajuda o cliente a erigir sua própria persona. Daqui pra frente serei um jardineiro ainda mais gentil, em busca da otimização da muda e agradecido ao Jorge, por mostrar-me o modo correto.

Por isto digo a ele: "Você me tranasformou no Jardineiro do Jorge!"

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