Uma lição de bondade

Dois dias passaram sem que João tivesse conseguido arranjar alguns trocados para comprar pães e alimentar seu filho. O pobre homem já pensava em cometer ilicitudes. O garoto, de três anos, já estava doente e teve de ser internado. Desde que perdeu a esposa, quando o filho nasceu, João não conseguiu mais se estabelecer. Era como se o mundo fosse uma grande casa com a porta trancada e João não encontrava a chave para abri-la. João, totalmente febril e fraco, levou o pequeno Dudu ao hospital. Esperou quatro horas para ser atendido, mal agüentava o peso do filho sobre os ombros. Ele sentiu-se incomodado quando o filho foi preterido do atendimento por uma criança de outra cor. Aquilo machucava João, não parecia poder fazer nada para evitar aquela dor, não poder dar uma vida digna para seu bem mais valioso lhe cortava o coração. O médico chegou e examinou Dudu. O menino precisaria ficar em tratamento, estava muito frágil, dizia o médico, questionando se João havia o alimentado. Nervoso, João começou a chorar para o jovem médico que examinava a criança. O recém-formado pediatra pediu que João tivesse coragem, perguntando se ele precisava de ajuda. Acostumado a estranhar generosidade, João apenas acenou com a cabeça. Dudu permaneceria hospitalizado por três dias na casa de saúde, tempo em que João realizou serviços de carpinteiro ao médico que atendera ao filho. O dinheiro que recebeu pelo trabalho possibilitou que João reservasse alguns itens alimentícios em casa. No dia de deixar o hospital, Dudu sorriu ao ver o pai, com uma aparência totalmente diferente de dias atrás. Era como se ele também tivesse se recuperado de alguma patologia. Carlos, o médico que atendeu João e seu filho, entregou a criança aos braços do pai, acrescentando que, se João se empenhasse em estudar e trabalhar poderia lhe garantir uma moradia e manter o serviço que vinha desempenhando. De repente, aquela enorme porta começava a se abrir à frente de João e ele sentia-se impelido a seguir em frente, parecia estar sendo seguro pelo medo ou receio, sentimentos comuns a alguém que aprendeu a sofrer antes de viver. Mas João era um batalhador e não servia para burro, aceitou a oferta do médico e dedicou-se ao trabalho e estudava enquanto embalava o filho, à noite, depois de um dia cansativo. Esporadicamente, o médico o convidava para conversar, à lareira, nos dias em que não estava de plantão. João descobriu que a busca pelo doutorado em pediatria de Carlos havia sido uma árdua batalha, o jovem superou a perda dos pais em uma tragédia e conseguiu o sucesso após concluir o ensino básico em escola pública. Carlos era uma fonte de inspiração a João, pela sua inteligência e perseverança, mas principalmente pela bondade em ter acolhido ele e seu filho, ato que João não compreendia.

Dez anos depois, o médico viria a falecer, assassinado dentro do hospital por um rapaz que lhe tirou alguns reais. João não trabalhava como carpinteiro mais, havia concluído o curso de enfermagem, e Dudu estudava em uma das melhores escolas da cidade. No dia do assassinato, João havia reencontrado seu benfeitor tomando café por acaso. Só tiveram tempo de cumprimentar-se, e João agradeceu pela generosidade de Carlos por mais de três anos, enquanto trabalhou para ele. Carlos respondeu que a vitória era de João, que fez com que Dudu se tornasse um “bom rapaz”. Despediram-se rapidamente, pois Carlos teve de salvar a vida de uma criança que havia sido atingida por uma bala perdida. Ironia do destino, após trazer um ser de volta à vida, Carlos teria a sua ceifada.