A Aldeia de Tolstoi

Caríssimos,

Carlos Felipe Moisés, lamentou uma constatação no Mapa Cultural Paulista: a ausência de cor local. Disse, sem citar Tolstoi, que todos os grandes escritores começaram falando de sua aldeia, para depois atingir o universal. É uma belíssima idéia, mas como eu tenho um espírito de contradição, escrevi uma crônica mostrando que não penso bem assim.

Aliás, faz mais de 40 anos que Marshall McLuhan criou o conceito de Aldeia Global. Eu nem precisaria ter escrito a minha crônica: não tem sentido falar da minha pequena aldeia depois de Marshall McLuhan.

Escrevi para falar de literatura, que é linguagem, que é forma.

Esta apresentação é uma síntese da minha crônica – A Aldeia de Tolstoi, que vocês podem ler em www.poesiacronica.blogspot.com - ou aqui:

É mais do que conhecida a frase de Tolstoi: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. Verdade que frases são frases, valem mais pelo efeito que causam do que pela verdade do que dizem. Há quem não atina com essa evidência elementar e quer fazer de uma assertiva assim banal, só porque de Tolstoi, verdade universal. Todos os grandes autores cantaram primeiro sua região, apostrofam. Toda obra deve ter cor local. Como se fosse tão simples assim.

À primeira vista, é sugestiva a idéia. Drummond cantou Minas e Itabira. Murilo mostra bem sua mineirice. João Cabral é a terra seca de Pernambuco. Guimarães Rosa é Minas. Machado de Assis? Pois é, Machado pintou milimetricamente o Rio de Janeiro, mas diziam que ele não tinha cor local. O que é mesmo essa cor local? Cecília Meireles era outra filha do Rio de Janeiro – que não aparece em sua obra.

Cecília nasceu universal. Seu livro “Viagem” foi a primeira obra modernista sem cor local, sem as tintas do nacionalismo verde-amarelo. Foi a primeira obra aceita pela Academia Brasileira de Letras, a primeira a cruzar o Atlântico. Cecília nasceu enorme e universal, sem cantar a sua aldeia.

Disseram que a sua poesia tinha mais sabor português. É pouco. Tinha sabor universal. Os grandes temas da poesia de todos os tempos, num tom, numa musicalidade, que poderia ser de qualquer lugar e de todos os lugares. Por que ninguém diz que Cecília Meireles é o maior poeta brasileiro? Por que era mulher, não era poeta, mas poetisa. Por causa apenas de nosso machismo.

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”, escreveu Fernando Pessoa, que não começou por pintar a sua aldeia. O quê? Você me diz que a sua aldeia era Portugal? Talvez, mas Fernando Pessoa ficou grande por tratar grandes temas de maneira grande, invulgar, particular e universal – e não por tratá-los à maneira portuguesa.

Concordo que é muito interessante a idéia: “começa por pintar a tua aldeia.” Foi por isso que me tornei poeta. Eu estudava no seminário, em Rio do Oeste, SC, e por acaso me caiu nas mãos um livrinho, “Os Simples”, de Guerra Junqueiro. Nesse livro, Guerra Junqueiro pinta a sua aldeia, eu decidi pintar a minha. Descobri que poeta não era uma entidade abstrata, mas um homem que tem sangue e terra nas veias, como eu. Ele falava das coisas que eu conhecia, árvores, animais, gente pobre da roça. Bastava falar das coisas que eu conhecia, para ser poeta.

Fiz meu primeiro poema: “A Figueira”. Compreendi de imediato que me faltava muita coisa: dominar a linguagem, trabalhar a linguagem, conhecer a vida com a linguagem. Como se eu já soubesse o que é literatura.

Pouco depois, conheci o mar. Encantou-me, fascinou-me, maravilhou-me. Foi o encontro com o milagre da beleza e do mistério. O sentimento do eterno e da finitude. Foi um chute no estômago da alma: instalou-se o caos primordial. Estavam definidos os meus grandes temas.

Até hoje, falo da terra a que estou ligado como uma árvore, pelas raízes, e do mar, a que estou ligado pela alma. As minhas imagens têm seiva das árvores, dos animais, dos homens que conheci, e têm água e sal e sargaços do mar maravilhoso, enigmático, efêmero e eterno. “No princípio, Deus pairava sobre as águas.” Antes de haver o mundo, havia as águas. Havia o eterno, o efêmero foi criado depois.

A minha aldeia? Faz tanto tempo que nasceu a idéia de Aldeia Global, que dá vergonha exigir que se fale de uma minúscula aldeia. Que se mostre cor local. Alguém pode me dizer qual é a cor da Aldeia Global? A maioria dos poetas cantou a sua aldeia, mas já morreram. Os poetas de hoje precisam cantar o mundo. Eu continuo a cantar a minha aldeia, mas estou deslocado, desfocado, errado. Tolstoi cantou a sua aldeia, Shakespeare também, mas morreram. Hoje não existem aldeias, mas a Aldeia, o mundo-universo.

Quem sobrevive é o homem, enquanto forma de linguagem.

Shakespeare e Tolstoi sobrevivem além da morte porque criaram linguagem, não porque cantaram sua aldeia. O que ficou deles é o universal.

Todas as teorias são belíssimas enquanto teorias. Literatura é linguagem. Ou você cria linguagem ou ficará sonhando em cantar a sua aldeia. “Todos cantam a sua terra/ Também vou cantar a minha.” É bonito, mas se eu criar linguagem, farei literatura, poesia universal. Não porque cantei a minha terra, mas apesar disso.