SALÃO DE BELEZA - OUTRA OCASIÃO

SECUNDO: Conforme narrativa anterior, foi triste minha experiência no Bela Sereia, assim tornei ao hábito de meu pai, freqüentar barbearias. Dizem, a experiência e o povo: Quem fala demais dá bom dia a cavalo. No caso presente diga-se : Quem fala demais derrubou o Império, controla a República dos homens e dos fenômenos ditos sobrenaturais. Como alcancei tal conclusão ? Foi assim :

Meu pai era vaidoso, seus cabelos não eram lisos,( anelados e negros), quinzenalmente levava-me ao Salão Paulista, que ajustassem “na máquina” o pixaim( meu, claro! ). Carapinhas auricolores: “de anjo” dizia-se.

No sofá ele experimentava um transe, sumido em pensamentos, cochilos... sonâmbulo, respondendo aos companheiros presentes e aos dos sonhos, desligado.

Em casa :

- Mas Assis, o cabelo do menino tá curto, não precisa cortar !

- Alisa, afina !

Eu, sempre na sola. No colégio, um horror. Mamãe desconfiou, alguma mulher. Fiquei atento. Não, nenhuma.

Os donos do Paulista, Barraria e Cabelo Bom, eram tipos circunspectos, ritualistas, trajando branco, rígido asseio e cabelos na seda brilhantina. De Salão apenas o nome pois era só mais uma barbearia da qual eu não alcançava o apelo: Revistas antigas ? (A edição n° 1 do Cruzeiro ainda circulava por ali). Manchetes antigas ? ( Morte de Tancredo; Revolução de ’30;Guerra do Paraguai; assassinato de Abel por Caim ? ).

Gosto à pilhéria ? (Ali se publicava o que acontecera e o que aconteceria). Não. Meu pai era sério.

Fui estudar na Capital. Papai juntou-se aos seus. Fui-me embora mas ... nas férias... pelos subúrbios picoenses avistei a fachada do Paulista, transplantada na Trizidela, favela, de todas a mais.

- Entro ? Não entro ? Meu cabelo está curto.

- Voltou pra tirar a meia sola, menino ? (Entrei) Barraria sorriu me reconhecendo. À outra poltrona Cabelo Bom (as madeixas negras d’outrora repetidas agora pela tintura ).

O radinho virou uma televisão de 14 polegadas em preto e branco onde Color, topetão escovado, costeletas acentuadas, defendia-se.

- Tintura quaternária, cai.335 votos pelo “Impixi”.

- Como , Seu Barraria ?

Não me ouviu.

- Serviço bem feito. Ajuntou Cabelo Bom. Mas capricho mesmo foi no de D. Pedro II.

- Do Imperador foi serviço completo : Barba, cabelo e bigode ! Na França, seria guilhotina.

Voltei a freqüentar o Salão Paulista, agora por amizade, atento às conversas intricadas sobre os cortes de cabelo dos líderes mundiais, às reticências subjacentes.

Um dia, ao som de Lindomar Castilho no Bar da Rosa, estabelecimento que mudara de dona 15 vezes mantendo o nome, já em braços etílicos contaram-me que eram Grão-Mestres da Ordem Universal Dalilena. Recebiam mantras do próprio Ramsés. Já modificavam a natureza ( chuvinha fora de época, abrir uma porta sem tocá-la ) e iniciavam-se a modificar o destino das pessoas.

Gargalhei, cheio de ironia .

-Isso é perigoso ! Afirmei após o acesso de riso...

- Viu o placar do “Impix” ? Não ? Pois veja ! O Imperador caiu por obra de Dalilo Décimo, cabeleireiro da Corte que decidiu pela queda do Império. E essa tintura do Color, obra do Dalilo Quinze, resultou na sua queda. São poderes usados para o bem, meu filho, só para o bem ! Afirmou Cabelo Bom.

- Vou fazer concurso pro Banco do Brasil, por que não experimentam o mantra em mim, quem sabe não sou aprovado ?

- Venha n’outra sexta. Até lá não fume, não beba e nada de mulheres.

Sexta lá fui, não pelo mantra, mas pra bebermos e prosseguirmos a conversa mística que me intrigara.

- Senta aqui !

- Meu cabelo está curto !

- E não está sempre ? Retorquiu Barraria e todos sorrimos.

A máquina comia então deu-se o torpor ... meus ouvidos foram se esquecendo, esquecendo, esquecendo, só lembravam de minha respiração transformada numa cachoeira de luz. Uma pedra longínqua caiu na superfície aquática, chegava-me em ondas, como um eco, aumentando, aumentando, como voz familiar... sim... era a voz de Barraria... misturada à do papa... à de meu pai... à do bispo... Pavaroti... um coro de milhões. Achei-me numa pirâmide que rescindia a alho diluído no fresco de uma manhã, o assobio cristalino dum canário às margens do Guaribas... nas abas do Nilo... Acordei com uma grande bisca dada por Barraria que sorriu e disse:

- Serviço completo. Primeiro colocado, ouviu ?

Sou Católico e embora meio revoltado na época com a morte prematura de meu pai, não estava disposto a largar a companhia segura de Cristo. Mas fiquei confuso, será que meu pai tivera aqueles transes ? Será que conhecera a Ordem Universal Dalilena ? Não busquei mais a resposta, mas fiz o concurso do Banco e ... resultado...

- Marconi, você foi o quinto colocado... Quinto, ouviu, em meio a quinze mil candidatos. Parabéns !

Respirei aliviado... Sorri das asneiras : “- Serviço completo. Primeiro colocado, ouviu ? “ Toma ! Barraria, impostor ! Bom amigo, místico meridiano e péssimo barbeiro.

A poeira assentou e comecei a memorar idas ao Salão Paulista. Estabelecendo causa e efeito, ponderei que eu era medíocre demais pra sozinho galgar um quinto lugar. Ponderei que não cumprira as abstinências indicadas por Barraria. E, como ia fazer o vestibular para Direito em três faculdades, retornei.

- Vou prestar vestibular pra Direito, quero o corte essencial, Barraria !

- Só Cabelo Bom ! É que a gente tem direito a dois mantras cabais na vida, os meus já foram !

A máquina mordia e eis - me em transe : Reduzi-me, caindo, caindo até o diâmetro do átomo, até virar a coisa-tudo, justa, numa só, todas as consciências, pensamentos e o saber, depurados no ovo original. Bisca e, dois meses depois :

- Parabéns, Marconi ! Aprovado nos três vestibulares.

Casei-me, tive filhos, terminei meu curso, trabalho no Banco. Ano passado de férias em Picos, busquei o Salão Paulista, queria entrar para a Academia Brasileira de Letras.

- Não é aqui não, Moço, é no Centro !

Localizei-o facilmente, mas ao entrar deparei-me com um Salão de Beleza: cabeleireiros delicados, cabelos tipo Chitãzinho e Xororó, tiara na cabeça, secadores , manicuras, tudo muito limpo e claro.

- Este salão não é mais de Barraria e Cabelo Bom ?

Gargalharam. Nunca houvera um Barraria e um Cabelo Bom em Picos. O Salão Paulista nunca saíra da Getúlio Vargas .

Confuso, perquiri aos meus familiares. Não, ninguém conhecera os tais, nem o Bar da Rosa.

Marconi Barros
Enviado por Marconi Barros em 17/04/2008
Código do texto: T949349