Anti-Vida

Os dias são longos e as noites, frias. Os dias são cheios e as noites, solitárias, repletas de sonhos desfeitos, desmanchados como o orvalho nos primeiros vestígios de um novo dia. Um novo dia, uma nova desesperança. As ações, mecanicamente feitas, são as mesmas, o negativismo, persistente, é o mesmo, o mecanismo de defesa - ninguém tem acesso ao interior - é o mesmo. Tudo ocorre na exata mesma freqüência, sem questionamentos, sem interrupções. Uma constante, uma eterna constante.

Nota-se que, a partir daí tudo mudará, erroneamente. Algum tipo de clichê que transformará a vida como se conhece para sempre, influenciando toda a humanidade que, partindo desse estopim, trabalhará duro para mudar o mundo, empurrando a infelicidade e monotonia para um passado distante, virando mito, agora apenas povoando e assustando a mente inventiva das perfeitas criança do perfeito novo mundo. Uma idéia errada que se forma sobre a vida porque, até mesmo os pequenos desvios entre os longos dias e as frias noites são meras passagens, eventos efêmeros que virarão passado, sonhos desfeitos na calada da solitária escuridão.

Palavras não produzem qualquer repercussão, saem frias e vazias, falsas e inutilmente bem colocadas. Imagens tornam-se disformes, abstratas. Tudo é muito intocável, indiferente, desimportante. Emoções não são sentidas, nem ao menos quistas, mas imaginadas, projetadas e deixadas num canto distante, inalcançável, incogitável. Sentimentos são idéias vagas, rarefeitas, que não sobrevivem sem alimento diário e atenção. Sentidos mal apresentam, caem em desuso, tornam-se obsoletos.

Não há muito o que fazer agora. Afinal o pôr-do-sol é apenas o fim de um dia, as estrelas são apenas rastros da infelicidade que se escondem na escuridão de um universo inexplorado, a lua é apenas um reflexo, o mar é apenas uma combinação química, assim como tudo o que poderia ser bonito. A vida é um existência desprezível. Na verdade não é vida, é a existência desprezada, robotizada, é a preguiça de sentir, a incapacidade de ser, o não-querer. Uma existência falsa, manipulada, induzida, fadada à indiferença, à mortalidade, à descrença, desgosto, amargura.

Um leito de morte, o fim apenas. Cruelmente tem-se essa descrição do que ser e do que querer. Foi? Quis? Correu, fugiu, enclausurou-se, escolheu-se o jeito fácil, a saída mais próxima. A porta abriu facilmente e fechou. À prova de sons, cheiros. Impermeável. Acabou ali sem nem ao menos tentar voltar. A força havia se esvaído, a vontade perdida em algum ponto da mísera existência, oxigênio era inútil, a respiração pateticamente desesperada, mente inundada de não-memórias, pulmões falham, olhos fecham.

Falha biológica. Não se pode caracterizar como fim algo que não aconteceu, que não foi. Não foi, não quis ser, não fez diferença, não interferiu, não chocou, não mudou, sem questionamentos, sem interrupções. Uma constante, uma eterna constante.

Júlia Schneider
Enviado por Júlia Schneider em 17/04/2008
Reeditado em 12/03/2013
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