Viver sobre duas rodas

A história da bicicleta é cercada de mitos, mas a notícia que me pareceu mais plausível remonta ao século XVIII francês como o berço da invenção do então chamado “cavalo de duas rodas”. Cerca de cem anos depois, também na França, surgem as primeiras ciclovias, uma medida de planejamento governamental para uso racional de bicicletas, charretes e outros pequenos veículos em circulação pelas ruas, vielas e estradas francesas. De alguma maneira, podemos dizer que a invenção da bicicleta trouxe não somente uma mudança de hábitos – de saúde e de transporte – mas, em algum sentido, os fundamentos principais que norteiam ações públicas no que se refere ao uso das vias de passagem. Em outras palavras, o advento da bicicleta provocou as autoridades francesas a pensarem estratégias de racionalização do tráfego de veículos.

Eu tenho lembranças de quando aprendi a andar de bicicleta. Eu acho que eu e minha irmã Bianca tínhamos ganhado bicicletas de Natal, e meu pai e minha mãe fizeram algum esforço para que eu, principalmente, aprendesse a andar. Você sabe, não sou daquelas que têm habilidades motoras ou senso mínimo de localização. Talvez por isso ande eu de bicicleta quase sempre sem compromisso até mesmo com o destino final, pelo puro prazer. Isso já é um avanço, saiba – eu tenho amigas que jamais aprenderam a arte do equilíbrio sobre duas finas e oscilantes rodas.

E há quem aprecie o esporte do pedal, considerados dos mais belos e emocionantes por quem o pratica. Na cidade de PL, inclusive. Não há como negar a graciosidade das bicicletas, um veículo que só funciona integrada mesmo ao corpo de quem as utiliza. Há quem use até a metáfora para dizer dos desafios da vida mesmo. Algo como “sem pedalar você cairá”. Há também que as utilize de diferentes formas: andando sem as mãos (uma coisa que jamais consegui fazer, embora tivesse tentado), com alguém na garupa que também pedala para você, sentado ao contrário... enfim, é tão variada quanto sua aerodinâmica permite.

Também acho que não há veículo tão democrático e ecológico numa cidade do que a bicicleta. Não polui, faz bem à saúde e não ocupa espaço significativo no já conturbado ambiente urbano. Além disso, há bicicletas vendidas a preço módico. Não é ocasional, portanto, que sejam freqüentes os roubos de bicicleta: ela não deixou de ser um objeto de desejo e propriedade de muitos, mesmo com o advento das motos, supersônicos e outros bichos mais.

E há quem sonhe com peripécias sobre bicicletas, como Bianca Alves, jornalista de O Tempo, que quer fazer o trajeto de PL a BH de bicicleta. E, veja, ela espera por adesões.

Mas o fato é que o centro da cidade de Pedro Leopoldo, Minas Gerais, já não é mais o mesmo: carros, motos, skates, estacionamento de ambos os lados, trânsito de ônibus e até deslocamentos de cavalos vez em quando competem com as bicicletas. Os motoristas de automóveis diriam que as bicicletas é que atrapalham os carros, mas eu não penso dessa forma. Elas são maioria. Calcula-se que cerca de 20.000 exemplares, número suficiente para prevermos pelo menos uma ou duas por residência. Não há veículo mais utilizado em nossos registros nos últimos anos. Mas, ao invés de estimularem o uso responsável, o que parece é que alguns gestores querem mesmo é bani-las do espaço urbano, seja porque as ignoram seja também porque planejam o trânsito de forma a favorecer a circulação dos automotivos.

Volto a lembrar – em tempos de escassez de petróleo e até de víveres é bom que recomecemos a pensar em nossos hábitos de vida, prevendo o uso de transportes coletivos quando necessário, mas privilegiando o uso racional e agradável desse veículo aerodinâmico.

Por isso me encabulo que os gestores do trânsito não tenham efetivamente ainda encontrado fórmula para ordenar de maneira inclusiva e democrática o trânsito da cidade com vistas a favorecer o uso responsável e saudável da bicicleta, utilizado por milhares de mulheres e homens que dele se servem para ir diariamente aos seus locais de trabalho, lazer e consumo.

Há alguns alunos que têm dificuldade em compreender que tipo de lições poderíamos aprender, por exemplo, ao estudar eventos como os da Revolução Francesa. É porque nem mesmo as mais básicas lições dos revolucionários – como a de que é necessário o exercício da racionalidade ao compartilhar a vida numa cidade – foram ainda aprendidas pelos nossos gestores, aliás, pouco ou nada revolucionários no sentido de que nos falavam alguns falecidos iluministas.

Júnia Sales
Enviado por Júnia Sales em 27/04/2008
Código do texto: T964465
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