Tu és pó e a o pó voltarás - crônica sobre o cimento

A leitura é como viagem. Cada vez que voltamos ao texto, encontramos nova paisagem, novos personagens e cores ainda não vistas. É certo se as paisagens mudam, mudamos nós também a nossa percepção. Disso resulta que todo texto pode nos oferecer nova surpresa, porque diferentes estamos a cada dia. Esse princípio da transformação, se vale para nós, leitores, vale mesmo e também para os textos em diferentes contextos. Mesmo que os textos sejam os mesmos, se lidos e interpretados em diferentes contextos, transformam-se em outros textos. O tempo, os sujeitos e suas novidades, portanto, são capazes de produzir novos significados. Por outro lado, lembremos que há textos e textos. Alguns são esquecidos com o tempo, porque não possuem qualidades interpretativas para outras gerações. Perdem-se na garganta do tempo. Outros, contudo, parecem novíssimos embora tenham mil, dois mil anos ou mais. Esses são os textos clássicos, aqueles que sobrevivem ao tempo, embora sejam capazes de acompanhar o ritmo das transformações pelas quais as sociedades passa. São, então, os textos que podemos ler em qualquer época e lugar – com eles sempre se aprende um pouco mais.

Foi assim que nessa semana me deparei com um dos primeiros textos da Bíblia lidos em minha infância: “Tu és pó e ao pó voltarás”. Assombrada pelo aumento da poluição do ar em Pedro Leopoldo durante o dia, abri o texto bíblico à noite para a reflexão final do dia. E eis que vejo a tal máxima cristã à beira da cabeceira. Nada poderia ter maior poder de explicação do que vivemos em Pedro Leopoldo do que essa máxima. Embora evidentemente utilizada aqui em sentido metafórico, a idéia de um retorno ao pó não deixou de povoar a minha mente naquela noite e nos dias subseqüentes, em especial por conta das idas e vindas a médicos e farmácias dos últimos tempos em razão de crises alérgicas.

Se essa é uma sensação apenas corriqueira – de que o que respiramos na cidade é praticamente pó – ela pode ser complementada pela visão noturna de um canudo de pó que fica à mostra nas chaminés deste povoado. Não é também necessário ter lentes especiais para verificar que uma quantidade substantiva de pó visita nossas casas, narinas e noites de sono a cada giro da Terra.

Mas, saiba, eu não sou daquelas que fica a ler textos apenas para me assombrar à noite. No imediato dia seguinte, procurei por informação a respeito da qualidade do ar na região e também da atividade das cimenteiras da cidade. Desse pequeno investimento de um dia localizei um artigo publicado nos Anais do II Encontro Nacional de Pós graduação em pesquisa em ambiente e sociedade, em Campinas, em 2004, com o título “Combustíveis e riscos ambientais na fabricação de cimento: os casos na região do Calcário ao Norte de Belo Horizonte e possíveis generalizações”, de autoria de Auxiliadora Maria Moura Santi e Arsênio Oswaldo Seva Filho. Desse artigo, retirei três trechos que deixo ao leitor e à sua própria capacidade de interpretação. E ação, quem sabe... Afinal, ainda não voltamos ao pó verdadeiro, embora estejamos imersos em um tipo de pó nada bíblico há anos na cidade.

Estão reproduzidos abaixo. Ressalto apenas, por último, que antes da escrita deste texto, para o qual um título bíblico não seria em nada coerente a princípio, tentei abordar uma das principais empresas cimenteiras da região, a Camargo Corrêa. Para meu espanto, não há registro no nosso catálogo telefônico de tal empresa e o número conseguido por mim no serviço 102 não atendeu durante todo o dia de escrita deste (36603533).

Desejo-lhe uma boa leitura, embora não possa te desejar uma boa viagem ou uma boa noite de sono.

Trecho 1

“Das substâncias orgânicas poluentes possíveis de serem geradas no processo de fabricação de cimento, acetaldeído, benzeno, formaldeído, hexaclorobenzeno, naftaleno, dioxinas e furanos e metais pesados arsênio, cádmio, chumbo e níquel são reconhecidos pela Organização Mundial de Saúde como carcinogênicos. Muitos dos poluentes são teratogênicos e suspeitos de provocarem danos aos sistemas cardiovascular, respiratório, endócrino, gastrointestinal, renal, reprodutor, imunológico e neurológico dos seres humanos (Scorecard, 2003 apud Santi, Filho, 2004, p.10).

Trecho 2

“Nos municípios de Vespasiano, Pedro Leopoldo e Matozinhos, onde a atividade cimenteira é predominante, a população de bairros, das áreas centrais das cidades, e também de algumas áreas rurais, é diretamente afetada pelas atividades de mineração e de logística dos grandes volumes de materiais que são explotados, tratados e transportados, pelos tremores de terra causados pela detonação nas minas; pelo funcionamento barulhento das plantas de fabricação de cimento; pela iluminação noturna; e pela poluição do ar característicos da indústria de fabricação de cimento” (Santi, Silva, 2004, p. 12)

Trecho 3

“A população que vive nas áreas vizinhas às unidades industriais e também aquelas que estão assentadas mais longe, na direção dos ventos, estão expostas ao impacto dos diversos compostos químicos poluentes gerados nas fábricas e, consequentemente, sujeitas ao adoecimento. Os poluentes emitidos pela chaminé nas plantas de clínquer formam uma pluma, cuja dispersão na atmosfera depende das condições metereológicas - velocidade e direção do vento, precipitação e inversão térmica –, das características do poluente e da fonte emissora – velocidade, temperatura e vazão dos gases, altura da chaminé. é durante esse processo, que caracteriza a poluição do ar, que substâncias químicas, gases e material particulado em suspensão (que inclui metais pesados e seus sais) poderão ser inalados ou entrar em contato com os olhos ou a pele das pessoas, causando danos à sua saúde”. (Santi, Silva, 2004, p. 14).

Júnia Sales
Enviado por Júnia Sales em 30/04/2008
Reeditado em 01/05/2008
Código do texto: T969223
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