Socialista com C

“Ler o outro não é apenas apropriar-se das palavras dos outros, é existir através deste outro, ser este outro”. (Sylvia Molloy)

Ainda na faculdade, afirmava ter lido todo o Karl Marx. Segundo ele, o melhor, o mais interessante e o mais inteligente teórico do mundo. Era tudo – acrescentava, sorrindo aos amigos, colegas e conhecidos – filósofo, sociólogo, advogado, economista, historiador, poliglota, tradutor, escritor, crítico literário e de teatro, cosmopolita, curandeiro e cozinheiro.

Assim como milhões de outros que se denominavam socialistas, o discurso e a prática nunca se afinavam. De modo que a empregada doméstica sentia-se intimidada a reclamar do péssimo salário e de trabalhar aos sábados, aos feriados e nas manhãs de domingo.

Pegou uma doença de verão. Sete dias de cama. Febre, suores, vômitos, desconfortos estomacais. Ele telefonava diariamente para saber quando ela voltaria ao trabalho.

Quando gastou um quilo de açúcar para preparar dezenove bolos, ele a atormentou para pagar o açúcar desperdiçado. Disse que não precisava colocar tanto açúcar em bolos que comemorariam o aumento de salário. Dele. O dela, sempre o mesmo.

Desde o tempo de estudante pedira-lhe compreensão: o dinheiro que recebia do pai e da bolsa de estudos não davam para pagar-lhe um salário mínimo. Ela aceitou receber metade, mesmo alertada de que deveria trabalhar dez horas por dia.

A graduação acabou. O pai deixou de mandar dinheiro, mas em compensação recebeu sucessivamente bolsas de mestrado e de doutorado. Valores significativos, porém não permitiam aumentar os vencimentos dela. Sem carteira assinada, sem férias, sem décimo terceiro salário, sem aposentadoria, sem descanso.

Uma lembrança a mantinha fervorosa no emprego: ele prometera que, terminando o pós-doutorado, dar-lhe-ia um bônus inesquecível. Recordava de sua promessa enquanto passava o paletó de linho italiano, presente da namorada. Ela não sabia o que era pós-doutorado. Apenas tinha conhecimento de que ele defenderia o seu naquela tarde. Finalmente, um salário mínimo.

Domingo à noite, tirava a roupa de igreja enquanto ouvia um programa de rádio em que o patrão defendia a ampliação do socialismo como maneira de salvar a população da miséria, de dividir as oportunidades e de praticar a justiça social. Na entrevista, anunciava a posse na cadeira de História das Relações de Trabalho na faculdade local.

Um salário mínimo para consertar o dente doendo há mais de três meses, uma blusa nova, uma calça usada comprada no brechó, um botijão de gás reserva e até um galão de água mineral por mês. Quem sabe um churrasquinho, nada muito caro, no aniversário e outro no natal?

Um, dois, três, quatro meses.

No quinto, ele a chamou no escritório. Limitou-se a estender-lhe um papel com supostas perdas que tivera em razão de sua incapacidade de adaptar-se ao trabalho doméstico moderno. Se procurasse a justiça a colocaria na cadeia por tentativa de roubo.

Ela deixou a casa. Os poucos pertences numa sacola de supermercado. Do ponto do ônibus, observou-o distribuindo panfletos de conscientização socialista, contra o patrão, a favor do proletário. Em sua simplicidade, descobriu que todo bom socialista possui um espírito com C, de Capitalista.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 1 de maio de 2008.