Nicole ou Fragmentos do Diário de uma mulher

NICOLE OU Fragmentos do Diário de uma Mulher

Amanhece . Nicole estende a esteira e deita . Em pouco tempo um calor forte desce pela praia e se choca contra a areia quente que ferve , sobe e levanta uma onda de neblina cercando os banhistas . O mar é sedutor , convidativo e límpido . Descansa na concha de areia e pedras formada pelas rochas que descem do morro. A imensidão azul chama , acena e queima em prazer visual o olhar. O gozo e choque do mergulho do corpo quente com as águas geladas é vivido antecipado .

A prainha entra mar adentro. È um pequeno espaço coberto de areia fina e limpa posicionado entre as pedras .Atrás e dos lados descem os morros cobertos de grama verde. São gigantescos os penhascos, são rochas salgadas a se despencar ,a se banhar no oceano.

Os salva vidas estão a postos na pequena cabana rústica . Espalham se os chapéus de sol . Crianças lambuzadas de picolé fazem bolos de areia .Movem se as carroças de sorvete e se abrem três barracos pintados de branco e azul para vender caipira , cerveja e refrigerante .Vendem muito no verão. Estão repletas de gente que vem andando da Praia Maior. Param. Compram. Seguem caminho . Para alguns, o pedaço de areia com mar à frente é somente uma passagem ,uma espécie de paradouro entre as furnas .Para Nicole é toda a história de sua vida.

"-Tudo preservado!” -sussurra ,enquanto absorve a visão. Sente prazer de cerrar os olhos e enxergar com o nervo ótico dentro do crânio . Vê interiorizada e intacta a paisagem que há um segundo contemplou.:

-“ A praia continua imutável porque não faz aniversário , não enruga e não envelhece”, - pensa. Sorri quando puxa o chapéu de sol para esconder o rosto. Quer falar sozinha , fantasiar ou rir sem que os veranistas suspeitem. O cérebro, meio entorpecido pelo calor , continua a pensar :" - Ah , ser como um pedaço de areia e pedras! Receio o processo de envelhecimento porque meu passado foi sofrido. Termino rodeada de solidão e me acostumo assim, só. Nem sei se tenho condições de relacionamento ou idade para reconstruir e conquistar espaço , fazer amigos. Envelhecer é fácil e natural quando a vida foi satisfatória. Não obstante, posso dizer : - A solidão é um caminho muito extenso para percorrer a sós .

Percorro o há quinze anos. Estou cansada. Talvez o tédio provoque este sentimento de decadência física e psíquica''.

Murmura um poema criado no desgosto e no susto do dia triste em frente ao espelho, quando apareceram as primeiras rugas. Estava deprimida , acreditava que doravante a vida somente ia servir para a engolir :

Espelho

- “Ah ,desgosto!

Espelhado o esboço

da velhice que se achega

cheia de mau gosto... ”Nicole Nathalie Champagne

Suspira resignada e meio sorridente pois ela mesma sente arrepios com o verso. Suspende o chapéu . Senta e abre os olhos . Encara uma sorridente velhinha enrugada. Dizer que a velhice é bonita é impossível- pensa - ,ao menos fisicamente. Deve ser duro viver com toda inteligência , maturidade , experiência e sabedoria metida numa carcassa velha destas !Que castigo ! O homem encontra toda a plenitude do ser e logo é aprisionado por esta carapaça que a sociedade rejeita . Com a rejeição estou acostumada, sei lidar com ela. Difíceis são as perdas que se tem vida afora. Talvez sejam estas perdas que motivem minha depressão e o sentimento de impotência para mudar, de esterilidade para criar. Enquanto espero meu momento de reação, luto e distraio o tempo fazendo anotações diárias neste caderno, espécie de diário.

Nicole abre a bolsa, tira o caderno preto e folheia para trás. Chega ao ano de 1997, mais umas páginas e localiza o dia de hoje há um ano atrás. Anotou neste mesmo dia três de fevereiro um verso .Lê :

-“Mar”- e sorri irônica . Ganhou um prêmio que nunca recebeu com o poema. “Dá nome”-, comentaram a título de consolo . Não se consolou , antes pensou que tudo o que fez , por uma circunstância ou outra foi destituída de retorno . Sequer ganhou uns tostões . Ser poeta pobre é por demais poético , não se sobrevive. A realidade exige dinheiro para" encher barriga”. Solta a gargalhada gostosa e contida. Alguns banhistas se viram e se entreolham. -“Quem é aquela que ri sozinha?” - devem pensar . Não liga e repete . Pensa deliciada na sua piada pessoal : ela, a poeta agraciada com primeiro lugar e que se preocupa com o comum e que se expressa em termos vulgares quando o assunto é saciar a fome.

-“Encher barriga !”- grita, ignorando a vida que a rodeia . Concentra se no diário, surpresa com a beleza do poema esquecido . Recorda o dia em que escreveu: -“Um dia exatamente igual a este." Súbito imaginou ,desejou mesmo, morrer no mar . Foi o sol quem assobiou e o vento que chorou em meio a sua nostalgia, o verso” :

Mar

Dia de sol fervente ,

e areia quente.

Ruídos de gentes ,

burburinho enfrente ao mar,

azul marinho...

Meu corpo suado ,

molhado e esticado ,

descansando se cansa na esteira .

Tenho os olhos cerrados,

e areia no cérebro...

Inibida ,

não vejo ou sinto ,

mas escuto doída ,

os ecos , ruídos , gritos ,

e gemidos dos banhistas.

Ah , a falta que te faz a beleza serena da natureza!

Cantam as ondas sussurrantes , cativantes ,

enquanto estouram em pranto quieto e me embalam .

Coberta e suavemente adormecida por arrulhos

de brancas espumas sedutoras,

quase que misteriosamente ,entro para o início do infinito,

princípio do silêncio...

NICOLE NATHALIE CHAMPAGNE

Dá dois piparotes na cabeça , satisfeita .Termina a leitura e está prestes a mergulhar novamente no caderno quando soam vozes familiares . Ergue os olhos meio estremunhada, meio chateada para a realidade da praia , dos banhistas e da vida .O ruído obriga a razão e a não abstrair. Levanta e pensa que tanto a vida de imaginação presente ao ler e escrever, quanto vodka ou álcool são dois bons refúgios para escapar da realidade. Nota que o corpo bronzeado , o chapelão e os óculos escuros chamam a atenção e a diferenciam . Apesar da idade ela se conservou . Sente se olhada como se fosse um peso de carne com pernas e destituído de cérebro. Logo ela que acredita firmemente que os atributos físicos atrapalham muito a vida de uma profissional , especialmente se é voltada para a área intelectual .Favorecem somente quando a beleza é o centro do trabalho(modelos ,artistas) Fosse feia ou desajeitada e no mínimo estava com um emprego garantido depois do difícil e caro curso Superior com sete anos de pós-graduação.

Acorda novamente e definitivamente quando o Apa ,dono da barraca ergue a voz :

- O de sempre Sra.? Uma caipira com vodka e assugrin mais um saquinho de batatas para não amolecer as pernas ?

Equilibra o copo de papelão cheio do precioso líquido e senta ao lado da mulher de Aparicio. Beberica e conversa frivolidades para se aturdir ou desanuviar a cabeça. Conserva, entretanto , trinta por cento do cérebro fixo no diário , o suficiente para resolver preencher os dias em que não escreve , as páginas em branco , com opiniões e observações a respeito de assuntos interessantes.

O mergulho nas ondas, quando submerge, que a traz de volta e o calor morno do sol ,tiram o torpor do álcool .Quando a realidade se impõe ,o passado volta injusto e traz consigo a revolta. Sente se cada vez mais só . O único romance como o único meio de superaras injustiças sofridas, se expressar e desabafar residem na poesia e literatura .Mas,não se ganha um tostão!

Suzana Heemann

Suzana da Cunha Heemann
Enviado por Suzana da Cunha Heemann em 05/05/2008
Reeditado em 28/06/2008
Código do texto: T975794
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