DISCURSO DE POSSE NA ACLA



       
   Exmo. Sr. Sérgio Galvão Caponi, DD. presidente da Academia Campineira de Letras e Artes, Ilmas. Acadêmicas Terezinha Bertazzi Costa e Norma de Lourdes Ribeiro; Ilma. Sra. Maria da Glória Gurgel Pinheiro, Senhoras Acadêmicas e Senhores Acadêmicos, Senhoras e Senhores convidados.

          Ingressar na Academia Campineira de Letras e Artes representa para mim o coroamento de um esforço, mas não um fim em si mesmo. Desde que passei a fazer parte do Clube dos Poetas de Campinas, apresentada que fui pela grande amiga Nei Ardito, conheci alguns Acadêmicos dos quais sempre recebi apoio e incentivo. Dentre eles, Sérgio Caponi, foi quem mais me influenciou, de forma positiva e decididamente marcante. Mas apesar de ser escritora, de ser poeta, não era chegado o meu momento de fazer parte de uma Academia.

          Ao longo desse tempo evolui, aprendi, e atingi um ponto em que os meios à minha disposição não mais me satisfaziam. Surgiu a necessidade de ampliar os horizontes, de buscar novos meios de intercâmbio com os que comungam o amor pelas Letras, de ter acesso às idéias e criações dos expoentes de outras artes. Chegou enfim a hora de crescer, de dedicar-me a ampliar e aprofundar meus conhecimentos; chegou a hora de expor minhas idéias e juntar meu esforço ao de um grupo atuante, de contribuir com o que possa em prol da cultura e das artes da cidade que escolhi para viver.

          O uso da palavra é um dom e um compromisso. Pode ser bênção ou fardo, mas inegavelmente envolve o poder transformador para o bem e para o mal. Não concordo com qualquer movimento que traz embutido em si a idéia de separação, portanto não sou feminista. Reservo-me o direito a essa opinião. Vislumbro um parâmetro maior: o do ser humano. Não consigo pensar num mundo andrógino; sonho com um mundo que evolua com respeito à dignidade humana; aquele em que, expresso seja pelos indivíduos, um potencial plenamente desenvolvido.

          Estendo meus objetivos, indo em busca de exercer o papel que me cabe enquanto mulher, poeta, e agora também Acadêmica: somar esforços ao de pessoas que podem influenciar a sociedade como um todo, com consciência, com propostas claras; líderes que transmitam aos educadores os meios e a intenção, firme, de preparar nossos jovens adequadamente; de orientá-los no sentido de edificar um futuro melhor para o nosso planeta , apesar e acima das dificuldades com que todos se deparam no momento.

         O processo acelerado e caótico que a sociedade atravessa, observando-se, em menos de dois séculos, a queda de arcabouços conceituais e modelos econômicos, um atrás do outro, ressalta questões a serem consideradas. No impasse que o mundo enfrenta, quero juntar-me ao grupo no qual seja possível, através da criação cultural e artística atuar de forma transformadora, aplicando o ponto de vista amoroso do resgate, da reciclagem, da inclusão que sempre coube principalmente ao feminino.

           Tenho por característica, no campo intelectual, a abertura a qualquer idéia nova, mesmo que ainda não comprovada. Considero que pode ser verdadeira; que pode não ser verdadeira, sem pender para um dos lados. Acredito na afirmação de que tudo que o homem pode imaginar pode um dia concretizar-se. Creio ser esta a abertura que leva ao crescimento. Diante de mim, o mundo é uma porta escancarada e não preciso de provas para levar em consideração possibilidades do vir a ser. Concebo como fascinante a visão que abarca a idéia de uma expansão não imaginada dos horizontes do conhecimento

          Assim é, que o que se me depara é alvissareiro por demais. Atualmente, firma-se a Academia Campineira de Letras e Artes, solidamente, sobre um patamar elevado. Integram seu quadro de acadêmicos, intelectuais e artistas de renome nacional e internacional. Sinto-me sobejamente honrada por participar de um momento de tamanha importância na história da Academia Campineira de Letras e Artes e pelo congraçamento com tão ilustres figuras.

          As gerações seguem em sucessão... Esperar-se-ia que na escala progressiva e ascendente, de um mundo que se aperfeiçoa. Cabe a nós o papel de participar do esforço por esse resultado.

          Por vir eu, como poeta que sou a ocupar a honrosa cadeira de número trinta e dois cujo patrono é João Gurgel Junior, quisera, particularmente, fornecer dele um quadro mais vivo e completo. Que desde já, não se deixe de constatar que foi um poeta reconhecido nacionalmente, premiado extensamente ao longo de sua carreira. Diz a seu respeito Paranhos de Siqueira: “Mas seus versos, vestidos com a decência do pensamento vertical continuam aí fora, não como orgulho de um homem, mas como patrimônio de uma era imortalizada na consciência nacional, exatamente pela compostura dos atos e costumes.”

          Falar sobre João Gurgel Júnior poderia ser uma tarefa difícil. Não tive a honra de conhecê-lo pessoalmente e as informações são poucas. Poucas, mas fornecidas com extrema gentileza por sua filha Maria da Glória. A leitura de alguns artigos também foi esclarecedora, mas são seus escritos que me contam do homem que foi.

          A primeira fonte que me chega às mãos é seu livro de poesias: “Sol e Sombra”. Nele, o poema introdutório, cujo título é “Pórtico”, já me coloca em contato com a figura do poeta e vai delineando a sua imagem:

“Um verso nobre quando aflora à mente
Às vezes diz o que se pensa – tudo .
Mas o que vem do coração da gente
Pensa-se apenas, não se diz – é mudo.”

          Era um parnasiano, mestre da sua arte e, por isso mesmo, ciente de que a palavra jamais dará conta por completo dos nossos sentimentos.

          Nasceu João Gurgel Júnior em Jambeiro, aos vinte e três de janeiro de mil oitocentos e noventa e seis, no Vale do Paraíba. Seus montes aveludados e o rio serpeante formam o cenário onde se forjou a sua alma sem arestas que nos chega através de um de seus poemas sobre o Jambeiro natal:

“Minha terra natal – o meu Jambeiro
Cortado pelo rio Capivari,
Quando o revejo, às vezes, prazenteiro
Sinto o calor do ninho onde eu nasci.”

          João Gurgel Júnior é descrito como um homem profundamente religioso. Sobre isso se expressava de forma ao mesmo tempo leve e grandiosa, como descreve em:

Creio

“Creio no Deus divinamente terso,
De um céu que é todo bem-aventurança.
Deus criador supremo do Universo,
Deus que nos fez à sua semelhança.”

          Cursou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Seus estudos eram custeados por um irmão. Por causa de dificuldades financeiras, quando estava já no terceiro ano, este não mais pôde dar-lhe assistência. João Gurgel Júnior teve que parar seus estudos e foi para o Rio de Janeiro, onde viveu por vinte e três anos.

          Foi no Rio que freqüentou as rodas culturais e conviveu com Carlos de Laet, Augusto Frederico Schimidt, com Sobral Pinto e Atílio Milani, com Rosário Fusco e José Geraldo Vieira. Conheceu Olavo Bilac, Humberto de Campos, Monteiro Lobato e outras figuras expressivas do pensamento e da cultura nacional de sua época.. Nas palavras de Paranhos de Siqueira, “Em meio daquela gente – verdadeiros semáforos orientadores de gerações mentais – foi que João Gurgel Júnior formou seu espírito e deu à sua vocação poética a estrutura artística que o elevaria à condição de escritor primoroso.”

          João Gurgel Júnior não era um homem voltado às preocupações materiais. Tornou-se desenhista topográfico. Não dava muita importância aos ganhos: por vezes cobrava pouco ou não cobrava por seus trabalhos. Quando sua esposa comentava, “não podemos viver de poesia”, ele respondia “mas esse trabalho não me custou quase nada, como vou cobrar?”
Era uma pessoa otimista, que nunca, nunca mesmo, reclamava de nada. Amava a vida, da qual tinha uma visão filosófica. Nas palavras de Maria da Glória, sua filha “o dom e o gosto pela poesia são resultado de sua visão de mundo.”

          A sua poesia tem características líricas e pessoais, compasso dolente e inconfundível. Revela nobreza de idéia, apuro na forma e elegância na expressão, marcas de sua grande sensibilidade, que são expressas em poemas como este:

Núpcias

“Quero que a natureza inteira vibre e cante
Numa eclosão ruidosa e cheia de harmonia.
Que o côncavo do céu azul mais fulgurante,
Empreste um brilho estranho ao meu festivo dia.”

          A partir de mil novecentos e quarenta e um passou a residir em Campinas. Como servidor do Estado, trabalhou no Instituto Agronômico. Aqui, passou a ser considerado por todos como um real conterrâneo, como se aqui tivesse nascido, o que não é pouca honra. O que se conta sobre ele, na época do Clube dos Poetas de Campinas (fundado e presidido por Arita Pettená) do qual fazia parte lá pela década de setenta, é que era um homem sempre jovem, em físico e em espírito... Mas os créditos por essa jovialidade, ele os atribuía, gentilmente, à convivência com os integrantes do Clube dos Poetas, conforme conta nestes versos:

“ Nas nossas reuniões de cada mês, / Meu orgulho não foi de ser poeta, / foi de me sentir um moço entre vocês.”

           Diz-se que gostava de surpreender a todos quando revelava a idade, que não aparentava de modo algum. Mantinha a inteligência em franca atividade e escrevia com a mesma facilidade, os poemas e os trabalhos em prosa: as crônicas, as palestras... Relata-se que conversar com ele era sempre encantamento, tanto por sua presença, como pelo conhecimento que possuía dos episódios da vida literária do país, pelas histórias sobre os homens notáveis com quem conviveu. João Gurgel Junior era um homem viajado, culto; ao mesmo tempo era bom, simples e caloroso, sempre disposto a abrir os braços para acolher os amigos. Quando Guilherme de Almeida, o príncipe dos poetas, campineiro de nascimento, por iniciativa e convite da Acadêmica Arita Damasceno Pettená, visitou Campinas para receber uma homenagem, sem que se imaginasse que seria pela última vez, coube a João Gurgel Júnior saudar o poeta e ele o fez através de um belíssimo soneto:

A Guilherme de Almeida

“Aqui, no coração desta cidade
De tantos feitos que registra a História,
Tu passarás para a posteridade,
No bronze eterno que é o metal da glória.

Tu que atingiste esta imortalidade,
Após a tua vida transitória,
Ficarás para sempre na saudade,
Que é o cárcere inviolável da memória,

Mestre da forma e príncipe do verso.
Os teu poemas líricos, românticos,
Vazados no crisol do estilo terso,

Serão lembrados quanto o “Guarani”,
Eternos como “O Cântico dos Cânticos”,
Imortais como os salmos de Davi.”

          A data: vinte de dezembro de mil novecentos e sessenta e oito. Na ocasião, João Gurgel Júnior foi aplaudidíssimo enquanto era abraçado por Guilherme de Almeida numa cena que envolveu a todos em grande emoção. Guilherme de Almeida que ficara contrafeito com a forma como seus poemas foram declamados, sentiu-se agraciado com o soneto de João Gurgel Júnior. Em um aparte comentou com Arita Pettená, que o recepcionava e estava a seu lado, ter sido aquele o momento culminante da noite. Guilherme de Almeida era admirador do talento de João Gurgel Júnior: tanto que não deixou por menos e pediu-lhe a cópia de um belo soneto que ele fizera para o neto:

“Tem apenas três anos. Ele é a chama
Que na minha velhice se acendeu.
Sua presença nosso lar inflama,
E assim tem sido desde que nasceu.

Se após buscar, ralhando a Avó reclama
Um objeto qualquer que ele escondeu,
Jurando falso o mentiroso exclama:
'Juro por deus, Vovó, que não fui eu.' ”

          João Gurgel Júnior possuía uma memória privilegiada e sabia de cor inúmeros poemas de poetas brasileiros e portugueses. Era um declamador apreciado. Mais que isso era um semeador de sua própria poesia, tanto pela oralidade quanto pela publicação em jornais e revistas do país. Nunca teve um arquivo, não guardava suas produções; o seu livro foi resultado do que conseguiu recolher das publicações espalhadas. Foi, portanto um homem que cumpriu o papel do verdadeiro poeta e uniu poesia e vida como expressa em:

Viver

“Aperfeiçoar a dor e o sentimento,
Apurar os minutos de ventura
Na proporção das horas de tormento.

Ter os olhos de lágrimas enxutos
E erguer a fronte na atração da altura,
E arrebentar em flores e dar frutos.”

           Maria de Lourdes Badaró, que o sucedeu na cadeira de número trinta e dois da Academia Campineira de Letras e Artes, era sua amiga e há entre os dois esta bela conversa em sonetos:

Flores d’Alma

“De minha mente o chão estéril cavo
Em ânsia vil de florir no deserto,
E recolher, nos versos que alinhavo
Mimosas flores d’alma que te oferto.

És poeta! Da beleza és um escravo.
Cantas a rosa, o amor e o ser liberto.
Se tens denodos próprios de homem bravo,
É porque a Cristo segues tu de perto.

És tão sensível, fácil é teu pranto,
Na dor alheia moras tu também.
Seres assim jamais causou espanto...

Que aos teus ideais tu possas ser fiel,
Vivas cem anos junto com teu bem,
É o que desejo e peço a Deus, Gurgel.”




Resposta a um soneto

“E agradecendo – que o dever obriga –
A oferenda gentil e carinhosa
Com que me honraste, minha cara amiga,

Eis o que vejo nos teus versos francos:
Cada rima uma pétala de rosa
Lançada sobre meus cabelos brancos”.

          É também meu, o dever de mencionar que sou grata pela votação unânime. Tenho como objetivo seguir e honrar os passos de meus antecessores, inspirando-me em suas qualidades, conhecimento e dedicação à tarefa de usar a palavra de forma construtiva e responsável. Voltamos, pois ao início: estar aqui não representa um fim, um objetivo alcançado. Trata-se da oportunidade soberba de um novo caminho de aprendizado, de novas descobertas, quiçá de acrescentar a marca de minha visão social, cultural e artística.

          O poeta, por sua extrema sensibilidade, não se cansa de seguir no esforço e na procura de dizer o indizível. Essa é a sua glória! Essa é a sua sina! Concluo com a leitura de um poema de minha autoria:

Na correnteza desse rio

Aquela luz, que brilha ao longe, e não se alcança
sempre piscando, tal estrela em céu escuro;
que se nos foge, qual um doce da criança,
sempre esperança de livrar-nos de um apuro,
mas que se afasta na medida em que se avança

- ela é meu norte, assim afirmo e quase juro,
e embora esteja tão distante traz bonança,
torna mais leves contingências que eu aturo.
Despeja luz em minha vida; deixa mansa

a correnteza desse rio onde eu despejo
a torrencial sofreguidão do meu desejo.
Porém quem sabe, um dia eu canso e desacato,

na relativa incongruência do meu fado,
a fé mantida, sem cansaço, e ponho ao lado:

o mesmo verso, a mesma estrela, o mesmo fato.



Campinas, 22 de novembro de 2008.