O DIREITO À PREGUIÇA (parte IV)

PAUL LAFARGUE

IV - PARA NOVA MÚSICA, NOVA CANÇÃO

Se, diminuindo as horas de trabalho, se conquista para a produção social

novas forças mecânicas, obrigando os operários a consumir os seus

produtos, conquistar-se-á um enorme exército de forças de trabalho. A

burguesia, liberta então da sua tarefa de consumidor universal, apressar-seá

a licenciar a barafunda de soldadas, de magistrados, de vigaristas, de

proxenetas, etc., que retirou do trabalho útil para a auxiliar a consumir e a

desperdiçar. É então que o mercado do trabalho ficará a transbordar, é então

que será necessária uma lei de ferro para proibir o trabalho: será impossível

encontrar trabalho para este bando de anteriores improdutivos, mais

numerosos do que os piolhos da madeira. E a seguir a eles será necessário

pensar em todos aqueles que proviam as suas necessidades e gostos fúteis

e dispendiosos. Quando já não houver mais lacaios e generais a quem dar

galões, mais prostitutas livres e casadas para cobrir de rendas, mais

canhões para furar, mais palácios para construir, será necessário impor,

através de leis severas, às operárias e aos operários de passamanaria, de

rendas, de ferro, de construção civil, higiênicos passeios em escaler e os

exercícios coreográficos para o restabelecimento da sua saúde e o

aperfeiçoamento da sua raça. Desde que os produtos europeus consumidos

no local não sejam transportados para o diabo, será preciso que os

marinheiros, as tripulações, os camionistas se sentem e aprendam a passar

o tempo na ociosidade. Os bem-aventurados Polinésios poderão então

entregar-se ao amor livre sem recear os pontapés da Vênus civilizada e os

sermões da moral européia.

Há mais. Para encontrar trabalho para todos os não valores da sociedade

atual, para deixar a ferramenta industrial desenvolver-se indefinidamente, a

classe operária deverá, tal como a burguesia, violentar os seus gostos

abstinentes e desenvolver indefinidamente as suas capacidades

consumidoras. Em vez de comer por dia uma ou duas onças de carne dura,

quando a comer, comerá alegres bifes de uma ou duas libras; em vez de

beber moderadamente mau vinho, mais papista que o papa, beberá grandes

e profundos copázios de bordéus, de borgonha, sem batismo industrial, e

deixará a água para os animais.

Os proletários meteram na cabeça infligir aos capitalistas dez horas de forja

e de refinaria; eis o grande erro, a causa dos antagonismos sociais e das

guerras civis. Será necessário não impor o trabalho mas proibi-lo. Será

permitido aos Rothschild e aos Say provarem que foram durante toda a sua

vida perfeitos velhacos; e se eles jurarem que querem continuar a viver

como perfeitos velhacos, apesar do arrebatamento geral pelo trabalho, serão

registados e, nas respectivas câmaras, receberão todas as manhãs uma

moeda de vinte francos para os seus pequenos prazeres. As discórdias

sociais desaparecerão. Os que vivem dos rendimentos, os capitalistas, serão

os primeiros a unir-se ao partido popular, uma vez convencidos de que,

longe de se lhes querer mal, se pretende pelo contrário livrá-los do trabalho

de superconsumo e de desperdício pelo qual foram esmagados desde o seu

nascimento. Quanto aos burgueses incapazes de provar os seus títulos de

velhacos, deixá-los-ão seguir os seus instintos: existe um número suficiente

de profissões nojentas para os colocar Dufaure limparia as latrinas públicas;

Galliffet assassinaria os porcos sarnosos e os cavalos inchados; os

membros da comissão das graças, enviados a Poissy (1), marcariam o bois e

os carneiros para abater; os senadores, ligados às pompas fúnebres, farão

de gatos-pingados. Para outros, encontrar-se-ão profissões à altura da sua

inteligência. Lorgeril e Broglie rolharão as garrafas de champanhe, mas

seriam amordaçados para não se embriagar; Ferry, Freycinet, Tirard,

destruiriam os percevejos e os vermes dos ministérios e de outros albergues

públicos No entanto, será necessário por os dinheiros públicos fora do

alcance dos burgueses por se recear os hábitos adquiridos.

Mas tirar-se-á uma dura e longa vingança dos moralistas que perverteram a

natureza humana, beatos falsos, santarrões, hipócritas "e outras seitas de

pessoas como estas que se disfarçaram para enganar o mundo. Porque,

dando a entender ao popular comum que não se ocuparam senão em

contemplações e devoção, em jejuns e macerações da sensualidade, senão

realmente para sustentar e alimentar a pequena fragilidade da sua

humanidade: pelo contrário, zombam. E Deus sabe de que maneira! Et

Curios simulant sed Bacchnalia vivunt (2). Podeis lê-lo em grandes letras e

em iluminuras nos seus focinhos vermelhos e no seu ventre saliente,

quando não se perfumam de enxofre" (3).

Nos dias de grandes festas populares, onde, em vez de comerem pó como

nos 15 de Agosto e nos 14 de Julho dos burgueses, os comunistas e os

coletivistas fizeram andar as garrafas e os presuntos e voar as taças, os

membros da Academia das Ciências Morais e Políticas, os padres de vestes

longas e curtas da igreja econômica, católica, protestante, judaica,

positivista e livre pensadora, os propagadores do malthusianismo e da moral

cristã, altruísta, independente ou submetida, vestidos de amarelo, segurarão

na vela até se queimarem os dedos e viverão em fome junto das mulheres

gaulesas e das mesas carregadas de carnes, de frutos e de flores e morrerão

de sede juntos dos tonéis destapados. Quatro vezes por ano, quando as

estações mudarem, tal como aos cães dos amoladores ambulantes, encerrálos-

ão nas grandes rodas e durante dez horas obrigá-los-ão a moer vento.

Os advogados e os legistas sofrerão a mesma pena.

Num regime de preguiça, para matar o tempo que nos mata segundo a

segundo, haverá sempre espetáculos e representações teatrais; é um

trabalho adotado especialmente para os nossos burgueses legisladores.

Organizá-los-emos em bandos que percorrem as feiras e as aldeias, dando

representações legislativas. Os generais, com botas de montar, o peito

agaloado de atacadores, de crachás, de cruzes da Legião de honra, irão

pelas ruas e pelas praças, recrutando as boas pessoas. Gambetta e

Cassagnac, seu compadre, farão a pantominice da porta. Cassagnac, em fato

de gala de mata-mouros, revirando os olhos, torcendo o bigode, cuspindo a

estopa inflamada, ameaçará todos com a pistola do pai e cairá num buraco

mal lhe mostrem um retrato de Luílier; Gambetta discorrerá sobre a política

externa, sobre a pequena Grécia que o endoutoriza e largará fogo à Europa

para roubar a Turquia; sobre a grande Rússia que o estultifica com a

compota que ela promete fazer com a Prússia e que deseja a oeste da

Europa feridas e inchaços para enriquecer a leste e estrangular o niilismo no

interior; sobre o Sr. Bismarck, que foi bastante bom para lhe permitir que se

pronunciasse sobre a amnistia... depois, desnudando a sua vasta barriga

pintada a três cores, tocará nela a chamada e enumerará os deliciosos

animaizinhos, as verdelhas, as trufas, os copos de Margaux e de Yquem que

tragou para encorajar a agricultura e manter alegres os eleitores de

Belleville.

Na barraca, começar-se-á pela Farsa Eleitoral.

Diante dos eleitores com cabeças de madeira e orelhas de burro, os

candidatos burgueses, vestidos como palhaços, dançarão a dança das

liberdades políticas, limpando a face e o posfácio com os seus programas

eleitorais de múltiplas promessas e falando com lágrimas nos olhos das

misérias do povo e com voz de bronze das glórias da França; e as cabeças

dos eleitores gritam em coro e solidamente: hi han! hi han!

Depois começará a grande peça: O Roubo dos Bens da Nação.

A França capitalista, enorme fêmea, de face peluda e de crânio calvo,

deformada, com carnes flácidas, balofas, deslavadas, com olhos sem vida,

ensonada e bocejando, está reclinada num canapé de veludo; a seus pés, o

Capitalismo industrial, gigantesco organismo de ferro, com uma máscara

simiesca, devora mecanicamente homens, mulheres, crianças, cujos gritos

lúgubres e terríveis enchem o ar; a Banca com focinho de fuinha, com corpo

de hiena e mãos de harpia, rouba-lhe habilmente do bolso as moedas de cem

soldos. Hordas de miseráveis proletários descarnados, escoltados por

gendarmes, de sabre desembainhado, expulsos pelas fúrias que os zurzem

com os chicotes da fome, trazem para os pés da França capitalista montes

de mercadorias, barricas de vinho, sacos de ouro e de trigo. Langlois, com

os calções numa mão, o testamento de Proudhon na outra, o livro do

orçamento entre os dentes, põe-se à frente dos defensores dos bens da

nação e monta a guarda. Uma vez depostos os fardos, mandam expulsar os

operários à coronhada e a golpes de baioneta e abrem a porta aos

industriais, aos comerciantes e aos banqueiros.

De cambolhada, eles precipitam-se sobre o monte, tragando tecidos de

algodão, sacos de trigo, lingotes de ouro, despejando pipas; sem poderem

mais, sujos, nojentos, ficam prostrados nos seus excrementos e nos seus

vômitos... Então ribomba o trovão, a terra agita-se e entreabre-se, surge a

Fatalidade histórica; com o seu pé de ferro ela esmaga as cabeças daqueles

que soluçam, cambaleiam, caem e já não podem fugir, e com a sua grande

mão derruba a França capitalista, estupefacta e suando de medo.

Se, desenraizando do seu coração o vício que a domina e avilta a sua

natureza, a classe operária se erguesse com a sua força terrível, não para

reclamar os Direitos do Homem, que não são senão os direitos da

exploração capitalista, não para reclamar o Direito ao Trabalho, que não é

senão o direito à miséria, mas para forjar uma lei de bronze que proíba todos

os homens de trabalhar mais de três horas por dia, a Terra, a velha Terra,

tremendo de alegria, sentiria saltar nela um novo universo... Mas como pedir

a um proletariado corrompido pela moral capitalista uma resolução viril?

Tal como Cristo, a triste personificação da escravatura antiga, os homens, as

mulheres, as crianças do Proletariado sobem penosamente há um século o

duro calvário da dor: desde há um século que o trabalho forçado quebra os

seus ossos, magoa as suas carnes, dá cabo dos seus nervos; desde há um

século que a fome torce as suas entranhas e alucina os seus cérebros!... Ó

Preguiça, tem piedade da nossa longa miséria! Ó Preguiça, mãe das artes e

das nobres virtudes, sê o bálsamo das angústias humanas!

NOTAS:

(1) Poissy: Prisão Central.

(2) Simulam ser Curius e vivem como nas Bacanais (Juvenal).

(3) Pantagruel, t. II, Cap. LXXIV.

APÊNDICE

Os nossos moralistas são pessoas muito modestas; se inventaram o dogma

do trabalho, duvidam da sua eficácia para tranqüilizar a alma, regozijar o

espírito e manter o bom funcionamento dos rins e outros órgãos; querem

experimentar a sua utilização nos populares, in anima vili antes de o voltar

contra os capitalistas, cujos vícios têm como missão desculpar e autorizar.

Mas, filósofos de quatro tostões a dúzia, porquê preocupardes-vos assim a

elucubrar uma moral cuja prática não ousais aconselhar aos vossos

senhores? O vosso dogma do trabalho, do qual vos mostrais tão

orgulhosos, quereis vê-lo escarnecido, amaldiçoado? Abramos a história

dos povos antigos e os escritos dos seus filósofos e dos seus legisladores.

"Não posso afirmar, diz o pai da história, Heródoto, que os Gregos

receberam dos Egípcios o desprezo que têm pelo trabalho, porque encontro

o mesmo desprezo estabelecido entre os Trácios, os Citas, os Persas e os

Lídios; numa palavra, por que, na maior parte dos bárbaros, aqueles que

aprendem as artes mecânicas e até mesmo os seus filhos são considerados

como os últimos cidadãos.. - Todos os Gregos foram educados nestes

princípios, especialmente os Lacedemónios." (1)

"Em Atenas, os cidadãos eram verdadeiros nobres que só se deviam ocupar

da defesa e da administração da comunidade, como os guerreiros selvagens

de onde tinham origem. Devendo, portanto, estar livres todo o tempo para

velar, com a sua força intelectual e física, pelos interesses da República,

encarregavam os escravos de todo o trabalho.

O mesmo sucedia com a Lacedemónia, onde até as mulheres não deviam

nem fiar nem tecer para não se furtarem à sua nobreza." (2)

Os Romanos só conhecem duas profissões nobres e livres, a agricultura e

as armas; todos os cidadãos viviam por direito à custa do Tesouro, sem

poderem ser obrigados a prover à sua subsistência por nenhum dos

sordidae artes (designavam assim os misteres) que pertenciam por direito

aos escravos. Brutus, o Velho, para levantar o povo, acusou sobretudo

Tarquínio, o tirano, de ter feito dos artesãos e dos pedreiros cidadãos livres

(3).

Os filósofos antigos discutiam entre si sobre a origem das idéias, mas

estavam de acordo se se tratava de abominar o trabalho.

"A natureza, diz Platão, na sua utopia social, na sua Republica modelo, a

natureza não fez nem o sapateiro nem o ferreiro; essas ocupações degradam

as pessoas que as exercem, vis mercenários, miseráveis sem nome que pelo

seu próprio estado são excluídos dos direitos políticos. Quanto aos

mercadores acostumados a mentir e a enganar, só serão suportados na

cidade como um mal necessário. O cidadão que se tiver aviltado pelo

comércio será perseguido por esse delito. Se se provar a acusação, será

condenado a um ano de prisão. A punição será duplicada em cada

reincidência." (4)

No seu Económico, Xenofonte escreve:

"As pessoas que se dedicam aos trabalhos manuais nunca são elevadas a

altos cargos e é razoável. Condenadas na sua grande parte a estar sentadas

todo o dia, algumas mesmo a suportar um fogo contínuo, não podem deixar

de ter o corpo alterado e é muito difícil que o espírito não se ressinta disso. "

"Que pode sair de honroso de uma loja? - confessa Cícero - e o que é que o

comércio pode produzir de honesto? Tudo o que se chama loja é indigno de

um homem honesto [...] uma vez que os mercadores não podem ganhar sem

mentir, e o que há de mais vergonhoso do que a mentira? Portanto, deve-se

encarar como algo de baixo e de vil o mister de todos aqueles que vendem o

seu esforço e a sua indústria, porque todo aquele que dá o seu trabalho por

dinheiro vende-se a si mesmo e põe-se ao nível dos escravos." (5)

Proletários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, compreendeis a

linguagem destes filósofos, que escondem de vós com cioso cuidado: - Um

cidadão que dá o seu trabalho em troca de dinheiro degrada-se ao nível dos

escravos, comete um crime, que merece anos de prisão?

A hipocrisia cristã e o utilitarismo capitalista não tinham pervertido estes

filósofos das Repúblicas antigas; dirigindo-se a homens livres, expunham

ingenuamente o seu pensamento. Platão, Aristóteles, esses pensadores

gigantes, cujos calcanhares os nossos Cousin, os nossos Caro, o nossos

Simon só podem atingir pondo-se nas pontas dos pés, queriam que os

cidadãos das suas Repúblicas ideais vivessem na maior ociosidade, porque,

acrescentava Xenofonte, "o trabalho tira todo o tempo e com ele não há

nenhum tempo livre para a República e para os amigos". Segundo Plutarco,

o grande título de Licurgo, "o mais sábio dos homens" para admiração da

posteridade, era ter concedido a ociosidade aos cidadãos da República

proibindo-os de exercer qualquer mister (6) .

Mas, responderão os Bastiat, os Dupanloup, os Beaulieu e companhia da

moral cristã e capitalista, esses pensadores, esses filósofos preconizavam a

escravatura. - Perfeitamente, mas acaso podia ser de outro modo atendendo

às condições econômicas e políticas da sua época? A guerra era o estado

normal das sociedades antigas; o homem livre devia dedicar o seu tempo a

discutir os assuntos de Estado e a velar pela sua defesa, os misteres eram

então demasiado primitivos e demasiado grosseiros para que, ao praticá-los,

se pudesse exercer a profissão de soldado e de cidadão; para possuírem

guerreiros e cidadãos, os filósofos e os legisladores deviam tolerar os

escravos nas Repúblicas heróicas. - Mas os moralistas e os economistas do

capitalismo não preconizam o salariado, a escravatura moderna? E a que

homens concede a escravatura capitalista a ociosidade? - Aos Rothschild,

aos Schneider, às Sr.as Boucicaut, inúteis e prejudiciais, escravos dos seus

vícios e dos seus criados.

"O preconceito da escravatura dominava o espírito de Pitágoras e de

Aristóteles", escreveu-se desdenhosamente; e no entanto Aristóteles previa

que "se cada utensílio pudesse executar sem intimação, ou então por si só, a

sua função própria, tal como as obras-primas de Dédalo se moviam por si

mesmas ou tal como os tripés de Vulcano que se punham espontaneamente

ao seu trabalho sagrado; se, por exemplo, as lançadeiras dos tecelões

tecessem por si próprias, o chefe de oficina já não teria necessidade de

ajudantes, nem o senhor de escravos".

O sonho de Aristóteles é a nossa realidade. As nossas máquinas a vapor,

com membros de aço, infatigáveis, de maravilhosa e inesgotável

fecundidade, realizam por si próprias docilmente o seu trabalho sagrado; e,

no entanto, o gênio dos grandes filósofos do capitalismo continua a ser

dominado pelo preconceito do salariado, a pior das escravaturas. Ainda não

compreendem que a máquina é o redentor da humanidade, o Deus que

resgatará o homem das sórdidas artes e do trabalho assalariado, o Deus que

lhe dará tempos livres e a liberdade.

NOTAS:

(1) Heródoto, t. II, trad. Larcher, 1876.

(2) Biot, De l'Abolition de l'Esclavage Ancien en Occident, 1840.

(3) Tito Lívio, L. 1.

(4) Platão, Repúblicas, 1. V.

(5) Cícero, Des Devoirs, 1, tít. II, cap. XLII.

(6) Platão, República, V e As Leis, III; Aristóteles, Política, II e VII; Xenofontes,

Económico, IV e VI; Plutarco, Vida de Licurgo.

PAUL LAFARGUE

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Anarqui Liberdade
Enviado por Anarqui Liberdade em 01/10/2006
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