Aula da Saudade - Letras (ufam, 2008)

     Meus queridos,

     Geralmente a aula da saudade é ministrada para os formandos. Pela primeira vez estou tendo a experiência de ministrar a aula da saudade para uma turma de formados. A solenidade de colação de grau de vocês já foi realizada.

     Eu poderia chamá-los de ex-alunos ou de colegas, mas já que me deram confiança, quero ter a ousadia de chamá-los de amigos. Vocês me incumbiram de uma responsabilidade muito grande, pois entendo que quando uma turma planeja uma “aula da saudade” é porque querem ficar com "saudade da aula". Quando recebi o convite, fiquei pensando seriamente se eu teria condições de ministrar uma aula que fosse capaz de produzir saudade em alguém. Até agora estou achando que não. De qualquer forma, vocês podem sair daqui hoje com saudade dos amigos, saudade deste encontro, saudade do ICHL (incrível, é possível se sentir saudade do ICHL!), saudade dos professores, dos livros, dos bons momentos vividos, das lições aprendidas, das alegrias compartilhadas, e até mesmo saudade desta aula da saudade, se me quiserem fazer essa concessão.

     Em ocasiões tão especiais como esta, temos que saber lidar com duas realidades diferentes: a realidade das emoções e a realidade das palavras. As emoções são verdadeiras e espontâneas; as palavras que temos que usar para expressar as emoções, embora sejam igualmente verdadeiras e espontâneas, muitas vezes nos traem. E mais que isso: em momentos solenes como este as palavras devem ter o tamanho exato da emoção. Por isso, para não ser traído pelas palavras, registrei-as neste papel, e peço permissão para lê-las.

     Quero convidá-los a um breve passeio pela mitologia grega, revisitando um dos seus mitos mais expressivos: conta-se que Minos, o rei de Creta, encomendou ao engenhoso e criativo arquiteto Dédalo a construção de um labirinto na cidade de Cnossos. Nesse labirinto construído por Dédalo, o rei de Creta aprisionou o minotauro, um monstro terrível, comedor de gente, cujos petiscos preferidos eram moças e rapazes, como vocês. Labirinto era um lugar de onde era impossível sair. Rapazes e moças jogadas lá dentro circulavam em desespero pelos caminhos e cruzamentos do labirinto e, mais cedo ou mais tarde, encontravam o monstro devorador. Um dia, o engenhoso arquiteto Dédalo foi atirado, juntamente com o seu filho Ícaro, dentro do labirinto que ele mesmo construíra, para ser devorado pelo minotauro. Para escapar dali, construiu asas para si e para o seu filho, colando-as ao corpo com cera. Saíram de lá voando, mas Ícaro ficou deslumbrado com o voo e, desobedecendo as ordens expressas do pai, aproximou-se muito do Sol, que lhe derreteu a cera das asas. O resultado foi que despencou das nuvens e morreu nas águas gélidas do mar Egeu.

     Um dia, o corajoso jovem Teseu decidiu entrar no labirinto para exterminar o monstro e   acabar com o problema. Antes que ele iniciasse a sua busca, a sua amada Ariadne teve uma brilhante ideia: deu-lhe um novelo de lã, para que fosse desenrolando enquanto andasse pelo labirinto. Assim, ele poderia encontrar o caminho de volta, após eliminar o minotauro, seguindo o fio. E foi o que aconteceu. Teseu salvou a cidade de um terrível problema e, ao mesmo tempo, foi salvo pelo fio de Ariadne.

     Retornamos agora da Grécia para a Universidade Federal do Amazonas. Quando vocês aqui ingressaram, logo devem ter percebido que entraram em um labirinto, onde teriam que tentar  sobreviver nas muitas encruzilhadas, tendo que abater monstrengos às vezes mais perigosos que o famoso minotauro que assolava os cretenses. Aqui os ditos  monstrengos parecem brotar, numa  velocidade estonteante, dos canteiros da Linguística e das sementeiras da Literatura. Para uns  foram anos e anos; para outros, anos e enganos. Parece que ninguém foi comido pelo montro, mas alguns se olham no espelho e veem que o estrago foi considerável! Está escrito nos arcanos que ninguém passará impunemente por este labirinto chamado universidade Federal do Amazonas — UFAM para os íntimos.

     Ao longo da caminhada pelas trilhas intrincadas do labirinto, ocorreu uma metamorfose:   vocês se transformaram em professores! E, Nesse caso, não sei se digo “parabéns!”  ou “bem  feito!”

     Ei, é verdade! Vocês agora são professores. De português. De literatura. Que coisa incrível! aprenderam a amar os monstrengos. Olham para eles com   aquela cara boba de quem está apaixonado, fazem declarações de amor para eles, às vezes até brigam, mas afinal qual é a  história de amor que não tem uma briguinha de vez em quando para temperar a relação? Certa vez, uma aluno de Matemática me disse que “gostar de linguística, de literatura, de poesia, de romance, é coisa de doido. Como pode alguém gostar desses monstrengos?!” Coitado! Ele nunca vai  entender que “é o amor que mexe com minha  cabeça e me deixa assim”. Nunca vai entender que a literatura é a coisa mais saborosa que o homo sapiens até hoje foi capaz de inventar.

     Vocês agora são professores. Como eu. Somos professores de Português.  Somos professores de literatura. É possível que alguns o sejam por absoluta falta de opção, mas a grande maioria o é porque o Arquiteto que nos projetou  errou nas medidas e nas  combinações, e deixou que se acumulasse em nosso sangue uma doença chamada      docência. Esta inclinação nos levou e nos levará a transitar, por toda a vida, pelos  caminhos das línguas e das literaturas. Uma jornada de regências e concordâncias,   sempre reservando um lugar especial também para as discordâncias, pois elas ajudam a romper cortinas de monotonia em nossos horizontes.

     Temos nos movido entre paradoxos e eufemismos, alimentando espíritos, alargando consciências, enquanto governos e sistemas decretam: “ao professor, as batatas!”

     Faz parte da sua missão construir algumas coisas e destruir outras: destruir preconceitos linguísticos arraigados e construir pontes de acesso à norma culta da língua, sem promover o apagamento das espontâneas manifestações da alma; destruir concepções etnocêntricas e construir o respeito ao princípio da alteridade; tornar mais suportável   este mundo que nos suporta enquanto o temos, como diria o por Max Carphentier.

     Somos profesores. Artistas da sobrevivência. Nosso orgasmo, com o perdão da boa palavra, está em ensinar e perceber que a aprendizagem está acontecendo de verdade. E ao ensinar, vamos aprendendo para a vida. Afinal de contas, “ensinar a voar é sentir sempre a emoção do   primeiro voo”.

      A universidade é um labirinto e, quem tem a ousadia de enfrentar suas complexas encruzilhadas,  colhe tesouros de conhecimentos e — melhor ainda — tesouros de saber, porque etimologicamente o saber é o conhecimento que tem sabor. A UFAM ajudou vocês a construírem dois pilares primordiais para a vida profissional: a competência técnica e a competência humana. No exercício da profissão que abraçaram, a despeito do prazer vocês terão a dor: Saibam pôr na dor e no prazer o coração. Saibam transformar o conhecimento em saber, sabendo que o saber é conhecimento “com sabor”. E  nunca se esqueçam: “Se a técnica é um bem, só o amor é essencial. Foi a técnica que fez o homem subir e chegar até a lua; mas foi o amor que fez Deus descer e chegar até o homem”.

     Muito mais que a Universidade, a vida é um labirinto. Saibam transitar por ela da melhor maneira: usando os fios de Ariadne do amor, do respeito, da tolerância e da solidariedade. E  jamais usem asas de cera para voar. Não usem asas postiças, quando vocês têm asas verdadeiras que podem impulsioná-los(as) para as grandes realizações. Jamais repitam o empreendimento desastrado de Ícaro!

      Muito obrigado por me terem concedido a honra de participar deste momento de  sublimação. Como diziam os árcades, Carpe diem!  “Aproveitem o dia!” e a noite       também!
 
 Manaus, UFAM, 2008
professor Carlos Guedelha

 
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