Beijinho no ombro para a estupidez passar longe do Brasil

De maneira geral, a sociedade não espera muito de um filósofo. Não se espera que um filósofo saiba dirigir um ônibus, ou que construa motores, que saiba indicar tratamentos médicos, ou que saiba dançar, pintar e muito menos que ele saiba projetar e construir edifícios. Nem mesmo dar aulas com competência, que poderia ser uma tarefa aparentemente simples para um homem erudito, é algo que se exige de um filósofo. A única coisa que realmente se espera e se exige de um filósofo, tanto no exercício da sua profissão quanto em seu desempenho de papel social, é que ele saiba como pensar com clareza e prudência, e, se possível, que ele mais esclareça do que confunda o pensamento das outras pessoas.

Acontece que pensar com clareza e prudência ainda não transforma uma pessoa comum e nem mesmo um filósofo em um “grande pensador”. O “grande pensador” é alguém que deve pensar com clareza e prudência, mas também deve possuir um amplo repertório de conhecimentos teóricos, culturais e experiências de vida que possibilitem-no pensar de um modo que supere em muito o seu próprio pensamento cotidiano – o seu pensamento, digamos assim, ordinário. Em outras palavras, o “grande pensador”, seja ele filósofo ou não, ao tentar pensar sobre ações, eventos e conceitos humanos, procurará responder à indagações que normalmente ele não conseguiria responder se não estivesse habituado a... pensar! Ao exercitar os seus pensamentos através do ato mesmo de pensar, o “grande pensador” consegue transformar aquilo que seria cotidiano e ordinário em algo extraordinário, e, assim como o artista criador, o “grande pensador” consegue elevar a si mesmo através da sua arte, que é, neste caso, o seu próprio pensamento em constante desenvolvimento.

É importante pontuar que embora existam algumas semelhanças notáveis, o “grande pensador” não deve jamais ser confundido com um artista criador. No Brasil, infelizmente, é comum cometermos esse erro e confundirmos um “grande pensador” com um artista criador, ou então cometermos um erro ainda mais grave, que é confundir um artista criador ou uma personalidade do showbusiness como se estes fossem exemplos vivos de um “grande pensador”.

É óbvio e ululante que o nosso gigantesco Brasil é um país muito pobre em termos de “grandes pensadores”. É bem verdade que atualmente temos em nosso país dezenas de milhares de supostos intelectuais, a maior parte deles com diplomas de graduação e muitos ainda com títulos de especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado, obtidos no Brasil e também no exterior. Entretanto, o Brasil ainda continua possuindo uma população muito pobre no seu modo de pensar, e, como psicólogo, acredito que se somos muito pobres no nosso modo de pensar provavelmente seremos também muito pobres no nosso modo de agir.

Recentemente, a aplicação de uma prova de Filosofia para alunos do terceiro ano do Ensino Médio, no Distrito Federal, confirmou esta minha crença e ainda evidenciou de modo muito ilustrativo o fato de que no Brasil atualmente existem muitos filósofos e intelectuais que ainda não aprenderam a pensar com clareza e prudência e acabam cometendo absurdidades como confundir personalidades do showbusiness com verdadeiras sumidades intelectuais.

O professor de filosofia Sr. Antônio Kubitschek utilizou um trecho de uma música chamada “Beijinho no Ombro”, da funkeira Valeska Popozuda, como tema de questão em uma prova de filosofia para alunos do Centro de Ensino Médio 03 de Taguatinga, Distrito Federal. Não bastasse o péssimo referencial cultural deste senhor - que deve ser respeitado no final das contas, diga-se de passagem - o enunciado da questão de múltipla escolha afirmava que "Segundo a GRANDE PENSADORA CONTEMPORÂNEA Valeska Popozuda, se bater de frente...”. Após a leitura do sofrível enunciado, o pobre aluno deveria assinalar adequadamente a resposta correta que completaria o trecho da música escolhida deliberadamente pelo professor, filósofo, pensador e criador de polêmicas Sr. Antonio Kubitschek.

Eis uma situação patética e surreal! O professor de filosofia Sr. Antonio Kubitschek é aquele sujeito que deveria zelar e promover um modo de pensar claro e prudente. O professor de filosofia Sr. Antonio Kubitschek é aquele sujeito que deveria proporcionar o máximo de sabedoria no convívio cotidiano com seus pares e alunos, através dos seus inúmeros conhecimentos adquiridos. Pois este senhor irresponsável negligenciou na prática tanto o seu papel de filósofo como de educador e preferiu provocar polêmicas baratas ao apontar a funkeira Valeska Popozuda como uma referência na produção de pensamentos na contemporaneidade, defendendo inclusive uma tese equivocada de que “qualquer pessoa que consiga construir um conceito é um filósofo”, de modo que somente pelo fato da “grande pensadora” Valeska Popozuda ter sido a criadora de um conceito ridículo chamado “beijinho no ombro”, ela já se tornaria um modelo de raciocínio e sabedoria para dezenas ou centenas de adolescentes, na qual o Sr. Antonio Kubitschek se responsabiliza pedagogicamente enquanto professor.

O acontecimento bizarro, obviamente, provocou enorme alvoroço na internet e em outros veículos de comunicação. Seria engraçado se não fosse trágico o fato de que nem o professor e nem a funkeira entenderem o porquê de tanto alvoroço nas chamadas “redes sociais”. Ambos encontraram as justificativas mais esdrúxulas e debochadas para justificar os seus ignóbeis pontos de vista, que vão desde a condenação do machismo e o enaltecimento do feminismo, passando pela comparação entre o pensamento (?) de Mr Catra e de Valeska Popozuda, até chegar num suposto preconceito contra o funk e contra as classes menos favorecidas e encerrando numa tentativa de equiparação intelectual entre as músicas da Popozuda e da única unanimidade nacional que é o nosso querido (e intocável) Chico Buarque de Holanda.

Nas semanas que sucederam o acontecimento, ouvi e li muitos comentários sobre o ocorrido, e muitas pessoas afirmaram que tudo isso não passou de uma brincadeira, uma peraltice, que na verdade a intenção do professor era apenas polemizar - "causar", como dizem os adolescentes - como forma de provocar alguma forma de aprendizado filosófico especial em seus alunos. Concordo em parte com tudo o que vai acima, especialmente porque fica subentendido nessas opiniões que como professor de filosofia o Sr. Antônio Kubitschek não passaria de um grande brincalhão...

Ninguém quer retirar o direito do professor de brincar, principalmente fora de sala de aula, em artigos, livros e vídeos por exemplo. Mas em sala de aula, o seu papel é o de esclarecer e não o de confundir. Valeska Popozuda como "grande pensadora", vindo de um professor de filosofia, não é uma brincadeira, não é uma ironia: é uma estupidez pura e simplesmente. O professor tem todo o direito de ser um brincalhão polêmico FORA da sala de aula. Dentro de sala de aula, ele é responsável pela educação de dezenas (talvez centenas) de adolescentes vulneráveis a toda forma de ensino inadequado. E insisto neste ponto: todo professor é responsável pela educação de dezenas, talvez de centenas de adolescentes vulneráveis a toda forma de ensino inadequado e algumas brincadeiras, por melhores que sejam as intenções do mestre, podem ser prejudiciais ao desenvolvimento moral e intelectual dos alunos e por isso mesmo devem ser consideradas como algo que seja tão reprovável quanto dispensável.

Agora, quanto à "polêmica" provocada pelo professor de filosofia, que foi citada por muitos como se fosse um recurso técnico aceitável sob o ponto de vista pedagógico, discordo completamente de quem pensa que o fato ocorrido teve realmente alguma intencionalidade pedagógica. Aliás, tenho a cada dia mais convicção que o que o Sr. Antônio Kubitschek buscava era unicamente a polêmica barata, o holofote desmerecido, e isso, infelizmente, ele alcançou com perfeição.

Alguns vão dizer que exagero, mas eu acredito que até mesmo um assaltante pode ser menos pernicioso à sociedade do que um mau professor, especialmente quando este é admirado como se fosse algum modelo de homem culto e sábio, uma referência em seus modos de pensar e agir.

Nelson Rodrigues costumava dizer que “só os profetas enxergam o óbvio”, e embora eu não queira dar uma de profeta, me parece óbvio que filósofos e pensadores como o Sr. Antonio Kubitchek não deveriam jamais ser admitidos como educadores de crianças e adolescentes em nosso exótico país. Caso contrário, correremos o risco de não encontrarmos mais o que fazer para transformarmos o nosso pobre Brasil num país produtor de grandes pensadores brasileiros, que poderão contribuir de fato para o engrandecimento da humanidade através de ideias verdadeiramente belas, brilhantes e universais.

Se o Brasil não fosse um vasto cemitério para grandes pensadores, o único espaço intelectual que naturalmente um Antonio Kubitschek encontraria em nosso país seria o espaço do ostracismo intelectual, tendo como companhia para seus devaneios estupidificantes a sua estimadíssima funkeira "grande pensadora contemporânea" Valeska Popozuda.

Tenho a esperança de ver um dia o Brasil produzir os seus Kants e os seus Dostoiévskis, mas infelizmente este ainda é um país que produz em larga escala apenas "grandes pensadores" como o Sr. Antônio Kubitschek, uma verdadeira erva daninha para um solo tão rico e promissor como é o solo do nosso gigantesco território brasileiro.