Média Ode ao Homem Médio

Defendamos nossa opinião com fervorosa paixão. Discutamos e desejemos que a parte contrária à nossa pereça diante da justiça. Serão merecidas suas penúrias!

Sonhemos com bandidos presos independentemente de posição política partidária, pois assim seremos justos. Acastelemos o trabalho do honesto e a morte do corrupto. Somos a favor da esquerda capitalista e da direita comunista. Sim, somos maleáveis e desinformados.

Somos a favor da liberdade de expressão e de sexualidade. Assim, nunca deixaremos de defender o controle da mídia e a clássica família cristã. Somos a favor da plena igualdade de gêneros e da natural sociedade patriarcal.

Porém, hoje não ovacionemos nossas vastas, justas e bem fundamentadas visões de mundo. Não! Hoje festejemos!

Festejemos, pois merecemos. Pois estamos nas ruas e mostramos a força do povo. Celebremos, pois a moral e a ética prevalecem sobre a corrupção e a decadência. O inimigo perece aos nossos pés.

Exaltemos, assim, a garantia de fortalecimento dos círculos de condutas aos quais somos submetidos e que não serão quebrados. Aplaudamos, porque o que está bom não precisa mudar, a não ser que o bom seja ruim, é claro, caso em que deverá ser alterado com urgência.

Vemos, portanto, o canto do cisne do atual governo e iremos marcar mais um capítulo nos livros de história: o Brasil derrubou (ou não) mais uma administração. Festejemos!

Laureemos, pois derrubamos um governo há 25 anos, estamos derrubando um novo hoje e, certamente, derrubaremos outro no ano de 2041. Ah, meus amados, nada melhor do que as tradições e as garantias de que não estamos correndo o risco de evoluir.

Ora, pois teremos calma, não nos exaltemos. Assistamos ansiosos o desenrolar das decisões e julgamentos. A luta só termina quando virmos nosso objetivo alcançado! Tranquilizante, sobretudo, é saber que nosso objetivo é pontual e efêmero.

Enquanto isso, não deixemos de mostrar o nosso mais absoluto repúdio àquela parte da população que apoia e acredita na posição da atual liderança do nosso país, seria bom e certo ver todos esses vermelhos presos juntos com seu governo corrupto. Nós não! Nós não somos enganados pela propaganda comunista. Nós iremos transformar o Brasil, nem que precisemos acabar com todos eles!

Por isso, nunca abandonemos nossa causa, e iremos mostrar àquela parte do povo o mal que sua mesquinhez faz à sociedade. Afinal, seria maravilhoso que o burguês se tornasse pobre para entender o que é sofrimento. Queremos ver as instituições financeiras afogadas em sua ganância e, somente assim, construiremos um futuro justo para todos. Nós não somos enganados pelos ideais capitalistas. Nós iremos transformar o Brasil, nem que precisemos acabar com todos eles!

Sim, minha musa! Sim! Somo débeis e idênticos.

Vemos aproximar-se um fim. Algum fim. Ao menos o fim do assunto.

Assim, cessadas as comemorações, voltaremos aos nossos afazeres de bons e honestos cidadãos. Voltaremos a nos focar no dia-a-dia e no crescimento de nossos negócios.

De fato, alguns de nós em momento algum deixou seus afazeres. Nesses casos voltemos a empregar plenos esforços nessas demandas.

Sim, voltemos à nossa vida repleta de dignidade e virtude.

Voltemos às empresas que consomem nosso tempo e saúde em prol da promessa de um futuro brilhante.

Voltemos aos cargos públicos que exercemos com indiscutível distinção, mas pouco esforço.

Continuemos os processos e projetos que nos afastam de nossa família e amigos.

Tornemos a nos concentrar na prática de nossas religiões, como se fossem o único caminho da salvação.

Permaneçamos nos relacionamentos de fachada, que cultivamos por sermos incapazes de nos manter sozinhos.

Voltemos a cometer irregularidades no trânsito e outros pequenos delitos que não prejudicam ninguém.

Voltemos a baixar e compartilhar arte sem respeito ao trabalho do autor.

Ah meus caros! Voltemos a usar cartões de crédito para passar de fase nos jogos de celular.

Continuemos consumindo o café e o álcool que dizemos não necessitar, mas que tememos escassear.

Sim. Sigamos com nosso controlado e não prejudicial uso diário de maconha, pó e Rivotril.

Ora, não nos ofenderemos por pouca coisa. Pois, caso não nos enquadremos em nenhum desses aceitáveis desvios de conduta,

Então mantenhamo-nos justificando nossas falhas com o erro do próximo. Assim, na mesma linha, prossigamos a justificar nossos crimes com a insignificância em relação ao grande crime de outrem.

Voltemos a ter coragem de expor nossa opinião somente protegidos pela impessoalidade das redes sociais.

Agarremo-nos às nossas certezas e glorifiquemos nosso senso de justiça, bem como nossa capacidade de aceitar diferenças.

Por que negar? Sabemos que não existe a necessidade de confrontarmos nossa natureza, nossa inabilidade de mudança e nossa mansidão. Essas são as nossas virtudes.

Portanto vamos, irmãos e irmãs! Voltemos aos trens e ônibus lotados, voltemos para o aconchego do ar rarefeito da multidão.

Enfim, voltemos ao rebanho do qual temos pavor de desgarrar. Voltemos ao rebanho do qual nunca saímos. O rebanho no qual somos fortes. A posição de gado que nos torna especiais.

Somo todos especiais, enquanto formos parte do grupo.

Voltemos ao transito, aos prazos, às filas.

Voltemos à mesmice, à nossa ingênua rebeldia, à copiada opinião, à rasa informação!

Ó, informação!

Possível é a hipótese de não nos incluirmos em nenhum dos levianos erros apontados. Mas não somos capazes de fugir desse. Somos necessariamente reféns dessa Deusa. Ela nos concede apoio e confiança. Ela nos fornece todo o conhecimento que precisamos e, a única moeda que nos exige em troca, é que não questionemos sua certeza. Tão ínfimo pedido. Como podemos recusar?

Informação mastigada, deliciosa e facilmente digerida. Para nós, filhotes de passarinhos, incapazes de sermos independentes. Precisamos desse carinho e do conforto que a mídia nos dá. O conforto que nossa opinião estará sempre certa.

Em tempo, meus companheiros, o assunto acaba e nosso jornal voltará a tratar do que não temos interesse. Teremos menos assunto, mas somos dependentes e continuaremos consumindo.

Quando todos os acontecimentos que estamos presenciando se tornarem remota ideia ou vaga lembrança, talvez surja, independentemente de nossa vontade, uma consideração.

Em nenhuma hipótese assumiremos essa responsabilidade, mas, no mais profundo abismo de nossa consciência, saberemos que o atual governo, os que passaram e os que virão são inocentes. Crianças vítimas de pais irresponsáveis. Jovens delinquentes que nunca tiveram a oportunidade de saber o que era trabalho honesto. Pobres coitados. Atos viciados na origem. Nunca poderiam ter feito diferente.

Somos responsáveis, meus caros, pelos líderes e pelos marginais. Somos culpados por sermos vítimas.

Somos hipócritas, somos falsos, somos corruptíveis, somos temerosos a Chronos, somos nocivos, somos medianos. Somos o homem médio, a classe média, defendendo a razão média, somos apáticos, somos acomodados, somos adestrados.

Somos medíocres.

Deveríamos ser extintos. Deveríamos, mas não seremos. Mostraremos, sempre com orgulho, o poder de sobrevivência que ao covarde é inerente.

Acalmemo-nos! Respiremos fundo e não nos preocupemos. Não os abandonarei meus amigos e minhas amigas. Nunca apontarei as falhas de nenhum dos meus. Tudo que cantamos até o momento é justo e justificável. Sou seu paladino. Sou como vocês.

Poupo, então, o trabalho dos que se defendem acusando a falha alheia e me voluntario a guiar o exército de homens médios que formamos, pois dos medíocres eu sou o maior e em covardia sou catedrático.

Pois, ergamo-nos meu povo! Ergamo-nos, mas não o suficiente para nos destacarmos.

Assim, vamos estar atentos e informados. Não iremos permitir que sejamos manipulados. Nunca! Obedeceremos por vontade própria.

Estaremos alerta, pois quando os jornais da noite nos chamarem para derrubar um novo inimigo comum, assim faremos! Independentemente de motivo, pois somos mansos.

Iremos às ruas, pintaremos o rosto, faremos cantar o cisne e festejaremos. Pois podemos aguentar tudo, mas não aceitaremos jamais que ameacem o nosso direito de ser escravos.

Élio Cury Benazzi
Enviado por Élio Cury Benazzi em 06/04/2016
Reeditado em 09/08/2016
Código do texto: T5597209
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