Amor e intrigas

Amor absoluto e intrigas embusteiras

Há alguns meses, a televisão brasileira tem levado ao ar, pelo veículo da Rede Record, uma obra de dramaturgia que há de ter reverberado não apenas no senso comum, como também no juízo crítico reflexivo dos jornalistas, professores de literatura e críticos literários em geral. Trata-se da obra “Amor e intrigas”, cuja autoria é assinada pela escritora e poeta carioca Gisele Joras.

É fato que, nos últimos anos, notadamente com a difusão irrefreável e irreversível da tecnologia fortemente atrelada aos (e subsidiária dos) meios de comunicação contemporâneos – tanto os chamados “populares”, quanto os designados de “científicos” (numa subdivisão antiqüíssima da ciência clássica) –, tem havido discussões nunca antes contempladas nos meios acadêmicos, sobretudo nos de ciências humanas, com destaque à área de Letras, sobre dois aspectos socioliterários ora, pelas razões apresentadas, bastante relevantes: a análise da existência da fronteira entre o “popular” e o “erudito” e, como conseqüência, no campo da crítica literária, a abordagem ontológica não de um corpus, mas de um grupo de corpora textuais que até então foram rejeitados pela ciência da literatura, quer por não existirem, quer por terem constituído, até então, material de somenos importância por sua qualidade incompatível com os cânones da disciplina textual.

Assim sendo, em função do alargamento óbvio do campo ontológico nas últimas décadas, é mister que alarguemos, outrossim, o próprio cânone da crítica literária, abarcando, pois, estilos textuais e manifestações de discurso e comunicação que, como foi dito, têm estado completamente fora do material analisável academicamente, ou, no máximo, subjacente a ele. Tenho alertado em inúmeras aulas, congressos e textos publicados sobre a importância da ancoragem acadêmica em discursos como os Blogs (modalidade em que as três pessoas do discurso – locutor, interlocutor e referente – coincidem), assim como, reiteradas vezes, tenho apontado a importância de que se observe, mais pormenorizadamente, a dramaturgia televisiva.

O material artístico no texto de “Amor e intrigas”, portanto, tem-me fornecido importante esteio empírico no que tange à minha mais côncava convicção: devemos seguir o exemplo da ciência ao longo dos séculos e abandonar os eventuais preconceitos à medida que novas realidades de novos mundos se nos apresentam.

O primeiro dos preconceitos patentes, que impede a assimilação e conseqüente estudo, por acadêmicos, do discurso teledramatúrgico é a inegável barreira invisível (ou nem tanto) que os homens de ciências erigem contra quaisquer manifestações de entretenimento; tanto maior é a barreira quanto mais próximo de um público muito grande for o entretenimento em questão. Levanto, de há muito, e não isoladamente, a tese de que essa barreira erguida pela ciência, no caso das ciências sociais, se dá pelo fato de que a dificuldade de sistematização (obrigação tácita e explícita da ciência desde Descartes) é muito mais vultosa quando se lida com um objeto de estudo mais numeroso. Por essa razão, tenho visto que equívocos e obsolescências literárias têm sido cometidos ao longo dos decênios exatamente por consciência dos críticos de sua parcial ou total incapacidade de lidar com a recepção de um discurso por parte de público que vá além das pomposas estantes de mogno emparedadas nas portentosas bibliotecas segregacionistas.

Na verdade, longe de eu estar mencionando uma suposta exceção, cito o que tem sido a mais peremptória regra na ciência: a sistemática recusa em aceitar-se não apenas um novo ambiente, mas, sobretudo, a assaz sistemática recusa em aceitar-se o que seja partícipe do juízo de gosto comum, satiricamente encapsulado pelos homens de Letras – ao longo dos anos... e apesar das evidências em contrário – como “popular”. Poder-se-ia citar, aqui, a ferrenha crítica à abordagem modernista na literatura brasileira (sendo o correlato movimento expressionista, na Europa, não menos vilipendiado pelos cânones de então), e, mais recentemente, a (constrangedora) saraivada de críticas e pedras sobre o cordel, sobre a dodecafonia, sobre a arte carnavalesca – saindo ao encalço dos consternados críticos nomes do jaez de um Patativa do Assaré, Igor Stravinsky, Marlos Nobre, Artur Bispo do Rosário...

Penso que quarenta anos após o turbulento ano 1968, tenham os críticos literários olvidado por completo as ações levadas a cabo sob inspiração de Marcuse, Adorno, Horkheimer, Habermas, Maiakovski, Benjamin, e subestimado a importante indústria cultural como simples "ornato, arrebique para ociosos"... É mais abrangente do que se supunha a pergunta de um Zuenir Ventura nos dias que nos rodeiam: “2008: o que fizemos de nós?” Se as lições pregressas foram relegadas ao oblívio por gerações desinteressadas e fadadas à falta de asserção crítica, que ao menos a reflexão dos intelectuais não perca de vista as minuciosas lições carpidas na vindima da História, e saiba haurir a taça com o vinho do juízo artístico sem a cica do preconceito gratuito e estúpido que procura regularmente excluir manifestações que satisfaçam o prazer de quaisquer classes sociais. Essa é a lição de Frankfurt, Paris, Rio de Janeiro, Nova Iorque...

Retornando à questão estritamente literária (muito embora a literatura não seja estrita, por correlacionar-se a todo tipo de texto, verbal e não-verbal), podemos partir do cânone estabelecido, e dar nosso primeiro adejo exatamente sobre a clássica tripartição sobre os gêneros da literatura (Épico, Lírico, Dramático), estabelecidos antes mesmo de Aristóteles em sua “Poética”, enfatizando-se, ora, o gênero dramático. Assim como o Estagirita se debruçou sobre material ainda virgem de sua época – a tragédia e a comédia gregas de seu entorno, com todo o seu "sabor" e "saber" (palavras que, em latim, são cognatas) –, deveria o crítico literário contemporâneo observar com menos viés e mais cientificidade o que há de novo em seu tempo.

No caso da literatura dramatúrgica, pode-se aferir a qualidade literária de um discurso como o presente em “Amor e intrigas” já mesmo a partir de seu título. Ocorre, aqui, a aposição de dois substantivos abstratos de ação, um constante do vocabulário positivo (“amor”) e outro do léxico negativo da língua (“intrigas”), constituindo uma antítese tão propícia à mais recôndita estrutura da alma brasileira, que, como tenho repetido, é das mais barrocas do nosso planeta. É de se estranhar muitíssimo que, em terreno social tão repleto de contradições e hipérboles, exageros e paradoxos (riquezas e pobrezas; luxo e miséria; lei e desordem; erudito e popular) tenhamos negligenciado uma das manifestações mais próximas e fidedignas à complexidade citada – a telenovela.

Voltando ao título da obra que melhor ilustra este artigo – “Amor e intrigas” – vê-se o uso do lexema de valor positivo (“amor”) no singular, em adição ao lexema de valor negativo (“intrigas”) no plural. Uma das características da língua portuguesa, em seus meandros internos, é exatamente o fato de que a flexão de número singular tem a capacidade de enaltecer o vocábulo assim flectido, ao passo que, contrariamente, o plural é de cunho pejorativo, ocorrendo com muita freqüência um aviltamento ou a passagem de um termo de abstrato a concreto com a mera flexão deste do singular para o plural, conforme pode nos ilustrar a passagem de “Bem” para “Bens”, “Terra” para “Terras”, “Água” para “águas”.

Assim, “Amor e intrigas” é um convite sub-reptício ao interlocutor (ou receptor, na acepção de W. Iser) , que, inconscientemente, percebe o universo brasileiro, barroco, abstrato-concreto, nobre-vil que se lhe defronta, espreitando-o como o fazem todos os bons discursos artísticos no frigir inexorável do tempo. Esse sentido quase cenestésico presente na análise semiótica feita acima é precisamente o que se detecta na (des)concertante melodia interna dos personagens da obra, de caracteres dúbios, voláteis, imprecisos - exatamente como a natureza humana sói ser.

Ainda farei uma análise semiótica (nas pegadas de Barthes e Wittgenstein) mais profunda sobre os personagens da trama, e seus nomes plurissignificativos, ultratextuais: Alice (valente e ingênua como a de Lewis Carroll), Valquíria (heróica e com um código de valores rígido, como as amazonas homônimas do Asgard da Germania), Felipe (magnânimo, de estirpe real e nouveau-riche, como o de Shakespeare), Dorotéia (disfemismo distópico da efêmera e irrealizável Dulcinéia de Cervantes), Débora (sacerdotisa hebraica, justa e com a missão hercúlea de assentar um povo rude), Petrônio (como o escritor romano parodista, célebre por ser autor de "Satiricon"); e assim por diante. Ocorre que, num texto com tal grau de atenção e apuro, nada ocorre aleatoriamente, e tudo, pois, é matéria-prima de anamnese.

Desde o “terror e compaixão” de Aristóteles, até a “quebra” de Brecht, o “estranhamento” de Chklovski, o “animal artístico” de Nietzsche, pode-se começar a refletida análise de um hipertexto como “Amor e intrigas”, sobremaneira justificado, como se mostrou, pelos critérios histórico, empírico e ôntico da crítica literária, e por sua necessidade constante de observar novas realidades.

Com artifícios retóricos inerentes à dramaturgia, a novela “Amor e intrigas” revitaliza técnica de gancho preconizada alhures e imortalizada por Cervantes. Ao abrir-se a esmo o I volume das aventuras do cavaleiro de triste figura, eis que se nos depara, no Capítulo IX do LIVRO SEGUNDO, a seguinte introdução, ipsis literis: “Deixamos no capítulo antecedente o valente biscainho e o famoso D. Quixote com as espadas altas e nuas, ameaçando descarregar dois furibundos fendentes, e tais que, se em cheio acertassem, pelo menos os rachariam de alto a baixo como duas romãs” (W.M. Jackson Inc. Editores, Tradução de ninguém menos que António Feliciano de Castilho).

Ora, se a torto e a direito se evoca o texto cervantino para se justificar e enobrecer a linguagem jornalística (com ênfase na função referencial, segundo acepção de Bühler e Jakobson), é de se estranhar por que ocorre omissão do mesmo texto cervantino como arauto longevo da atual telenovela. Outros ínclitos autores, como Machado de Assis, Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, são amiúde ressuscitados quando se trata de enaltecer a qualidade intrínseca do atual discurso, mas parece que esquecem ou omitem o fato de que esses mesmos autores, a par de outros, evidentemente deram à literatura sua feição contemporânea, quebrando barreiras entre o povo e os eruditos, entre o sublime e o picaresco, entre o fenômeno e o numinoso (na acepção de Kant) – entre a tela e o livro.

A telenovela em questão, como um vate, anuncia a singularidade absoluta e maiúscula do “Amor” em movediço terreno de múltiplas e comezinhas “intrigas”. Trata-se de uma metalinguagem icônica do que urge que os críticos e professores especulemos: a inserção da teledramaturgia no rol dos discursos perquiridos na seara acadêmico-estudantil, para que sobrevenha a corajosa análise de todos os outros discursos que agora vêm a lume, como os Blogs e congêneres.

Se havia até hoje um pudor em relação à inserção citada por alegar-se que faltava qualidade ao discurso teledramatúrgico, “Amor e intrigas” encerra a pá de cal sobre os destroços temerosos, e apresenta importante referencial lírico e teórico para a tão esperada exegese. Espero que saibamos dar o devido valor à trama enfocada, e partamos, com ela, ao manancial literário e artístico que se nos abre, tanto com nosso assentado aparato crítico já existente, quanto fornecendo novo instrumental para que se cosam reflexões pertinentes e relevantes para futuros discursos com a notória excelência de uma obra como “Amor e intrigas”, para cuja autora, Gisele Joras, devem voltar-se as atenções populares e eruditas de ora avante.

O fato de esta novela ser um notório veículo de prazer acessível a milhões de receptores, em vez de constituir lacre anti-acadêmico, deve, isso sim, servir como apanágio das duas mais atávicas e intrínsecas qualidades das verdadeiras obras artísticas: o alto e cuidadíssimo padrão discursivo e a acessibilidade.Afinal, não foi o nosso bom e velho Horatio quem melhor definiu o aprendizado e a sapiência como frutos do DELERE CUM DELECTARE?

Ensinar deleitando-se é a vocação crítico-literária de "Amor e intrigas", que, como se vê, é uma obra-piloto no alcantilado e vasto campo das Artes Literárias.