O mundo e a pós-modernidade

Pós-identidade

Não é fácil identificar, com toda a certeza, em que lugar da história fica a transição entre o que é moderno e o que é pós-moderno, ou mesmo se essa transição existe, independente da instância. Seja nas artes, na tecnologia, na ciência ou mesmo na identidade cultural e individual de cada sujeito. Para muitos, a pós-modernidade não passa de uma modernidade tardia, ou uma continuação da modernidade no auge do capitalismo e da industrialização. É visível, no entanto, que existem acontecimentos na segunda metade do século XX que remetem a uma ruptura com antigos padrões, e que podemos identificar como marcos do início da “pós-identidade”. Chamo assim como forma figurativa em que tomo a identidade como uma representação determinada, ou seja, um conjunto de conceitos, valores e idéias que um indivíduo pode atribuir a si para se localizar em um meio social. No entanto, esse conjunto tem sido fragmentado devido aos avanços tecnológicos, à divergência de idéias, à pluralidade de conceitos e à ampla difusão das culturas de massa através da mídia. Não existe mais uma identidade, mas identidades. O fácil acesso à informação faz com que hoje se possa defender fervorosamente um ideal que, amanhã, já estará dissolvido e esquecido no inconsciente de entusiastas. E é isso o que está além de uma definição propriamente dita de identidade pós-moderna, é o que eu, novamente, chamaria de “pós-identidade”.

Ser ou não ser, tanto faz

A modernidade nasceu de uma importante ruptura com o passado. Essa ruptura é associada à valorização do humano e do racional, que são as bases do Iluminismo. Para Stuart Hall, o sujeito do iluminismo “estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior” (HALL, 1999: p. 10). No entanto, com o passar do tempo, a sociedade se deparou com novas visões que brotaram de movimentos estudantis, juvenis, antibélicos, feministas, raciais, e dentre outros de cunho social. A rebeldia e a contracultura, que queriam abandonar velhos estereótipos e romper com as antigas vanguardas, foram os primeiros passos para a multi-identidade.

A intensidade dos discursos e a teatralidade desses movimentos atraíram a atenção dos jovens consumidores da época, até o ponto em que saturaram e se tornaram tão superficiais quanto os produtos vinculados em propagandas e comerciais de televisão.

Quando se pensava que todos os limites para as artes já haviam sido alcançados, acontece outra ruptura com o modernismo. A arte utilitária, limpa e funcional deixa de lado esses papéis para dar espaço à desordem, ao minimalismo e à arte pela arte. É o que muitos gostam de chamar de banalização da arte, que se populariza e atinge as grandes massas, como é o exemplo da pop art e, mais tarde, da arte digital.

Realidade e Consumo

A livre circulação de informações, idéias, serviços e bens de consumo possibilitou tanto a expansão do alcance da globalização e do capitalismo, quanto a compressão do espaço e do tempo. A tecnologia herdada da primeira e da segunda guerra mundial permitiu que fosse possível unir pessoas de diversas localizações e difundir imagens de várias partes do mundo, em que a televisão via satélite e a internet são os principais meios de comunicação. Não é preciso sair da poltrona para ver como são os monumentos de Roma, por exemplo. E o capitalismo atingiu com força esse setor das comunicações, e mistifica o consumo ao fazer da propaganda palco para a espetacularização de seus produtos e da cultura de massa. Cada vez mais essa mídia cria modelos prontos de conduta, como a família feliz e unida das propagandas de margarina, a elegância e sofisticação dos outdoors de cosméticos e o corpo atrativo e saudável dos comerciais de cerveja.

Não se vendem mais produtos, e sim imagens. O surrealismo midiático imprimiu etiquetas que rotulam as pessoas e dizem como elas devem se comportar, e concede, em troca, a ilusão de que um ou outro produto tem a capacidade de proporcionar satisfação e felicidade plenas, ou que é preciso seguir os ideais transmitidos pela imagem para atingir a sua auto-realização e alimentar o narcisismo individual. Qualquer reflexão a respeito dessas relações e outros assuntos mais profundos pode se tornar um incômodo, e as causas sociais já não têm mais tantos adeptos.

O fantasma pós-moderno

O fantasma pós-moderno de Jair Ferreira dos Santos é resultado de uma ressaca desse bombardeio de imagens e informações. “Sua vida se fragmenta desordenadamente em imagens, dígitos e signos - tudo leve e sem substância, como um fantasma. Nenhuma revolta. Entre a apatia e a satisfação, você dorme” (SANTOS, 2000: p. 9). A sociedade pós-industrial passa a ser baseada na estetização da realidade e na superestimação da imagem, e ignora antigos valores e sentidos que não se enquadram nesse processo. Palavras e sentimentos são reduzidos a clichês e os olhos da humanidade se fecham para os mistérios do mundo, e deixam a cargo da ciência desvendá-los e destruir seus encantos. Os limites entre realidade e ficção se misturam cada vez mais, e parece que se vive com maior intensidade aquilo que existe através da tela da televisão ou mesmo de um vídeo game portátil. Resumida a simulacros, a vida pós-moderna se desprende dos compromissos e das causas sociais para dar espaço às tecnologias e ao consumo personalizado, que esconde os processos iniciais que muitas vezes envolvem exploração de mão-de-obra barata, trabalho infantil e a morte de milhares de animais. Coisas que quase ninguém se interessa em saber.

Pra não dizer que não falei das flores

Em contrapartida aos argumentos críticos, a tecnologia pode ser uma poderosa aliada quando bem administrada. Facilita a difusão de idéias e informações que podem ser essenciais para a formação de um indivíduo, como programas e sites culturais, enciclopédias e livros on-line e mesmo o computador utilizado para escrever este e outros ensaios. A amplitude de idéias e a pluralidade do pós-modernismo abrem portas para novas manifestações artísticas que fogem da mesmice das obras estáticas e transcendem os limites da interação entre o observador e a obra.

A identidade multilateral também pode ser um passo considerável para a aceitação das diferenças étnicas, culturais, sociais e de gênero entre as pessoas . No entanto, a prevalência é pessimista no que diz respeito ao futuro da personalidade do indivíduo pós-moderno. A tendência é se deixar levar pelo fluxo da superficialidade, e resta apenas esperar que o rumo da história não se resuma a simples imagens e representações.

Bibliografia

ARBEX, José; TOGNOLI, Cláudio Júlio. O mundo pós-moderno. São Paulo: Scipione, 1996.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

LAMPERT, Ernani (org.). Pós-modernidade e conhecimento: educação, sociedade, ambiente e comportamento humano. Porto Alegre: Sulina, 2005 Ernani Lampert (org), Porto Alegre, Editora Sulina, 2005.

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2000.

SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI. No loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Cynthia Funchal
Enviado por Cynthia Funchal em 17/11/2008
Reeditado em 19/11/2008
Código do texto: T1287617