Análise Literária: Vidas Secas

ANÁLISE LITERÁRIA: VIDAS SECAS

RESUMO

O romance “Vidas Secas” narra o episódio de uma família de retirantes em busca de um lugar que lhes ofereça meios de melhorar suas condições de vida. Essa família é composta por Fabiano, homem humilde e trabalhador; Sinha Vitória, esposa resignada e fiel; o Menino mais novo e o Menino mais velho, crianças inocentes, representantes do anonimato social; além da cachorra Baleia, animal que se humaniza em relação à dura realidade por que passa Fabiano e sua família. Durante um longo percurso por um caminho que parece interminável, os personagens enfrentam atrocidades várias, entre as quais, a fome, a sede e a falta de um lugar onde pudessem se estabelecer. Depois de andarem muito, os retirantes encontram uma casa que parecia abandonada. Eles se aproximam e entram nela, mas logo chega o dono, para quem Fabiano, depois de oferecer seus préstimos , começa a trabalhar, sendo vítima da seca, sua maior antagonista, e da exploração por parte do proprietário das terras. Na fazenda, a família permanece por algum tempo, cuidando do rebanho do proprietário até que, desiludidos com o aparecimento das arribações que, para eles “eram coisas da seca”, deixam a fazenda numa manhã bem cedo e continuam sua busca estrada a fora, na tentativa de um dia encontrarem um alento para suas vidas.

NARRADOR

A história é contada por um narrador heterodiegético, que parece estar em todos os lugares ao mesmo tempo, inclusive no interior de algumas das personagens, externando a angústia e os anseios de cada um deles, o que caracteriza uma onisciência seletiva: “O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça.” Nesse caso, observa-se ainda um narrador que mantém uma relação transcendente aos limites entre narrador/personagem. Em Vidas Secas, esse narrador vivencia cada momento da vida dos retirantes e parece sofrer com eles: “Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso(...)Assim um homem não podia resistir.” É , portanto, um narrador que, mesmo de fora na construção da história, está muito próximo de cada um dos personagens , ou seja, há uma relação narrador/personagens indissolúvel e amistosa entre um e outro.

LINGUAGEM

O romance possui uma linguagem compatível com todo o processo de construção do texto: desde sua adequação às situações expressas no contexto, até o nível de fala dos seus personagens. As frases curtas traduzem a objetividade do autor em expressar a seca em vive o sertão nordestino. “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.” Nota-se ainda uma consonância entre linguagem e nível sócio-cultural, que se evidencia na forma como é reproduzida a fala de Fabiano, sem nenhuma instrução, não se comunica através de frases desenvolvidas, mas de expressões monossilábicas: “Fabiano, que não esperava semelhante desatino, apenas grunhia: - Hum! Hum!” Como uma forma de trazer à tona os sentimentos e anseios de seus personagens, o autor faz uso do discurso indireto livre, recurso que possibilita as falas em forma de “flash” no meio da narrativa: “Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato.” O pequeno número de adjetivos empregados na caracterização do ambiente e dos personagens, não só mostram imagens vivas de cada situação, como também exteriorizam o estado de espírito dos protagonistas: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.” Nesse sentido, linguagem e contexto estão intimamente ligados, buscando expressar clara e objetivamente a realidade de muitos que vivem como Fabiano e sua família.

O ESPAÇO

A maior parte da história se passa na caatinga, que funciona cimo um dos agentes causadores das más condições de vida por que passa Fabiano e sua família. Trata-se de um lugar árido e inóspito, que, aliado à seca, não oferecia meios de sobrevivência, o que fazia com que os retirantes continuassem numa mudança constante, caracterizando assim, um aspecto circular na obra, já que a história começa com a MUDANÇA da família e termina com a FUGA: a família deixa o lugar onde está, na tentativa de se estabelecer na vida.

OS PERSONAGENS

Os personagens da história são portadores de total relevância no processo de construção da narrativa. Cada um deles, com suas particularidades, são apresentados em capítulos diferentes, sem com isso, quebrar a linearidade da trama. Eles representam pessoas sofridas que, na sua simplicidade, retratam o descaso social evidente na sociedade brasileira. Fabiano é o homem de aspecto animalizado “lançou de novo aquele som gutural”, tanto pela sua condição de analfabeto, quanto pela sua afinidade com o elemento da natureza “Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele.” Fabiano, por ser um homem sem instrução, é vítima de todo tipo de exploração, a começar pelo patrão, que lhe toma quase todo o dinheiro na hora em que está negociando a compra do gado; depois, vem o episódio do soldado amarelo que, num abuso de autoridade o prende sem nenhum critério.

A situação difícil de Fabiano o conduzia a uma espécie de degradação humana, o que o tornava num ser objeto, sem nenhuma importância “Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos esperasse.” Além disso, ele não se aproximava dos homens, pois tinha dificuldades de se expressar, fato que o fazia sentir-se inferior aos outros. Por outro lado, mesmo negando a sua condição humana “você é um bicho, Fabiano.”, possui um desejo forte e poderoso, que é o de viver, na sua inocência.

Sinha Vitória é um exemplo de resignação e esperança. Vive perdida em pensamentos que se confundem com o real e o imaginário, aceitando com paciência a realidade que lhe é imposta pela vida. Enquanto aguarda uma oportunidade de melhorar sua condição social, procura orientar seu marido, Fabiano, a fim de que ele não seja explorado, principalmente pelo proprietário da fazenda, sendo por isso, sua fonte de apoio, porém sem muito efeito, pois a necessidade fazia de Fabiano um homem subordinado e impotente diante da situação em que se encontra. O que a motivava era a fé em Deus e a vontade de conseguir a tão sonhada cama de lastro de couro, que representava para ela a possibilidade de ser gente “Não podiam dormir como gente”.

Enquanto Fabiano oscila entre sua condição de homem e de animal, Sinha Vitória assume a liderança em relação ao rumo que a família deve tomar e decide a hora de partirem do local onde se encontram por não achar ali meios de sobrevivência. Daí ela ser vista por seu esposo como o “único ser que o compreendia”. Sinha Vitória é, portanto, a mulher que sofre, que reza, que em determinados momentos fraqueja, mas que não deixa a ternura de mãe e de esposa sair do coração.

Os filhos do casal simbolizam a inocência e a solidão. O menino mais novo admira o pai e procura imitá-lo. Essa fantasia torna os pensamentos confusos, revelando a busca de uma identificação com o pai, Fabiano. Por outro lado, falta de interlocutores para que ele pudesse falar das suas aventuras o deixava chateado e triste, o que confirmava a solidão que sentia: “Não descobrindo neles nenhum sinal de solidariedade (...) Achou-se abandonado e mesquinho, exposto a quedas e marradas.” Nesse sentido, a incomunicabilidade passa a ser uma marca da família retirante, tanto pela inocência dos meninos que tudo desconheciam, quanto pela ausência de um vocabulário mínimo que lhes desse condição de diálogo: “Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos(...) Como podiam os homens guardar tantas palavras?”

O menino mais velho, no entanto, já demonstrava uma certa curiosidade, tentando, talvez, compreender e contextualizar algumas expressões desconhecidas, como no momento em que tenta entender o significado da palavra inferno. Para isso, recorre ao pai, que lhe ignora a pergunta. Sem êxito, dirige-se à mãe, de quem recebe informações insuficientes sobre o que saber. Sinha Vitória talvez não soubesse de fato o que era realmente “inferno”. Com a insistência do menino, ela irrita-se e o agride, cerceando assim o direito ao conhecimento. Isso caracteriza a condição de seres passivos dentro do contexto social e a aproximação com o mundo anima representado na figura de Baleia.

BALEIA

Se por um lado vê-se uma família que se degrada chegando à condição de animal, por outro, nota-se um animal que parece humanizar-se. Baleia, muitas vezes, solidariza-se com os retirantes, como no momento em que matou o preá e não comeu sozinha, entregou-o a Fabiano.

Baleia, em Vidas Secas, parece possuir “alma” que partindo deste mundo “Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme (...). O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes”. Por isso pode ser considerada uma personagem que transcende os limites de um simples cão. Ela assume a função de um ser que pensa e que possui a esperteza de homem “O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou.” A relevância atribuída à cachorra Baleia simboliza o reconhecimento de um ser que, ora animal, ora criança, tematiza o lirismo presente no romance.

SOLDADO AMARELO / SEU TOMÁS DA BOLANDEIRA

O Soldado amarelo e seu Tomás da Bolandeira são dois personagens que estão nos extremos da escala cultural. O primeiro simboliza a arbitrariedade restrita ao uso de uma farda, que lhe dá a condição de representante da Justiça, porém sem nenhum mérito para fazê-lo. O Soldado, no uso de suas “atribuições” conferidas pelo governo, tripudia sobre as pessoas indefesas, entre as quais Fabiano, que depois de insultado por ele, foi preso inocentemente. O outro, seu Tomás da Bolandeira, representa um referencial para o marido de Sinha Vitória não só na perspectiva de um homem poderoso e humilde, como também cultural, já que tratava de uma pessoa esclarecida, “porque lia demais”. Nesse sentido, ele passava a ser, para Fabiano, uma espécie de modelo que o oprime, mas o encanta, por ser um homem bom e lido. “Em horas de maluqueira, Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo...” Tomás da Bolandeira é, pois, uma pessoa que, sem querer, inferioriza Fabiano, não enquanto ser humano, mas do ponto de vista cultural.

O TEMPO

O tempo no romance se conflui numa perspectiva de presente e futuro condicional, quando tudo para a família é baseado em hipóteses. Os protagonistas vivem um presente de dificuldades e sonham com um futuro que não oferece nenhuma garantia de melhores condições de vida. É um tempo que não se percebe passar, que parece tornar perene o estado de calamidade vivida pelos retirantes. Em determinado momento na história, o autor faz uso da prolepse, procurando antecipar o destino dos filhos de Fabiano e Sinha Vitória, se bem que não seja um futuro promissor, mas uma repetição daquilo que os pais são no momento presente “Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados, por um soldado amarelo.” Trata-se, portanto, de um tempo psicológico, que não tem presa de passar.

INTERPRETAÇÃO

O Romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é uma obra através da qual é retratada a realidade de inúmeras pessoas, vítimas do descaso social e da exploração humana. A obra procura denunciar a injustiça praticada pelos que assumem o poder. O fiscal simboliza a extorsão acometida aos pequenos comerciantes; o Soldado amarelo representa a corrupção policia, evidenciada na prisão arbitrária de Fabiano; O dono da fazenda abandonada é o símbolo do patrão injusto, desumano e medíocre, que suga os funcionários a todo momento, sem nenhum senso de solidariedade e respeito para com o ser humano. Fabiano e sua família são retrato de muitos retirantes que vivem sem nenhuma proteção e sem o reconhecimento de que também são seres humanos. Por isso. Pode-se dizer que Vidas Secas é uma obra que tenta sensibilizar o leitor para as causas sociais, utilizando como instrumento a palavra escrita. Ler Vidas Secas é conhecer um pouco do sertão nordestino e conviver com Fabiano e sua família, questionando o porquê de tanta injustiça social, pois na mesma situação, encontram-se muitos Fabianos e Sinhas Vitórias em busca do mínimo que um ser humano pode querer: que é viver.

REFERÊNCIAS

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2004.

Teixeira Neto
Enviado por Teixeira Neto em 25/03/2009
Código do texto: T1504964
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