Magia, Mana: aspectos centrais a partir das obras de Durkheim e Mauss

Introdução

Este Ensaio versará sobre algumas questões julgadas centrais no pensamento de Emile Durkheim e Marcel Mauss. Desde já – a fim de evitar frustrações prematuras -, sinalizo para o leitor que espera um tratado de história das idéias que vá a outro lugar. Tal empreendimento, além desgastante, foge demasiado do propósito deste trabalho. Ciente da diversidade e da complexidade das teses levantadas pela chamada escola sociológica francesa. Sem querer fazer uma análise histórica da formação intelectual de seus principais representantes, o que se propõe é uma apresentação sucinta (e diria também, comparativa) das concepções durkheimiana e maussiana de magia.

Apesar da proximidade intelectual, do vinculo parental e da relação tio-sobrinho (ou mestre-discípulo), há algumas diferenças que podem ser assinaladas entre Durkheim e Mauss. Se o primeiro pode ser definido por um sociologismo estrito (marcado por um dualismo disciplinar, opondo sociologia e psicologia), que postula a preeminência da sociedade em detrimento do indivíduo, da necessidade de estudar o “fato social como coisa”, enfim, sendo um autor que pretende fundar um conhecimento científico da vida social. O último nos apresenta uma perspectiva não tão cientificista quanto a durkheimiana, talvez isto se justifica pela célebre noção de fato social total, ou seja, o homem deve ser considerado em todas as suas dimensões (sociológica, biológica e psicológica), o que, em certo sentido, inverte privilégio exclusivo dado ao social.

Recapitulando. Se Durkheim é um sociólogo de carteirinha, conhecido como o pai fundador da sociologia científica. Mauss abre uma brecha para a antropologia, pois é o homem, em todas as suas dimensões que o interessa. Outra diferença se insinua. Além do contraste entre o “fato social como coisa” e o “fato social total”. Por ser mais “antropólogo” do que seu mestre, Mauss (apesar de não ter realizado um trabalho de campo) é um defensor inveterado da prática etnográfica, tão em voga no seu tempo. E é justamente este interesse pela etnografia que o leva a um truísmo, a uma constatação que, hoje, nos parece óbvia – mas que nem sempre foi -, as culturas humanas divergem umas das outras. Numa só palavra, trata-se do problema antropológico da diversidade cultural.

Em síntese, são estas duas diferenças que gostaria de ressaltar a fim de fazer uma reflexão esclarecedora acerca da noção de magia nas perspectivas de Durkheim e Mauss. Descortinando as continuidades (e, sobretudo, as descontinuidades) que podem ser extraídas de duas obras já clássicas da antropologia da religião, quais sejam As formas elementares da vida religiosa (1912) e Esboço de uma teoria geral sobre a magia (1904).

Durkheim e a religião

A sociologia durkheimiana da religião gravita em torno de uma oposição muito conhecida por todos nós, o sagrado e o profano. Segundo o autor, são duas categorias irremediavelmente inconciliáveis, não há passagem entre elas, por isso mesmo, não se misturam. Ora, para Durkheim, o sagrado corresponde à sociedade, o profano ao indivíduo. E, há uma boa razão para isto. As coisas sagradas, em geral, requerem os mesmo sentimentos de respeito e veneração que os fatos sociais. Isto é, da mesma forma que a sociedade, o sagrado é algo que se opõe ao homem (entende-se aqui, indivíduo). Falei de sagrado e profano, sociedade e indivíduo, resta ainda uma última antinomia, esta que constitui o objeto deste ensaio. O contraste entre religião e magia. Teríamos, assim, a seguinte equação. O sagrado e a sociedade estão para a religião assim como o profano e o indivíduo estão para a magia. Talvez seja por isso que as religiões sejam “gregárias”, no sentido de reforçar os laços de solidariedade entre seus membros e de rememorar crenças e sentimentos coletivos. Não é concebível, por assim dizer, religião sem grupo social. O contrário acontece com a magia segundo o autor, pois trata-se de uma atividade anti-social, que se desenrola em lugares marginais, praticada sempre por um individuo, em geral, solitário. Se há religião tem sacerdotes e fiéis, a magia tem feiticeiros e clientes. Existe algo de sinistro na segunda que falta à primeira.

Tudo isto nos parece evidente. Todavia, há uma questão que precisa ser resolvida. Se o sagrado constitui um efeito da sociedade, como este sentimento veio à luz? A reposta reside naquilo que Durkheim chama de “efervescência coletiva” ou “horda primitiva” (como queiram), concepções que sugerem que a vida coletiva engendra no indivíduo, sentimentos marcados por um alto grau de emotividade que o faz sair de si mesmo. Sentimentos estes, que são sempre exteriores e superiores aos dos próprios homens enquanto sujeitos individuais. Embora seja resultado da composição dos seus membros, o social é algo que está acima deles, ele é “o todo, e não a mera soma de suas partes”. Em algumas situações, os homens sentem a necessidade de fixar tais sentimentos em objetos e seres (animais e vegetais) que os cercam. O que explica o porquê coisas tão toscas, artefatos tão rudimentares, receberam, nos quatro cantos do mundo, um teor sagrado. Mas é preciso frisar, as coisas são sagradas porque são, antes de tudo, sociais. E não o contrário.

O lócus privilegiado do sagrado é a igreja, as igrejas implicam sempre uma congregação de homens, ou melhor, de fiéis. Não existem “igrejas mágicas”. Os mágicos preferem a solidão à convivência, a escuridão lhes agrada mais do que a publicidade. É o que é pior, depois de sustentar as semelhanças que existem entre as práticas mágicas e as religiosas, Durkheim admite que as primeiras tendem a profanar as segundas. As predileções do autor são tão evidentes que é possível entrever um privilégio analítico pela a religião e a sociedade. Restando a magia, que estaria associada ao indivíduo, uma caracterização particularmente negativa.

Os três aspectos (coercitivo, exterior e genérico) do fato social elencados nas Regras do método sociológico (1898) são indispensáveis para o entendimento da religiosidade humana. Os fenômenos religiosos por serem sociais devem necessariamente apresentar tais propriedades. É o que já mencionei anteriormente. A definição que Durkheim dá ao fenômeno religioso passa necessariamente por sua concepção de fato social como coisa. Sendo sui generis o fato social exige uma ciência (dotada de uma metodologia) própria que o apreenda na sua especificidade. Outra antinomia importante do pensamento durkheimiano, a sociologia não deve se confundir com a psicologia, se esta se debruça sobre representações individuais, aquele se volta para as representações coletivas. Ater-me-ei a este ponto.

A noção de representação constitui um dos carros-chefe das ciências humanas e sociais, em geral, da escola sociológica francesa, em particular. É importante ressaltar que apesar do conceito ter alcançado notoriedade na sociologia de Durkheim, isto só foi possível graças ao diálogo estabelecido entre o autor e a psicologia da época. Para os psicólogos do seu tempo, apesar das representações mentais (psíquicas) resultarem de processos fisiológicos, é como se as primeiras gozassem de uma independência relativa. A vida mental experimenta certa autonomia em relação à vida orgânica. O mesmo raciocínio poderia ser aplicado, agora, comparando as representações mentais (individuais) com as representações coletivas. Estas constituindo uma síntese – para utilizar uma expressão que gosto bastante – sui genereis daquelas. Mais uma vez, a sociedade é a totalidade que abrange os seus membros, sem se reduzir as suas partes. Ou seja, cabe a psicologia estudar estas “partes”, enquanto a sociologia deve ficar com o todo. Não é a toa que o sociólogo francês define a sua sociologia religiosa como um estudo das representações coletivas.

Atentando para as antinomias (sociedade e indivíduo, sagrado e profano, religião e magia, sociologia e psicologia) que fundamentam o próprio pensamento durkheimiano, sem esquecer o escopo do presente artigo, o contraste da noção de magia em Durkheim e em Mauss, gostaria, com o intuito de concluir este tópico, de argumentar que para o primeiro as práticas mágicas só podem ser compreendidas como um contraponto dos fenômenos religiosos. Da mesma forma que o indivíduo, a magia representa o lado obscuro da sociologia durkheimiana.

Mauss e a magia

Marcel Mauss, talvez seja o maior representante, obviamente depois de seu tio Durkheim, da escola sociológica francesa. Por esta razão, seus postulados convergem, em muitos aspectos, ao do próprio fundador da escola. Todavia, existem algumas particularidades do pensamento maussiano que despertam um grande fascínio, sobretudo, entre os antropólogos. Isto por algumas razões. A ausência de um pensamento dogmático e doutrinário, a preferência quase que exclusiva pela elaboração de ensaios (o que confere a seus textos um aspecto de inacabado, aberto a múltiplas interpretações) em detrimento de tratados teóricos mais formais e a inclinação etnográfica são bons exemplos. É verdade que Durkheim recorre em muitos trabalhos a dados etnográficos, As formas elementares ilustram isto claramente. Entretanto, já se trata de um Durkheim fortemente influenciado por seu discípulo Mauss. Seja em Ensaio sobre a dádiva (1925), nas Técnicas do corpo (1934) ou mesmo no Esboço de uma teoria geral sobre a magia (1934), este último escrito juntamente com Henri Hubert, observam-se de forma mais ou menos evidente todos estes aspectos. Resta ainda um, que propositadamente deixei para fim, na medida em que acredito ser o traço que distingui mais profundamente os dois pensadores.

O determinismo sociológico que é pungente em Durkheim se arrefece em Mauss. Não porque este último negligencia a importância do social como categoria explicativa, mas sim por atentar para outras dimensões (não menos importantes) da vida coletiva. Aliás, diria que por não ser tão cientificista, por não está tão preocupado tal qual Durkheim com a constituição de um saber científico devotado a extrair leis definidas da realidade social, é que Mauss pode atentar para a heterogeneidade dos dados etnográficos. Pelo menos é isto que se pode entrever numa passagem elucidativa do Esboço, quando autor depois de demonstrar a insuficiência das teses sobre a magia que o antecederam, propõe um novo método de pesquisa.

Restringimo-nos, portanto a observar e comparar entre si um número limitado de magias. São estas as magias de algumas tribos australianas, as de uns certo número de sociedades melanésias, as de nações de origem iroquesa, Cherokee e Hurori, e, entre as magias algoquinas, a dos Ojibwa. Levamos igualmente em consideração a magia do antigo México. Também demos importância a magia moderna dos malaios dos estreitos, e a das formas que a magia adquiriu na Índia: forma popular contemporânea estudada nas províncias do noroeste; forma quase erudita, que lhe deram certos brâmanes da época literária, dita védica. Servimo-nos muito pouco de documentos de língua semítica, sem no entanto negligenciá-los. O estudo das magias gregas e latinas nos foi particularmente útil para o estudo das representações mágicas e do funcionamento real da magia claramente diferenciada. Servimo-nos, enfim, dos fatos bem atestados que nos fornecem a história da magia na Idade Média e o folclore francês, germânico, celta e finlandês (MAUSS, 2003. p 53-54)

Queria enfatizar dois pontos deste trecho. O primeiro deles sinaliza para a diversidade do material etnográfico com que o pesquisador precisa lidar para compreender a magia num sentido mais amplo. Não há “magia pura”, existem práticas mágicas cujas características dependem desta ou daquela civilização. Isto quer dizer que todo o esforço de definição conceitual da magia passa por uma análise pormenorizada dos dados etnográficos. É no mínimo curioso ouvir estas palavras de alguém que nunca fez uma pesquisa de campo em vida. Outro ponto refere-se à possibilidade de sociologia ser um estudo das “representações mágicas”. Aqui, Mauss se aproxima de Durkheim, entretanto enquanto o último restringe a análise das representações coletivas ao domínio da religião (a magia é relegada, a um segundo plano), o primeiro se esforça em sociologizar às práticas mágicas. Em outros termos, a magia é tão social quanto à religião.

A sociologia maussiana gravita em torno de três conceitos: o agente, as práticas e as representações. Falei desta, que nada mais é do que o conjunto de idéias, crenças e mitos que orientam as práticas mágicas. Todavia, a magia não vive tão-somente de representações, ela acarreta sempre uma pragmática que se pretende eficaz. Toda prática mágica implica um “saber fazer” que produz um efeito esperado. E, finalmente, não há magia sem mágico, que é o seu agente. Destes três aspectos, pelo menos no Esboço, aquele que diz respeito às representações é o que ganha maior destaque. Há, entretanto, um problema aparentemente insolúvel, mas que precisa de uma resposta esclarecedora. Por que as representações mágicas, por mais absurdas e “falsas” que possam ser parecem são tão plausíveis para aqueles que nelas acreditam? Ou ainda, por que as práticas mágicas são tão suscetíveis ao charlatanismo, a mágicos que agem de má-fé, e que tentam a todo custo enganar os seus expectadores? Tais questões não são fáceis de serem respondidas. Por ora, o que se pode afirmar é que não haveria mágico se não fosse uma platéia que acreditasse quase que cegamente nos seus gestos e atos. Ou seja, as representações mágicas só são plausíveis, porque é essa a natureza dos fatos sociais. Sendo resultado de crenças e preconceitos tradicionais, tais representações são necessariamente inquestionáveis. Então, é desnecessário perguntar se são verdadeiras ou falsas, pois é a sociedade que as elege, e é justamente por isso que possuem este peso moral. É indubitável que as representações mágicas nada mais são do que representações coletivas, não há nada na experiência sensível capaz de negá-las.

Resta falar ainda sobre noção de mana, pedra de toque do Esboço. Mana é uma noção polinésia, é através dela que Mauss tenta dar à magia uma definição mais abrangente. A mana não está sozinha, sendo caso particular de um problema geral, ela reaparece em outros contextos etnográficos, o que muda é o nome que recebe. É o axé dos negros iorubanos, o wakan e o orenda dos índios norte-americanos, etc. Trata-se de uma concepção tão genérica que se confunde com a própria história da humanidade. Mas, como definir mana, dado a sua generalidade? Grosso modo, e no que tange à magia, mana nada mais é do que uma força mística e fluída que abarca misteriosamente todas as coisas e os seres do universo. É, nas palavras do próprio Mauss, “verbo, substantivo e adjetivo”, “localizável e onipresente”, “subjetiva e objetiva”, “maléfica e benéfica” concomitantemente. Cabe ao mágico manipular a mana das coisas, pois é esta última que garante a eficácia dos seus ritos e gestos:

É lícito, portanto, concluirmos que em toda parte existiu uma noção que envolve a do poder mágico. É a noção de uma eficácia pura, que, no entanto é uma substância material e localizável, ao mesmo tempo que espiritual, que a age à distância e no entanto por conexão direta, quando não por contato, móvel e movente sem mover-se, impessoal e assumindo formas pessoais, divisível e contínua. Nossas idéias vagas de sorte e quintessência são pálidas sobrevivências dessa noção mais rica. Ela é, conforme vimos, ao mesmo tempo que uma força, também um meio, um mundo separado e no entanto acrescentado no outro sem separar-se dele, que tudo se passa como se ele estivesse construindo numa quarta dimensão do espaço, cuja existência oculta seria expressa, por assim dizer, por uma noção como a de mana. (MAUSS, 2003, p.151).

Considerações Finais

Para Durkheim e Mauss, a magia exige um tratamento sociológico. E isto parece óbvio, pois ambos são os principais prepostos da sociologia francesa. Guardadas as devidas semelhanças, há diferenças marcantes que repercutem na forma com que cada um “sociologiza” as práticas e as crenças mágicas. Durkheim – e, neste aspecto fui bastante enfático – está preocupado em definir uma “ciência da sociedade”, o que o obriga a abandonar outras dimensões importantes da existência humana, culminado num determinismo sociológico rigoroso. Em As formas elementares, a magia recebe um tratamento periférico por parte do autor que toma o fenômeno religioso como expressão maior da vida coletiva. A superestimação da religião e da sociedade acarreta uma subestimação da magia e do indivíduo.

Mauss, apesar de concordar com Durkheim em muitos pontos, traz algo de novo. Foi justamente sobre esta originalidade do pensamento maussiano que tentei versar. A ausência de um pretensioso cientificismo e a vocação etnográfica levam Marcel Mauss ao contato direto com as práticas e representações mágicas. Ciente da diversidade etnográfica que o problema colocava, o autor não se furtou a fazer uma verdadeira análise sociológica da magia, o que não constitui, sob sua ótica, privilégio das crenças religiosas.

Referências bibliográficas

Durkheim. Emile. “As formas elementares da vida religiosa”. 3º Ed. São Paulo. Martins Fontes. 2003

Mauss. Marcel. “Sociologia e antropologia”. São Paulo. Cosac & Naify. 2003

Rócio Stefson Neiva Barreto
Enviado por Rócio Stefson Neiva Barreto em 08/04/2009
Código do texto: T1529125
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