O ROMANCE DO CAFÉ NO GRÃO-PARÁ

“Nos sítios circunvizinhos a esta cidade e ainda nos quintais dela, vai havendo muito café, e excelente, o qual também é gênero novo na terra...”.
Alexandre de Sousa Freire, Governador do Pará, 1731.


     Todos sabemos ser o Brasil, ainda nos dias correntes, o maior produtor e exportador mundial de café, produzido, maiormente, nos cafezais das regiões Sul e Sudeste. Poucos se dão conta, entretanto, que essa tão lucrativa rubiácea entrou nas terras brasileiras pelo Norte, mais precisamente pelo Grão-Pará, que foi, durante muito tempo, grande produtor do grão que cevava o tesouro português, marcadamente no século XVIII, sendo daqui levado às lavouras do Rio e São Paulo, como logo se verá. Algo muito parecido com o que nos ocorreu em relação à borracha, eis que até o meado da segunda década do século passado a Amazônia era a maior e quase exclusiva produtora de goma extraída da seringueira. Corsários ingleses, na trintena final do XIX e primórdios da centúria recém-finda levaram, clandestinamente, clones de nossa “Hevea brasiliensis” para suas então colônias asiáticas, Cingapura e Malásia, que, pouco depois, transformaram aqueles países, graças a cultivares cientificamente estabelecidas, no maior produtor mundial de borracha natural.
     Mas voltando ao cultivo dos cafezais, esse saboroso e valioso grão, hoje encontrado em quase toda parte, foi, um dia, raro e protegido. Originário da Abissínia, hoje Etiópia, no continente africano, foi dali levado por um viandante para a Arábia Feliz - atual Iêmen – onde prosperou tão notavelmente que um dia abasteceria o mundo; por isso que Lineu o nomeou “coffea arabica”. Em 1715, o sultão do Iêmen, agradecido pelos serviços do médico de um corsário francês, que lograra curá-lo de um abscesso na orelha, ofertou ao rei Luís XIV sessenta pés de café. O régio presente, após curta escala de aclimatação no Jardim das Plantas, em Paris, foi mandado às Antilhas francesas, onde a França cuidou de fazer expandir tais matrizes, já bem consciente de seu valor no promissor mercado mundial, europeu em especial, cuidando, igualmente, de resguardar essas plantações da cobiça internacional. De lá, mudas e sementes foram transportadas para outras diferentes colônias franco-assistidas, ao tempo em que cuidou de, clandestinamente, contrabandear alguns espécimes e frutos da ex-Guiana Holandesa, atual Suriname- local por onde a gomífera penetrou em solo sul-americano -, para sua possessão de Caiena, na qual rapidamente grassaram e muito produziram, ciosamente protegidos dos biopiratas de então. Era o reino de França, à altura, o maior produtor e comercializador do grão.
     A corte portuguesa logo viu na preciosa rubiácea uma promissora fonte de divisas para seu combalido erário e armou um estratagema para alcançar seu intento: conseguir sementes para cultivo em terras de sua dominação.
     Em 1727, João da Maya da Gama, governador português do Grão-Pará, pretextando negociar velho litígio de fronteiras, demarcadas pelo rio Oiapoque, remeteu para Caiena, em missão especial, como embaixador, um oficial luso-brasileiro, o sargento-mor Francisco de Melo Palheta, habilidoso e experimentado militar, com ordens expressas a cumprir: “Consiga, de algum modo, penetrar em algum jardim ou horta em que se encontrem cafeeiros, e, sob o pretexto de provar um fruto, aproprie-se de alguns grãos, sem que ninguém disso se aperceba, e regresse imediatamente, evitando tratar com os franceses”, estipulavam as instruções mais tarde encontradas em arquivo nacional.
     Afortunado em sua missão, o garboso e aprumado oficial, logo depois de ser recebido pelo Governador francês, Claude de Guillonet d’Orvilliers, na residência do mandatário, percebeu haver caído nas graças da Sra. de Guillonet, que estaria inclinada a lhe conceder favores bem mais prazerosos e significativos, que os rígidos cuidados reclamados pelas regras da cordial hospitalidade. Segundo relato de fidedignos autores, Palheta foi muito mais longe em sua aventura galante, conquanto sejam mais reservados os arquivos oficiais. A tradição popular, entretanto, sustenta que Madame d’Orvilliers e seu hóspede especial passearam longamente e a sós por recônditos domésticos e nos jardins do palácio, onde vicejavam, com coloridos frutos, muitos pés de café. Dois dias após, bem sucedido em sua especiosa missão, regressava ao Grão-Pará o exitoso oficial, portando, galhardamente, vistoso buquê de flores oferecido pela primeira-dama de Caiena, no qual se encontrava, muito bem dissimulado, generoso punhado de grãos de café; distinção certamente dispensada em retribuição aos pródigos favores assistenciais com que lhe cumulou o bravo oficial luso-parauara. Presente de largas conseqüências em toda a vida econômica do País, eis que as sementes introduzidas no Brasil, plantadas no Grão-Pará, logo vicejaram e se expandiram grande e fartamente, a aquilatar pelas palavras de Alexandre de Sousa Freire, Governador do Pará, em 1731: “Nos sítios circunvizinhos a esta cidade e ainda nos quintais dela, vai havendo muito café, e excelente, o qual também é gênero novo na terra...”. Os portugueses, burlando a rígida vigilância, impuseram aos franceses o mesmo dolo que eles próprios já haviam feito, surrupiando do Suriname para plantar em Caiena.
     Carta régia de 1732 recomendava a propagação do cultivo no Pará e no Maranhão e, em 1748, nosso Estado já contava com 17 mil cafeeiros, chegando a exportar para a Europa, em 1767 e anos seguintes, muitos milhares de arrobas desse extraordinário produto, de ótima qualidade.
     Mais tarde (1760) o maranhense João Alberto Castelo Branco é transferido para o Rio de Janeiro, como alta autoridade judiciária, levando consigo alguns pequenos cafeeiros. Ofereceu uns às freiras do Convento das Carmelitas e outros aos monges capuchinhos, os quais se tornariam, assim, os introdutores do café no Rio de Janeiro, que de lá se alastrou para Minas, São Paulo e Paraná (os dois últimos, atualmente, os maiores produtores do País), em razão da fartura de mão-de-obra escrava, logo sucedida pela dos imigrantes europeus, desbancando o cultivo do nosso Estado. O resto dessa história é de todos sabido. O Brasil chegou a produzir, a certa altura, nove décimos do café mundial.
     A biopirataria, externa ou interna, é, como ficou visto, coisa cediça e contumaz, tal como se denuncia hoje, à farta, com vários outros exemplares de nossa riquíssima biodiversidade amazônica e que tanto nos importuna e desafortuna.

Nota: o quadro acima retrata Francisco Palheta fazendo a corte â esposa do governador da Guiana Francesa, Mme. d'Orvilliers, de quem recebe mudas de café.

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Médico e Escritor. ABRAMES/SOBRAMES
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Sérgio Pandolfo
Enviado por Sérgio Pandolfo em 27/05/2009
Reeditado em 30/05/2012
Código do texto: T1618543
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