Deles para Ela

E ela entrou gritando suas palavras de culpa àqueles que renunciaram a boa e costumeira. A blusa amarela que vestia contrastava com a falta de sol de fora e de alegria dela, ou talvez refletisse o excesso da alegria deles. Quase já não se fazia o sentimento de curiosidade sobre aquilo a não ser o dela em relação a eles, como sempre tinha sido quando ela passava suas noites mal dormidas, mal ridas e mal amadas no sofá que colocava na cozinha só pra não ter contato com nada que não soasse hermeticamente triste. Depois ela reclamaria que o próximo dia estava feio, a comida estava ruim e seu patrão era um descrente. E todos eram descrentes e ela viria para salvar os aflitos. Nessa missão ela humilhava um a um com um sorriso cortante. Depois de um tempo, dizia, vou ser feliz. Muito feliz. E implicitamente dizia também, vocês vão ser o lixo do que vai sobrar. Nessa intenção nos momentos de distração lia livros de segunda mão na cozinha obscura, porque ela fechava a persiana e acendia a luz ao meio dia. Até hoje não sei se lia de verdade já que ninguém inclina o livro daquela forma necessariamente para que os outros vejam o título. Será que ela pensava que o livro era bom? Eu achava, e acho, um lixo. Talvez aquele mesmo lixo que seríamos os outros daqui um tempo. Mas nunca reclamei daquela merda na mesa da sala, na rede e em cima da minha cama. Aquilo aparecia em todo lugar e eu não reclamava, ao contrário dela quando eu errava a cinza no cinzeiro. Aí comecei a errar com propósito. E todos, cada um, fazia algo. Outros só se davam o trabalho de rir alto; acho que era o melhor remédio, mas eu era, e sou pouco boa a ponto de me contentar com uma vingança subentendida. Então eu ouvia meu alto e bom som e dançava. Enquanto ela fingia que ria de mim eu dizia à ela que eu era a nata do roque em rou e dançava e ria ria ria. Ela se dizia cansada e saia pra cozinha cozinhar feijão com pouco sal, porque sal faz mal pra pressão. Eu queria dizer que pé no saco fazia mal pra pressão, mas mas me restringia a continuar cantando Elvis.

Aí um dia ela aparecia chorando e dizendo que amava todo mundo, bêbada. Falava da incompetência sexual dos seus homens e entre um choro e outro vomitava. Todos se quedavam um pouco comíseros à ela e com ponta de decepção consigo mesmo. No dia da ressaca ventava um clima estranho mas ainda havia uma certa paz estabelecida e eles repensavam seus meios. Mas depois passava, tudo passava e a porra do livro estava lá no sofá, na rede, na cozinha e a persiana estava fechada outra vez. Aí todo mundo via que era engano e voltava tudo a sua programação normal.

(...)