Detesto a Barbie

Nunca tive uma boneca Barbie. Sei lá o porquê. Acho que devia ser um brinquedo muito caro, ou então minha mãe nem se ligava nessas coisas, preferia me dar um livro. Já mocinha, quando via minha sobrinha com a coleção que tinha (23, se não me falha a memória), eu não conseguia atinar porque é que eu não tivera ao menos uma, no meio de outras tantas bonecas.

O fato é que eu cresci, sem saber a razão, com uma raiva enorme da Barbie. Ah, me dava um sentimento ruim toda vez que via uma pela frente, que vontade de quebrar! E nunca entendi o porquê daquilo.

Não seria pelo cabelo perfeito, sem uma ponta dupla e louro ainda por cima, sem nem precisar enfrentar hidratação nem chapinha, ou pela cintura irritantemente fina e o quadril enorme, pois desde antes de conhecer a ditadura da beleza eu já me enfurecia contra a boneca-patricinha. Quando li numa revista que nenhum ser humano sobreviveria se tivesse as medidas do corpo dela, comemorei!

Foi só depois de adulta que, remoendo fatos passados, vim a compreender aquele sentimento.

Ao morar na casa de uma tia por alguns anos da infância (para criança, cada ano é um século), sempre andei buscando me encaixar aqui e ali como filha, mesmo sabendo, no fundo, que aquilo não era possível. Apesar de muito bem tratada e amada, questões relacionadas a aceitação e amor são coisas que marcam o coração de uma criança. Pequenas cenas machucam, e quase sem exceção, permanecem para sempre.

Um natal em particular ficou marcado. Foi aquele em que minha prima, mais nova que eu, ganhou a tão sonhada boneca Barbie. Ainda me lembro dela, linda num vestido rosa de cetim, numa caixa brilhante. Lembro direitinho da prima desembrulhando o presente, os olhos brilhando, o sorriso grande de alegria. E meus olhos procurando o meu presente. Logo veio, um embrulho fofo, daqueles que de longe a gente vê que é roupa – e criança detesta ganhar roupa. Quando abri, era um conjuntinho muito bonito, um daqueles que minha tia vendia. Claro que agradeci, experimentei, e até gostei. Mas naquela noite, chorei até meu nariz entupir e dormir de boca aberta, de tanto soluçar.

Ah, eu nem gostava tanto assim daquela boneca magrela. Mas naquela ocasião, significou mais para mim. Representava minha condição de não-filha. Senão, eu também teria ganhado uma igual, e não uma roupa que, ainda que bonitinha, tinha sido tirada do meio de uma dúzia, numa sacola.

Outros natais vieram, com tia, com mãe, com presentes e momentos felizes, de amor e gratidão, e eu fui crescendo. Mas aquela cicatriz permaneceu indelével no meu coração.

Nesta vida corrida, onde as obrigações e cobranças quase nos sufocam, muito pouco percebemos as marcas que vamos cravando nas crianças que amamos. De uma forma ou de outra, mais de vinte anos depois...detesto a Barbie.