Dança de Eleanor

Há muito penso em escrever sobre a solidão; mas, por ironia do destino, quando tento me debruçar sobre o tema, alguém aparece ou algum aparelho toca. E, na verdade, pra escrever sobre a solidão,

É preciso assistir, desacompanhado,

ao ocaso;

E jantar sozinho

Num sábado.

É preciso tornar-me azul

Diante da luz que emana da televisão

Num quarto escuro.

É preciso chorar sem preocupação

De que vejam minhas lágrimas,

E rir, e ouvir minha risada

Como um som estranho e distante.

É preciso dançar só, de janelas fechadas,

E estar tão isolado a ponto de imaginar alguém

Com quem conversar;

É preciso querer sair e não encontrar forças;

E se forças encontrar,

Andar sem destino, sem hora pra voltar

E sem ninguém a me esperar.

Existem pelo menos duas espécies de solidão: a que desejamos (auto-isolamento) e a que se nos impõe, quando os outros nos esquecem, ainda que temporariamente. Confesso que, como misantropo, sou adepto da primeira modalidade: sou mestre em me isolar. E não me sinto nem um pouco mal com isso. É mais fácil irritar-me com a presença constante que com a ausência.

Minha paixão pela literatura tem muito a ver com minha propensão à solidão; não me sinto nada só quando leio ou escrevo - sinto-me, na verdade, num monólogo silencioso, que freqüentemente mais me parece um diálogo (quase uma esquizofrenia, como a descrita em "Lobo da Estepe", de H. Hesse).

A poesia acima trata da solidão imposta, aquela da qual fugimos. Confesso que é muito difícil sentir a separação completa - embora na realidade sejamos sempre solitários, quer aceitemos esse fato ou não -, em razão das várias formas de atenuar, mascarar, a inexorável solidão que nos é inerente. Ligamos o computador e, num minuto, estamos conectados a várias outras pessoas (perfis); ligamos a TV ou o rádio; o celular permite que encontremos as pessoas onde quer que estejam, ou seja, acessamos o outro na hora em que desejamos. Mas até que ponto este "contato virtual" satisfaz nossa necessidade de nos relacionar?

E não se iluda: encontrar pessoas não significa sair da solidão. No meu caso, estar no meio da multidão muita vez aumenta minha sensação de alienação. E isso também acontece com as companhias superficiais, as conversas sem atenção, as palavras sem reflexão. Na verdade, prefiro a solidão ao contato vazio.

Hoje, para ficar realmente só - ou melhor, para sentir integralmente a solidão, sem subterfúgios - é necessário se esforçar; para tanto, temos que desligar todos os aparelhos: TV, computador, mp3 player, telefones etc.

A rapidez inerente aos nossos tempos nos conduz a estas relações fugazes e superficiais, que se prestam a dissimular o silêncio de nossa alienação. Há muitos “perfis” (máscaras virtuais) para se conectar, mas poucas pessoas (seres humanos) para se relacionar de verdade. Como afirma Bauman, nossas relações são cada vez mais líquidas, fluidas. Impossível não concordar.

Nesse contexto, as músicas que evoco abordam o tema com uma profundidade peculiar. Uma trata das pessoas que são sozinhas; outra, das pessoas que estão sozinhas.

Quem é “Eleanor Rigby”? Esta mulher que cata, sozinha, grãos de arroz depois de um casamento. Reparem na profundidade desta descrição: o casamento representa justamente a celebração da união; assim, catar, só, os grãos caídos ao chão, depois desta cerimônia é ainda mais grave, na medida em que reforça o isolamento.

“Eleanor Rigby picks up the rice in the church where a wedding has been

Lives in a dream

Waits at the window, wearing the face that she keeps in a jar by the door”

Quem é ela? Uma mulher que vive num sonho e espera à janela, vestindo a face (ostentando a máscara) que mantém num pote perto da porta. Este verso permite diversas interpretações. Para mim, a janela representa a relação com os outros, o que permitimos que os outros vejam; desta forma, a máscara guardada no pote é a expressão que Eleanor ostenta quando se expõe.

E de onde vêm as pessoas solitárias?

E quem é o padre Mackenzie, que se dedica a elaborar um sermão que ninguém escutará? De onde ele vem? E quem se importa?

O solitário representa aquele que não interage e que, portanto, é um observador, um ser afastado, que apenas assiste, à distância, às vidas e relações alheias. A imagem de Eleanor à janela é exatamente esta: a de alguém que observa a vida e não a vive. Não se trata de solidão-estado, mas, sim, de solidão-ser.

"Eleanor rigby died in the church and was buried along with her name

Nobody came"

A idéia de um enterro sem qualquer pessoa é uma das imagens mais fortes que se pode ter da solidão. A morte, por si só, é separação, abandono; um velório vazio é uma morte dentro da morte. Ninguém foi ao enterro de Eleanor. O ato de velar o corpo e após enterrá-lo é um ato que celebra a extinção do eu: escondemos embaixo da terra os vestígios materiais que restam inertes. Socialmente, alguém que não se relaciona, já é morto; confirmamos amiúde nossa existência ao interagir, ou seja, precisamos dos outros para ter certeza de que existimos.

Em relação à outra música, podemos refletir como seria então a “Dança da solidão”, que parece exprimir um paradoxo, pois dançar é uma manifestação social, a qual, seja numa tribo ou numa festa, envolve geralmente várias pessoas.

“Solidão é lava que cobre tudo

Amargura em minha boca

Sorri seus dentes de chumbo

Solidão palavra cavada no coração

Resignado e mudo

No compasso da desilusão

Desilusão, desilusão

Danço eu dança você

Na dança da solidão

Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou

Maria tentou a morte, por causa do seu amor

Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado

Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado

Desilusão, desilusão

Danço eu dança você

Na dança da solidão

Quando vem a madrugada, meu pensamento vagueia

Corro os dedos na viola, contemplando a lua cheia

Apesar de tudo existe, uma fonte de água pura

Quem beber daquela água não terá mais amargura”

Segundo o Eu-lírico, a solidão petrifica, tal qual a cabeça de medusa; ela é “lava que cobre tudo”, é “amargura” na boca, tem dentes de chumbo, e cava o coração silenciosamente. Esta é a solidão que decorre da desilusão amorosa.

É interessante notar que tanto em "Eleanor Rigby" quanto em "Dança da solidão", há referência a personagens: o Eu-liríco, na segunda música, cita Camélia, a viúva; Joana, a apaixonada; e Maria, a desiludida. Penso que a idéia de criar personagens é relevante para personificar a solidão.

Na primeira parte da última estrofe, aborda-se o caráter criativo da solidão, “Quando vem a madrugada / Meu pensamento vagueia / Corro os dedos na viola / Contemplando a lua cheia”.

De fato, a solidão é imprescindível à criação artística. Como diz Calvino, "o temperamento saturnino [tendente ao melancólico, ao solitário] é próprio dos artistas, dos poetas, dos pensadores (...). É certo que a literatura não existiria se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a um descontentamento com o mundo tal como ele é (...)".

No que se refere à desilusão - pois a solidão da segunda canção decorre da frustração amorosa -, lembro-me de Pessoa a dizer que:

"Enquanto não superarmos a ânsia do amor sem limites, não podemos crescer emocionalmente. Enquanto não atravessarmos a dor de nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um".

Entretanto, enquanto em “Eleanor Rigby” a solidão não encontra nenhum remédio, em "Dança da solidão", vemos que, ao fim, o Eu-lírico, que baila ao som mudo do abandono, propõe uma solução para o alheamento:

”Apesar de tudo existe

Uma fonte de água pura

Quem beber daquela água

Não terá mais amargura”

Esta solução pode ser interpretada de diversas formas. O que seria esta “fonte de água pura”? Pode ser a aceitação da nossa inelutável solidão, entendendo-se que esta fonte de água pura emana do nosso próprio ser, ou uma solução metafísica, caso se prefira acreditar num ser supremo e onipresente.

Com efeito, podemos disfarçar a solidão, nos distrair um pouco, acreditar que o outro poderá removê-la - e assim agimos ao nos apaixonarmos -, da mesma forma que é comum dissimularmos a inevitabilidade da morte - seja ignorando-a, seja preferindo acreditar num além, numa “esperança supraterrestre.” * Para mim, todavia, que não ouso “blasfemar contra a terra”, não há solução: a solidão é invencível, assim como a morte. Prefiro a realidade à ilusão.

Nota

* V. prólogo de "Assim falou Zaratustra, uma das últimas obras de Nietzsche.“Eu vos conjuro, ó irmãos, permaneçam fiéis à terra e não creiam naqueles que vos falam da esperança supraterrestre. (...) De agora em diante, o crime é blasfemar contra a terra e conceder mais apreço às entranhas do inescrutável do que ao sentido da terra”.