Da idéia ao objeto: o filósofo e o poeta.

A República, de Platão, em uma de suas imagens mais conhecidas a respeito dos três leitos, onde o filósofo enuncia o idealizador como criador, o realizador como artesão e o artista, por fim como um interprete a via da representação da idéia, mediante a simulação.

O filósofo em sua investigação, especulando a origem, o motor das realizações e as forças que concebem os atos. O artesão que transpõe a substancia em arranjos utilitários, realizando a transição do desejo na materialidade dos artefatos, acrescendo valor as necessidades, que melhor se compreendem incluídas em seus acessórios. Temos ainda o artista que mistura as duas essências e cria um valor próprio para o elemento descrito.

O artista ao simular a objetividade na idéia está interferindo na visão limite que o objeto realiza pelo seu caráter utilitário e começa a somar valores que estão além do literal, esta realização semântica ocorre a todo tempo e de forma tão continuada que não é notada com a devida atenção.

Tornemos a Platão com a sua representação ideal da cama, imaginemos o criador e a sua motivação ao criar um objeto que permitisse um confortável repouso e um total abandono da fadiga e assim transportasse o homem para o abandono temporário das circunstancias que o deprimem.

Esta idealização original será perseguida pela realização da técnica, pela escolha dos materiais, pelo conhecimento dispensado para a realização da tarefa: o labor do artesão.

A realização está de tal maneira limitada aos meios disponíveis que os modelos desenvolvidos não cessam de evoluir, como forma de admitir a imperfeição da realização diante de um modelo inatingível da idéia apresentada.

O artista tem como matéria de sua criação a liberdade de pensar e representar, então quando o pintor realiza a cama ideal ele representa a cama ideal pela figura da cama artefato; o valor que este ícone tem é poderoso, pois realiza leituras intertextuais em todas as representações individuais de cama, tal poder se funda no reconhecimento, pois se o artefato pode ser claramente identificado, o mesmo ocorre com as relações que a arte realiza.

A posição dos mortos reforça a tese do repouso dos mortos e afirma a existência como um fardo, não há em tal afirmação nada além das relações de costume que são comuns em inúmeras culturas. As representações partem da circunstancia de reconhecimento para o estranhamento e por oposição ou confronto acabam obtendo a ratificação.

A representação artística almeja o reconhecimento, mediante a figuração, a comunicação da idéia em uma escala representativa, como toda mensagem necessita da relação direta com seu decodificador, é possível que partes da mensagem não sejam integralmente absorvidas, mas a matéria da construção da mensagem, o código, através dos seus fragmentos reconhecidos construirá um conjunto de elementos para interpretação.

A cama desde a idealização, passando pela sua realização concreta como utensílio até a representação artística contém inúmeros valores: para o idealizador ela é a cama absoluta, definitiva; para o realizador ela é a cama possível, o máximo que sua habilidade alcança com os recursos que dispõe e para o artista sua representação pretende realizar a cama que ele crê próxima de todas as camas e ainda avança sobre as idéias correlatas de repouso e atenção a fadiga.

O que esta alegoria de fato representa é a compreensão da idéia em seus planos de realização. Quando o filósofo investiga a gênese e as relações de um fenômeno, o homem envolvido na materialidade preso a circunstancias de tempo e espaço reage e se relaciona com as suas possibilidades elegendo meios e conceitos para se realizar nas suas tarefas e necessidades cotidianas; concomitantemente teremos a representação particular de cada universo pessoal entre as zonas de afeição e rejeição que foi construindo uma seqüência de atos e memórias que projeta uma consciência de continuidade que busca justificar mediante formulações o desvendamento das situações na idéia do futuro próximo.

O artista ao romper com a linearidade do código devolve ao filósofo uma representação de dimensões mais profundas com as relações delineadas, realizando a transcrição da idéia objeto em uma representação particular que não se submete a qualquer dos conceitos e acrescenta elementos para as duas expressões.

Alguns poderiam dizer como Duchamp que a intervenção é suficiente para atingir a descrição de arte; hoje revendo os conceitos de pós-modernidade, percebemos o quanto tal interpretação está equivocada.

A ascensão do utensílio a condição de arte se dá por vias de um referencial elaborado, que examina a realização e seus dados de pertinência, há uma necessária originalidade, uma realização calcada numa identidade referenciada que propõe anotar mais que as razões de uso.

Quando uma instalação arqueológica é alçada a condição de arte, estamos considerando, de fato, meios e modos como o registro de expressão daquele labor naquele espaço tempo, desde o material até as capacidades para a realização do projeto, tudo faz parte da consideração particular da originalidade que dará a tal representação o caráter de arte ao que fora anteriormente labor e temos a diferença entre antiguidade e velharia.

As pedras das calçadas são as pedras de uma escultura, mais eloqüentes realizando uma utilidade além do conceito de uso, expressando e representando uma interação dialogética onde a idéia se sobrepõe ao material original da representação e a pedra calçada excede e radicaliza na pedra estátua.

A letra que registra a lei é a mesma que modela o poema; enquanto a lei busca um modelo de conduta no limite do individuo, o poema decreta que o individuo está livre de quaisquer representações; liberta-se da idéia que tem de si e excede na representação do mundo.

O filósofo atingido pela apreciação das relações entre os fenômenos tenta apreender nas escolhas os caminhos da ética, porém está preso a própria concepção de mundo ideal, restando a este elemento as interpretações e leituras do modus faciendi como registro do percurso da humanidade.