Ao prólogo

Eu, filho, neto e irmão de médicos. O homem que foi feito pra ser médico, mas tornou-se ator e, segundo o "papai" um gay, viado, bicha, safado. E perdidamente apaixonado por Roberta, que fazia cover da Nina Simone em uma boate reprovável de Botucatu.

Apaixonei-me quando, depois de nove conhaques com guaraná, ele cantou "Don't let me be misunderstood". Nenhuma mulher seria tão feminina quanto aquele travesti naquele momento. E os nove conhaques que me fizeram apaixonar cresceram para dezessete e me fizeram amá-lo mais do que qualquer homem amou uma mulher. Ele tinha a boca fina, as pernas longas e os olhos enormes saltando da cara. Cílios postiços, peruca longa e um vestido azul muito brega, que o fazia mais sensual que a Monroe, aquela que forçava biquinho e empinava a bunda. Ele era o que toda mulher gostaria de ser. Ele era. Mas tinha esposa e gostava dela. Ela não merece você, com certeza não é metade do que você é. Mas ele ria e acendia o cigarro pós foda. Você é ciumento demais pra um homem, dizia. Depois vestia o vestido azul suado e ia pro camarim vestir-se de marido.

Ele não me amava porque eu o amava demais. Já a esposa lhe cuspia na cara porque pensava que nas noites fora ele ia ao bar com os amigos e se dava com outras mulheres. Ela nunca imaginaria que o cheiro de perfume feminino era dele, não nele.

Dormi três dias em frente a sua casa e descobri que a esposa era uma menina de dezessete anos e realmente não tinha metade da força e do brilho de Roberta. Não era meu ciúme doentio: ela era esdrúxula.

Naquele dia daquele tempo eu ainda achava que era só tesão. Pergunte então àquele conhaque que eu não esqueço o gosto, àquele vestido de lantejoulas azuis e às minhas seringas. Pergunte o que aconteceu e eles desenharão o nome de Roberta com a fumaça impregnante do cigarro dele, que por muitas vezes esteve em minhas roupas e pelo qual eu, por não saber quando o teria outra vez, ficava dias sem tomar banho. Pergunte à Nina como ela transformaria em música o amor que eu tinha por Roberta, e se alguma pessoa a não ser ele poderia cantá-la, mesmo que na imundice dos lugares em que sempre estava com seu vestido brega. Apesar da esposa tê-lo abandonado, apesar de ele não ter deixado de amá-la e continuar não me amando, apesar de hoje estar em uma asilo.

Talvez tenha sido por tudo isso que hoje eu pouco existo. Eu me quebrei em pedaços tão pequenos que nem Roberta conseguiria reconstruir. Reparti-os nos lugares onde realmente me senti vivo. Estão na cama, na mesa da boate e no armário que guardou os vestidos dele. E fiquei sem nada meu por que era desnecessário, para sempre e até agora, depois que se passa por uma paixão assim.

Roberta me deixou depois de dezessete trepadas e três passagens pela polícia.