Cuidado essencial

Fábula-mito sobre o cuidado essencial de Gaius Julius Hyginus:

Certo dia, ao atravessar o rio, CUIDADO viu um pedado de barro. Logo teve uma idéia inspiradora. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu JÚPITER.

CUIDADO, pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que JÚPITER fez de bom grado.

Quando porém, CUIDADO quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.

Enquanto JÚPITER e o CUIDADO discutiam, surgiu, de repente, a TERRA. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da terra. Originou-se então uma discussão generalizada.

De comum acordo pediram a SATURNO que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa:

- Você, JÚPITER, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura.

- Você, TERRA, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer.

- Mas como você, CUIDADO, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver.

E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada HOMEM, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil.

O Meu Cuidado Essencial

A fábula-mito do cuidado essencial, também conhecida como “a fábula de Higino”, retrata o que Martin Heidegger coloca sobre o cuidado como condição existencial, a base possibilitadora da existência humana. Mas que isso significa? Ora, significa que a atitude de cuidar faz parte da essência humana.

Ser humano nenhum vive sem cuidados, natureza nenhuma, embora sua força seja maior que a humana, exime de cuidados, as relações interpessoais não resistem à falta de cuidado, trabalho nenhum se concretiza sem cuidado, jardim algum se torna belo sem cuidados e ambiência nenhuma é habitável sem o imperioso cuidado.

Cuidado, diz Leonardo Boff, significa então "desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato (...) estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude". Essa é a noção de cuidado que Heidegger fala enquanto essência do ser que só pode habitar aqui. No mundo.

Eis a atitude simples e ao mesmo tempo sublime que deveríamos ter diante do ente caído, do outro que nos fala e daquele que se cala. Eis a atitude primeira que possibilita o crescimento dos homens e do mundo; que transforma o feio em belo, que harmoniza os ambientes; que efetiva projetos e que une as pessoas. Eis a atitude que cura.

Ao reflitir sobre o “cuidado” há uma imagem que me vem à mente. A imagem das mãos. E agora rascunhando estas reflexões, me veio à lembrança um texto de Contardo Calligaris (colunista da Folha de São Paulo, as quintas-feiras) o qual diz que o carinho das pessoas que amamos tem efeito curativo. Leonardo Boff também fala sobre "a carícia essencial (...) e o órgão da carícia é, fundamentalmente, a mão".

Ora, nós não fazemos carinho com os cotovelos, com o calcanhar, com as orelhas, se bem que é possível. Mas a princípio, os carinhos mais singelos são feitos com as mãos. Assim como as mais belas obras de arte. As pessoas em ocasiões formais se saúdam de maneira educada, com um aperto de mãos. A aliança, seu símbolo o anel é colocado nas mãos. É com as mãos que escrevemos cartas de amor, limpamos nosso jardim e purificamos nossa casa. É com as mãos que fazemos uma deliciosa comida e acariciamos o rosto de uma criança e da pessoa amada.

Somos seres de cuidado, o outro e o mundo estão, literalmente, em nossas mãos. Mas temos de ser realistas e lembrar que somos também seres de contradição. Somos racionais e também irracionais. Somos 'sapiens', mas fundamentalmente 'demens'. Somos amáveis, mas a possibilidade de agressividade não mora longe, pelo contrário, ela está adormecida em cada um de nós. Basta nos sentirmos ameaçados para então reagirmos em situações de perigo.

Nesse sentido não está fora das nossas possibilidades a atitude contrária ao cuidado. E o que se opõe ao cuidado é o descaso que não mata num único golpe, assim como a indiferença ele mata às prestações, distanciando as pessoas, empobrecendo as relações, debilitando a cumplicidade e transformando o amor em nada. O descaso, como diz Leonardo Boff, "é o estigma do nosso tempo". Diria ser uma epidemia, a peste do séc. XXI, que traz consigo conseqüências peculiares ao mundo moderno altamente globalizado e informatizado como: o estresse, a depressão, suicídios em massa, obesidade, divórcios, solidão, consumo de drogas, aumento do alcoolismo, crimes violentos, enfermidades cardíacas, etc... Isso tudo na perspectiva interpessoal.

E no aspecto ecológico, ambiental? O que a nossa atitude de descaso e a falta de responsabilidade de empresários e governantes têm causado ao planeta? Este é um ponto crítico que reflete a crise generalizada, a qual estamos vivendo e enfrentando diariamente. O descuido está, insanamente, envenenando os solos, contaminando nosso ar, poluindo nossa água, dizimando florestas, deixando cidades submersas, exterminando espécies de seres vivos, e radicalmente, transformando o Verde (Amazônia) em Cinzas.

Na verdade essa irracional atitude dos gloriosos 'homo sapiens' não passa de um processo de auto-destruição, ou seja, estamos aniquilando nossa própria espécie, a humana. O que não significa a destruição do próprio planeta. Pois, quando isso acontecer não haverá mais humanos para cuidar da Gaia, e nem para falar sobre o que o nosso terrífico descaso foi capaz de provocar.

O cuidado, portanto, é uma atitude moral, se esta for sinônima de conduta, hábito, modo de ser de uma cultura, que deve ser seguida por todas as pessoas, sem distinção de classe social, escolaridade e idade. A atitude do cuidado deve ser aprendida nas primeiras idades e mantida por toda a vida, enquanto houver vida.

Obs. Este texto foi escrito em maio de 2006, para o Projeto Filosofandoagora, apresentado por Francine Rezende, abordando o tema: “Humanidade - uma relação de interdependência”.

Referências e Sugestões de Leitura

BOFF, Leonardo, Saber Cuidar, Ética do Humano – Compaixão pela terra, Editora Vozes

CAPRA, Fritjof, O ponto de mutação, Editora cultrix

CAPRA, Fritjof, A teia da vida, Editora cultrix

GRAY, John, Cachorros de palha, Editora Record

HEIDEGGER, Martin, Ser e tempo, Editora Vozes

Silvia Santana
Enviado por Silvia Santana em 21/09/2009
Código do texto: T1823504
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