Desenredo

Ensaio sobre Desenredo

O verbete desenredo utilizado para intitular o conto de Guimarães Rosa, analisado aqui descritiva e interpretativamente de acordo com o texto Operadores de Leitura da Narrativa, significa o ato ou o efeito de desenrolar, desfazer o enredo, desenlaçar.

A fábula do conto, segundo a nomenclatura dos formalistas russos, trata da estória de Jó Joaquim o qual se apaixonara por Vilíria, mulher casada e infiel, em sua trajetória pela felicidade. A princípio os amantes têm que se encontrar secretamente até que Jó Joaquim decepcionado porque sua amante o houvera traído com um terceiro, morto pelo próprio marido de Vilíria, resolve romper o relacionamento. Com o passar do tempo o marido de Vilíria morreu e as mágoas entre os amantes foram cicatrizadas e para escândalo da sociedade decidiram se casar. No entanto, Vilíria reincidiu no erro. Motivo pelo qual eles se separaram e a traidora mudara de cidade. Jó Joaquim não conformado com a situação resolve descaluniá-la “sem malícia, com paciência, sem insistência”. Após a reputação de Vilíria ser reconstituída Jó Joaquim a trouxe de volta para viverem novamente amasiados, convolados.

O tema que mais predomina no texto é o Amor, pois o mais cativante é a luta das personagens pela felicidade, muito embora essa felicidade contrarie todas as convenções sociais. Os motivos, as unidades temáticas menores, a sedução, o amor, o ciúmes, a traição, a infidelidade, a sabedoria, a paciência, a busca incessante pela felicidade e o perdão constituem o conflito dramático vivido pelos personagens.

Sob a perspectiva do grau de importância, as personagens principais são os amantes Jó Joaquim e Vilíria, e as secundárias são, o dono do bar, o marido de Vilíria, o amante morto e a sociedade.

Um aspecto que merece ser destacado é o grau de densidade psicológica dos personagens.

a) Jó Joaquim – por cauda de sua complexidade, pode ser classificada como personagem redonda, uma vez que apesar da infidelidade de sua amada ele inesperadamente reconstitui a imagem dela na intenção de viver com ela o seu parâmetro de felicidade. A característica da personagem redonda mais marcante é o fator surpresa: Jó Joaquim, contrariando todas as expectativas da comunidade, desfaz todo o enredo maledicente sobre as atitudes de sua amada a fim de arquitetar sua felicidade com ela. É esta a ação que dá sentido ao título do conto. Além disso, o nome Jó faz alusão ao personagem bíblico conhecido pela sua extrema paciência. Essa personagem pode ser considerada inadequada à sua situação, como Mikhail Bakhtin descreve em seu texto Epos e Romance, porque diante da situação de homem traído numa sociedade que espera que a atitude dele seja o repúdio à traidora, ele sabiamente reconstruiu seu destino (contrário ao destino predeterminado pela sociedade), sendo superior a ele.

b) Vilíria – pode ser interpretada como personagem plana, pois sua infidelidade e sedução que marcam suas características lineares corroboram com uma atitude típica de quem habitualmente trai, apresenta-se duvidosamente com vários nomes, multifacetando sua personalidade, e volta sem culpa, convencida de que não houvera traído.

c) O dono do bar - classificado como personagem tipo, ele é aquele que narra oralmente a história de seu cliente, Jó Joaquim, segundo o que ele teve acesso acrescentado o que se ouve pela cidade.

d) O amante morto, o cônjuge de Vilíria e a comunidade estão inseridos na categoria plana de personagens. São elas tipo por serem referidas por sua classificação social, porém, importante para o andamento do conflito dramático: o amante pela repercussão da traição na cidade, a sociedade pela recepção do escândalo e o marido por ter matado o amante e por, após a morte, ter deixado o caminho aberto para Jó Joaquim casar-se com Vilíria.

Em desenredo há a presença de dois narradores. O primeiro narra em terceira pessoa, sendo somente observador do conflito dramático e não participante dele. A primeira frase dá a entender que a história narrada é a transcrição da atividade oral do narrador (o segundo) aos seus ouvintes; encerrando a narrativa, ele complementa com o registro dela em ata. Todavia, este narrador que não interfere nos acontecimentos e nas personagens pode ser classificada como narrador onisciente neutro, segundo a teoria de Friedman, contudo, devido a esse distanciamento dele com a diegese, Genette, Aguiar e Silva o classificam como heterodiagético. Em função de um propósito de disseminação, difusão, divulgação da história narrada, esse narrador pode ser compreendido como o marinheiro comerciante, em consonância com a óptica de Walter Benjamin, no texto O Narrador. Para concretizar o registro desta história, o primeiro narrador precisou antes ouví-la do segundo. Assim, aquele, por se constituir como o destinatário intratextual do segundo narrador, pode ser classificado como o narratário. Como o primeiro narrador se apropria da história contada pelo segundo, aquele também possui as seguintes características deste, exceto em sua classificação tal qual “eu” como testemunha:

O segundo, também distanciado da narrativa, por conseguinte heterodiagético, narra em terceira pessoa e não se interpõe entre o leitor e o texto com comentários sobre a fábula ou sobre as personagens, o que na classificação de Friedman denomina-se “narrador onisciente neutro”. Essa narrativa acontece numa atividade oral, marcada linguisticamente pela pontuação caracterizadora do discurso direto, o travessão. No entanto, como esse narrador coincide com o dono do bar que apresenta a história narrada, sendo, portanto uma das personagens, pode ser classificado como “eu” como testemunha. O perfil desse narrador sob a análise de Walter Benjamim pode ser entendido como o camponês sedentário, que estando vinculado ao local de origem da narrativa, atém-se tão somente a narrar essa experiência alheia vivenciada com sua própria experiência e forma de narrar. Essa dedução advém do detalhamento que o narrador transmite no seu ato narrativo, quando nos fornece informações psicofísicas dos personagens e de suas emoções, dos ambientes freqüentados por eles, do alcance do escândalo na sociedade, etc. perdendo-se apenas na forma como o marido de Vilíria morreu, “afogado ou de tifo”.

O espaço definido no texto trata-se de uma pequena aldeia, onde se passa toda a história narrada. Por se tratar de uma cidade interiorana, onde a narrativa oral é mais predominante, a própria história repercute mais rapidamente.

Quanto ao tempo, pode-se dizer que não se trata nem de tempo cronológico nem de psicológico, pois a única marca temporal, o mês de maio, vem indefinida pelo advérbio “infinitamente” como também o personagem não narra sua própria história. Já a duração do tempo é o sumário, porque o narrador resume a historia dando a impressão de que as ações acontecem mais rápidas do que o tempo real. E, assim como, os números dos acontecimentos são iguais aos números de suas apresentações, a freqüência do tempo classifica-se como narrativa singulativa. Então, o tempo presente em Desenredo corresponde ao tempo mítico, um tempo imensurável inerente à narrativa oral o qual se apropria das experiências alheias ou não, com aspectos de ausência das memórias da personagem.

Se tratando do nó, pode-se dizer que ele introduz o conflito dramático da narrativa, que nesse texto gira em torna da traição da personagem Vilíria.

Quanto ao clímax, este por sua vez, marca o auge do conflito dramático da narrativa, o qual no texto se evidencia pela luta de Jó Joaquim em retratar a má reputação de Vilíria, em “descaluniá-la”.

Por fim, o desfecho é a resolução do conflito dramático, que se destaca no texto com a volta “sem culpa” da personagem Vilíria à aldeia, para finalmente viver com seu grande amor Jó Joaquim.

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Rafaela França

Nelson Falcão

Rafaela França
Enviado por Rafaela França em 29/09/2009
Código do texto: T1838067