A TÉCNICA, O AVILTAMENTO E O ESTIGMA PRESENTES NA OBRA DE CLARICE LINSPECTOR:A HORA DA ESTRELA

A TÉCNICA, O AVILTAMENTO E O ESTIGMA PRESENTES NA OBRA DE CLARICE LINSPECTOR:A HORA DA ESTRELA(1)

Por Marta Cosmo(2)

E abria-se diante de seus olhos

uma estreita e frágil porta

que levava à sala de torturas.

Ali havia séculos nos segundos...

Havia histórias numa única palavra...

Dilaceramentos em corpo e alma...

Chagas que se abriam na carne, na mente,

outras feriam mais fundo e eternamente...

Exaurindo-se quase morta

Conseguia pelo intervir divino

Que se fechasse a maldita porta...

A frágil e estreita porta de um livro.(3)

E o livro de que se menciona acima é o ironicamente intitulado “A hora da estrela” de Clarice Lispector. Que momentos desconfortáveis, humilhantes e constrangedores o passar das folhas daquela obra: agonia que parecia não ter fim. Em alguns instantes duvidava do que lia. Como Cristo havia sido pego como o escárnio do mundo, a inocente Macabéa havia sido pega para o escárnio de um outro pequeno mundo: o Brasil. Pensou-se; como pode existir alguém capaz de se mascarar de um personagem, narrador e escritor para tal façanha de mau gosto e crueldade. Aquilo parecia ser hediondo demais. Repugnou-me o pensamento em Clarice Lispector e seu personagem escritor.

O nome do sujeito? Rodrigo S. M (mal)feitor de Macabéa. Esta tem seu prenome logo revelado: a nordestina. Este é mencionado várias vezes para se referir a personagem principal pelo mesmo, como expressa os trechos a seguir: “Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por ai aos montes.” “(...) peguei no ar o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina.”(4) ; “ Bem , é bem verdade que também eu não tenho piedade do meu personagem principal: a nordestina.”(5) ‘Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. ”(6)

Somente esses fragmentos são suficientes para que algumas perguntas saltem indignadas diante dos olhos. Por que a escolha da nordestina? Que intenção repousaria sub-repticiamente sobre sua escolha? Por que o tratamento abominável? Por terem nascido numa região seca, expressão suposta de todo tipo de miséria?Teriam culpa nisso? E os grandes governantes de seus Estados e de seu País, sem nenhuma vontade política, que pelo contrário, sempre fizeram questão de manter, a chamada pelos historiadores de, “indústria da seca” para assegurar seus pleitos eleitorais, à custa, dessa forma, do martírio lento dessas pessoas. Estes não são ridicularizados, nem humilhados.

Mas a expressão “indústria da seca” tem forte ligação com o trecho citado acima “atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam”: discursos que revelam a presença da técnica e esta exige um automatismo de máquinas, de peças, uma metodologia de processo eficaz. Na época da escritura do livro a Revolução Industrial iniciada na França havia se instalado no Brasil, não instantaneamente, no momento primeiro, é claro, mas em uma onda situada medianamente quando se joga uma pedrinha num lago. A própria Clarisse Lispector acompanhara esse processo. Assim era comum tudo ser tocado pela técnica, pela alma das máquinas. Tudo poderia ser facilmente substituível como as nordestinas que “existiam aos montes”, forçadas, juntamente com seus conterrâneos, intencionalmente, pela não-vontade política, para engrossarem a massa de operários mal pagos nas indústrias das grandes cidades (como o Rio de Janeiro, onde a personagem da obra em questão migra) ou levados pelos “bolsões da seca” para trabalharem subumanamente nas florestas amazônicas na extração do látex, exaurindo suas vidas nas escuras fumaças de chaminés ou da queima da borracha. Mas a civilização da técnica deve ser regida pelo “O princípio responsabilidade”, principio este pensado por Hans Jonas (2006) na busca de uma ética para a civilização tecnológica. E o ser humano, cerne dessa civilização, não pode estar fora da abrangência da mesma.

Assim é estigmatizada, a humilde Macabéa, até na escolha de seu nome pelo autor que, segundo comentário do namorado, colocado ao lado da mesma na história, parecia nome de doença, “doença de pele”. Estigma que se configura segundo Golffman (1963, p.15), dentre os de ordem “tribais de raça, nação e religião”. Os estigmas, de acordo com o mesmo autor, refletindo os pensamentos de D. Riesman, faz com que acreditemos que:

“alguém (...) não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar,reduzimos suas chances de vida. Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como a classe social”.

E é assim que Macabéa é apresentada ao leitor, como um ser inferior que “deveria ter ficado no sertão de Alagoas com seu vestido de chita e sem datilografia, já que escrevia tão mal”; que, segundo o mesmo, assemelhava-se a “uma cadela vadia (que) era teleguiada exclusivamente por si mesma”(7) . Sua descrição tem o objetivo de ridicularizá-la, mostrando-a “de leve como uma idiota” com “olhos enormes, redondos, saltados e interrogativos”, olhos “de quem tem uma asa ferida – distúrbio talvez de tireóide (comenta sarcasticamente o autor), olhos que perguntavam” (8); moça cuja “mulherice só lhe chegaria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol”(9) . Além disso, tinha o cheiro ‘murrinhento”, o hábito de assoar o nariz na barra da combinação”. E para o cúmulo da humilhação, Rodrigo S. M. penetra a virginal intimidade da jovem descrevendo suas imaginações sobre como deveria ser o sexo de Macabéa. E o mesmo já havia sentenciado “que cada um a reconheça em si mesmo”(10) . Eis o ponto cume de um processo de aviltamento, aplicada num “gozo comparável ao do sacrilégio”,como diria Gabriel Marcel ( 1951), pois segundo o mesmo autor,

“o perseguidor tenta destruir em um ser a consciência, ilusória ou não, que esse ser tem de começo sobre o seu próprio valor. É preciso que ele aos seus próprios olhos seja o que dele julgam ou fingem julgar; é preciso que aquele que nada vale reconheça a nulidade própria; e não basta reconhecê-la intelectualmente; há de senti-la, como nós sentimos o cheiro da decomposição, que nos obriga a tapar o nariz.”(11)

A história de Macabéa esta imersa no aviltamento. História que não é diferente da de Fabiano e sua família em “Vidas secas” de Graciliano Ramos, nem melhor tratada. Ambos são colocados até mais baixo que os animais, todos são nordestinos. O que não foge à regra a vida dos operários miseráveis descritos na obra “O Cortiço” de Aluisio Azevedo. Estes últimos comparados até com vermes que fervilhavam na lama fétida. Macabéa, nascida em alagoas perdera os pais ainda na tenra infância e deles não pôde guardar nem a lembrança de seus nomes, visto que não eram mencionados pela tia que a criara e cuidara até os dezenove anos, quando morrera e deixara a sobrinha completamente só na vida. Mas não sem antes lhe arranjar um emprego no Rio de Janeiro como datilógrafa. E esta passou a morar num quarto alugado juntamente com mais quatro moças. Sua vida limitava-se a trabalhar, receber um mísero salário que mal lhe cobria as necessidades básicas, a colecionar anúncios de jornais, sobretudo de produtos que nunca poderia comprar e a escutar um programa na Rádio Relógio. Também gostava de ler algum livro que lhe chamava a atenção, como um, que encontrara sobre a mesa de seu patrão intitulado “Ofendidos e humilhados”. Apaixona-se e passa a namorar Olímpico de Jesus, também nordestino. Este a trata com a mínima consideração possível, isso por que tem o conhecimento de que ela é “moça donzela”. No entanto, a troca pela melhor amiga da mesma: Glória. Macabéa se entristece, mas continua sua vida simples, até que Glória a sugere e convence a consultar uma cartomante. Ela, ingenuamente, segue até o terreiro de madama Carlota. Lá, esta impressiona Macabéa demonstrando que conhece toda vida da mesma (supostamente contada pela falsa amiga, Glória). Conta também sobre sua própria vida como prostituta, depois como dona de casa de “mulheres da noite” e por fim como vidente. Realça a vida confortável que teve quando era “mulher da vida”, com o objetivo de induzir Macabéa a aceitar homens. No entanto, vendo a esquiva da jovem por essa vida, seu comportamento recatado, prefere seguir com outras palavras seu mesmo objetivo que é prostituí-la. Fala-lhe de um suposto amor de um gringo por Macabéa que se revelaria naquele dia e que tinha como intenção casar-se com ela. Apareceria em seu apartamento num carro de alto luxo e lhe daria um elevado valor em dinheiro. Macabéa sonhadora, romântica e ingênua, acredita, e na ânsia de encontrar sua felicidade, sai desnorteada com o desejo de preparar-se e esperar pelo seu futuro amor. Ao sair, quando atravessava a rua foi colhida por uma Mercedes amarela, como dizia as previsões de madama Carlota “de alto luxo’. Ela ficara jogada sobre uma calçada à espera de socorro, sob a chuva, o frio e os olhares dos que se aglomeram, até os últimos esforços por se manter viva. E esta é a sua hora. A hora da estrela. Talvez porque uma estrela só comece a ser estrela quando se liberta de si mesmo em explosão de luz constante. E o autor conclui a história: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.” Quer dizer, aquela morte não era mais importante do que o lembrete de que se poderia desfrutar de deliciosos morangos naquela época.

Refletindo sobre a obra uma inquietação me perseguia. Estaria a autora vinculada a tais ideologias? Não podia acreditar nisso. Aprofundei-me, então, na leitura de sua biografia e encontrei fatos plausíveis. Não incriminatórios, mas que lhe inocentavam lhe colocando até como uma suposta vítima de tais idéias desumanas. Nascera na Ucrânia já em viagem imigratória para a Alemanha e desta para o Brasil. Aqui viveu até os quatro anos em Maceió, e até os quinze em Recife, Pernambuco. Perdera a mãe quando tinha nove anos. Depois segue com o pai para o Rio de Janeiro. Estuda inglês e dentre outros cursos, datilografia.

Ficou-se pensando; estaria Clarice Lispector, incorporando o discurso das pessoas preconceituosas daquela terra, da alta e média sociedade em que ela chegara como nordestina?Teria sofrido ou presenciado tais sofrimentos? Sendo assim, incorporando, hermeneuticamente(12) , o carrasco, realmente não poderia ser delicada, nem gentil. Deveria ter o discurso frio, disfarçado pela piedade, mas com o objetivo implícito, subliminar em cada ato de ridicularizar, como o tratamento que a sociedade dá aos estigmatizados. Além disso, deveria ser metódico como as técnicas, o aviltamento. Clarice dessa forma, fôra esplêndida, grandiosa. Teve a coragem de se revestir do próprio perseguidor para desmascará-lo. Enquanto muitos fogem até mesmo do pensamento dos que lhe humilham, ela resume uma força e altivez tamanha que o enfrenta e vence, por que arranca sua máscara, suas vestes e o lança nu diante do leitor, para que o abominemos.

Quanto a mim também sou nordestina. E um dia supuseram que eu era cabana, por ser educadora num bairro denominado Cabanagem. Fiquei em silêncio. Em que sentido poderia responder. Eu poderia ser natural de qualquer região que quisesse desde que amasse. E eu amo. Não somente por representar o nome de um dos maiores movimentos ocorridos no Brasil, mas o único que conseguiu tomar o poder e se manter ainda que efemeramente. No entanto, o povo mostrou sua força. E que coincidência: havia nordestinos em sua liderança. Então, sou nordestina, cabana, ribeirinha, sertaneja, rip, cigana, quilombola, hanseniana, africana, judia, pois os amo, todos. Sou qualquer face desamparada ou discriminada, pertenço a qualquer povo aviltado e estigmatizado, e tenho orgulho de sê-los e a eles pertencer. E daí?!

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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUBER, Martin. Eu e Tu.Introdução e tradução, Newton Aquiles Von Zuben. 2ª ed. Editora Moraes, 1974

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela.Rio de janeiro: Rocco, 1998..

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade.: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. Luiz Barros MONTEZ. Rio de Janeiro. Contraponto. Ed. PUC- Rio, 2006

MARCEL, Gabriel. Os homens contra o homem.Tradução: Vieira de Ameida. Editora Educação Nacional, Porto, 1951

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(1) Ensaio apresentado à Coordenação de Letras Campus de Belém da Universidade Federal do Pará Pós-graduação lato sensu: Língua Portuguesa: uma abordagem textual. Disciplina: A linguagem do texto literário.

(2)Professora de Língua Portuguesa e acadêmica em Artes Visuais.

(3) Pequeno poema de minha autoria para ilustrar minhas sensações ao ler a obra em questão.

(4) P. 12

(5) P. 13

(6) P.14

(7) P.18

(8) P.26

(9) P.28

(10) P. 70

(11)MARCEL, Gabriel (1951, p.48)

(12)Refiro aqui à Hermenêutica filosófica de Martin Buber (1974)