Nosferatu Vai à RPG

Posso imaginar perfeitamente a cena:

Depois do contato telefônico entre o ser sobrenatural e a profissional de saúde e de marcada uma consulta e uma avaliação ele chega ao consultório.

São duas horas da tarde. Faz um calor de rachar. Seus poderes não estão à pleno como se fosse noite. Mas pessoas esclarecidas sabem que vampiros também se movimentam durante o dia sem nenhum problema. Apesar de causar certo espanto na recepcionista tudo ocorre tranquilamente na sala de espera até seu nome ser chamado:

- Vlad!

Ele levanta-se a vai cumprimentar a rpgista, uma gatinha bonitinha com um belo corpo e olhos verdes em uma pele morena tratada com bronzeamento arficial. Brincos de bolas com correntes nas orelhas. Muito sugestivo. A mão do suga-sangue é gelada ele não reflete no espelho corredor que leva à saleta. Ela o conduz até uma cadeira para que se sente.

A fisioterapeuta começa a fazer as anotações de praxe:

- Nome?

- De batismo? Quer saber o paciente.

Sua aparência pode ser do Gary Oldman ou Bela Lugosi ou ainda do Vincent Price ou do Klaus Kinsky ou até mesmo de alguém escalado para um filme do Wes Craven.

- Como? Replica a rpgista.

- Sim, meu nome de batismo pela igreja ortodoxa é Vlad Tepes. Mas costumam chamar-me Vlad Dracul, Vlad o Empalador, ou simplesmente Conde Drácula. Esclareceu com forte sotaque romeno.

- Data de nascimento, Senhor Conde. Continua a moça.

Ela está vestida com uma bata por debaixo do jaleco branco, uma calça jeans preta que marca seu belo corpo e usa sandálias daquelas que realçam os dedões do pé. Realmente, seu pezinho é muito bonito e delicado. Aqueles de provocar fetiches em qualquer um.

- Idade? Ela quer saber.

- Que eu lembro deve ser 1431...

Ela o fita com seus maravilhosos olhos. Está meio desconfortável com essa informação desconcertante, mas continua com seus ares profissionais. É muito boa no que faz. Apesar de seus meros 28 anos estudou com o próprio Souchard, criador do método.

- E que o senhor sente, Conde? Onde exatamente é a dor?

Ele levanta-se da cadeira e com seu dedo indicador magro e cadavérico aponta para uma vértebra de coluna lombar e começa a descrever exatamente o que sente. As lancinantes dores nas costas que o fizeram trocar os pescoços pálidos de lindas e ingênuas virgens pelo sangue de bêbados cambaleantes e baratos que tropeçam pelas ruas da cidade. São mais fáceis de capturar, com ele frisa, porém o sabor não é tão agradável.

A terapeuta continua:

- Como é seu colchão? Desculpe,... como é seu caixão?

Ele menciona algo sobre o esquife ser da Era Vitoriana, de quando morou na Inglaterra.

Ela o faz deitar sobre a maca com dois braços e começa a sessão de exercícios e trações que levam mais um menos uma hora. Ele sai do consultório agradecido, se sentido um pouco melhor, com seu cartão preenchido com a data da nova visita, e com uma nota de cem euros a menos no bolso. Vlad perdeu a noção do dinheiro há muito tempo...

Faço essa introdução surrealista para entrar no verdadeiro assunto do escrito de hoje.

O mundo anda na velocidade de um trem bala, nessa aldeia globalizada e estúpida que foi criado por todos os canalhas para manter os cidadãos de bem, alimentados, burros, satisfeitos e alienados. A população de NYC não presta atenção no suave som do violino de Joshua Bell tocando nos corredores do metrô. A especular música de Schubert não consegue libertar a besta humana de sua masmorra interior que o leva a vida estressante, indigna, vil e miserável. Apenas pautada pelos valores matérias do universo capitalista. Um esteta romântico e sonhador como eu (maldito, mas mesmo assim romântico) não concebe de forma nenhuma essas atitudes. Prefere o homo sapiens a escravidão de um emprego ridículo do que uma vida livre e meditativa. Prefere esse referido verme se privar de uma liberdade individual em troca de um bem material que lhe tolhe por completo a referida liberdade. Prefere escolher entre uma coisa ruim e outra muito pior do que levar uma existência em comunhão com a natureza e com toda a noção de belo e divino que o cerca, mas que por pura ignorância ele não percebe. Talvez eu me expressado mal. O homem olha, mas não vê. Não quer ver. Dá muito trabalho para seu cerebrozinho atrofiado por religiões de “deuses-no-céu”, de deus como uma coisa fixa, com já falava o Huberto Rohden, sacar toda a maravilha que é viver em plenitude com si mesmo.

Mas, não! De forma nenhuma. A pessoa dos dias de hoje prefere uma balada barulhenta e sem sentido, um celular que provoca câncer, um carro potente que polui o meio ambiente do que ouvir o som da “música mais antiga do universo” que nada mais é que seu som interior. Muitos covardes, ainda por cima, teimam em tentar calar a sua voz interior. Aquela que, na verdade, nos distingue como indivíduos racionais e pensantes.

Racional? Civilizado? Pensante? Quase me envergonho dos cabelos aos cadarços de meus tênis furados e sujos de colocar “ser humano” e esses adjetivos na mesma frase. Instaurou-se uma época de que todos sabem o preço de tudo e o valor de nada, como rezava um grafite punk. Inaugurou-se uma “era das trevas” recheada de luzes artificiais. Enquanto a tecnologia avança o bobo alegre se fecha numa concha e acaba ficando com pavor até de sua própria sombra. Loucos perigosos para si e para o próximo caminham pelas ruas com impunidade. Deveriam – esses sim – estar numa cela acolchoada, entupidos de Thorazine, enquanto os internos dessas instituições poderiam ser liberados por alta médica. Criminosos e assassinos de sangue frio de gravatas e ternos bem cortados continuam presidindo grandes corporações e poderes públicos para continuar aviltando o seu semelhante para seu proveito próprio. Continuam constituindo famílias que só tendem a desperdiçar oxigênio, votar errado e consumir desenfreadamente. E é com sofreguidão e decepção que digito hoje essas linhas. Porque realmente, não existe solução. Revoluções em cima de revoluções: industrial, sexual, racial, tecnológica. Guerras em cima de guerras. Todas por um motivo nobre, dizem seus fomentadores. Em nome de “deus”, de uma ideologia, de uma forma de governo. E todas fracassaram e nos levaram para o poço sem fundo que nos encontramos nesse exato momento que você começou a ler desavidamente esse texto. E por um motivo bem mais simples que você imagina: porque colocaram um ser humano no poder. E aí fica a pergunta: quando teremos a tão esperada “revolução do ser humano”? Quando, finalmente, enxergaremos todos como irmão de carne e sangue e não como inimigos em potencial que querem nos ultrapassar? Não na minha geração. Que dúvida.

Então, não me espanta um vampiro num consultório que fisioterapia. O que me espanta é ver gente de carne e osso como eu, que tem os mesmo sentimentos que eu e talvez os mesmos anseios desperdiçar nossas vidas com futilidade e incompetência. A viver apressados para chegar a lugar algum. A desprezar alguém por um motivo torpe com a cor da pele, os olhos rasgados ou até mesmo por um vasta cabeleira e uma tatuagem de morcego e uma camiseta dos Sex Pistols. Ainda vai chegar o dia em que teremos que pedir desculpa para a história. E nesse dia, a dor nas costa do Conde Vlad vai cessar por completo e sem precisar fazer RPG...

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 12/02/2010
Código do texto: T2083589
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