A máquina do mundo

Análise de poema - Curso de Licenciatura em Letras - 1997.

É um poema grandioso e exemplo profundo do lirismo-existencial do poeta Carlos Drummond de Andrade, um dos meus escritores favoritos. Toma seu motivo de Camões: a imagem da máquina do mundo que é dada a Vasco da Gama contemplar do alto da ilha dos amores (Os Lusíadas, canto X). Na epopéia camoniana, o episódio ocorre em ambiente erótico, em meio aos encantos da ilha enamorada e de Tétis, soberana das ninfas. O herói português, como prêmio por sua conquista, é elevado à compreensão da mecânica do universo - um conhecimento antes exclusivo dos deuses.

O poema de Drummond é escrito em tercetos (32 ao todo) que, embora não rimados como o de Dante Alighieri, lembram a Divina Comédia, por seu andamento narrativo, sua gravidade e seu conteúdo cósmico-existencial. Nele, a “máquina do mundo” se abre para um desenganado transeunte, numa estrada pétrea, em meio a trevas do mundo e da alma:

E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

o céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos montes

e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivara

e só de o ter pensado se carpia.

O poema tem início, muito significativamente, com "e" . Essa conjunção coordena todo o texto a algo anterior, insere-o numa sequência, na continuação de algo (a experiência anterior, a vida até o momento do acontecimento narrado no poema). A construção como + subjuntivo (palmilhasse, misturasse, pairassem, fossem) tem tanto sentido temporal (quando eu palmilhava...) quanto causal (porque eu palmilhava...).

Depois da ampla série dessas orações subordinadas introduzidas por como (versos 1 - 9), a oração principal (“a máquina do mundo se entreabriu”) aparece iluminada pela expectativa suspensa ao longo de nove versos.

Essa abertura estabelece o tom sombrio e apresenta o material temático desenvolvido no poema. O caminhante é lento, seus passos são marcados pelo desengano de quem já abandonou a ilusão de poder decifrar a máquina do mundo, isto é, compreender o sentido íntimo da vida, de tudo.

O sujeito e o ambiente em volta se associam (o som do sino rouco, que introduz a noite, se mistura ao som dos sapatos do caminhante, pausados e secos) e tudo participa de um espetáculo de dissolução nas trevas (as aves se diluem na escuridão maior, que vem de fora e de dentro do sujeito).

O simples fato de ter pensado alguma vez em compreender, penetrar, ou seja (romper) a máquina do mundo torna-se motivo de lamento (me carpia); e é para esse desenganado, a vagar sem destino preciso (vagamente), que a esplêndida máquina se oferece.

Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável

Pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.

Apesar de grandiosa e grave, a máquina do mundo se apresenta com uma completa suavidade; nenhum som dissonante, nenhum brilho mais forte, que pudesse perturbar os sentidos do sujeito, já esgotados na vã tentativa de compreender toda uma realidade desértica, que supera a mais extrema e estranha imagem que se possa esboçar dela.

A máquina se abre em pura calma, para não perturbar o sujeito já esgotado em suas tentativas de total explicação da vida, tão esgotado que agora tinha renunciado a todo projeto de compreensão. E o que a máquina oferece a seus sentidos é nada menos que a visão da natureza mítica das coisas, que por um instante, num relance, é vislumbrada pelo caminhante.

(...)

As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo o que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar

na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que todos

monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses e o solene

sentimento da morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vida humana

Essa visão instantânea de tudo (as obras e as paixões dos homens, toda a natureza, o mistério da vida, a memória dos deuses, o sentimento da morte) é um vislumbre do reino augusto que a máquina oferece ao caminhante.

O poema de Drummond também termina, por razões bem diferentes, com a rejeição da revelação mística (a percepção da natureza mítica das coisas) que a máquina do mundo oferece:

(...)

baixei os olhos, incurioso, lasso,

desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso de mãos pensas.

A revelação oferecida àquele que, por toda a vida, se esgotara a procurá-la, é revelação dada. O poeta a chama de dom tardio, revelação não conquistada. Ela perde seu atrativo, é desprezada. Embora repelida, negada, a máquina do mundo não é abolida; a rejeição do sujeito não a destrói, mas a abala, pois, como humilhada, ela se foi miudamente recompondo.

O caminhante recusa o dom gracioso da máquina do mundo. Desdenha o conhecimento sobre-humano, acima das deficiências insanáveis da medida humana: o conhecimento místico, a graça, o presente de poderes mais altos que o homem. Ao recusá-lo, investe-se da condição plenamente antropocêntrica, estritamente profana, isto é, [ não religiosa ] do homem moderno; não aceita nada que não esteja contido em sua própria capacidade, sem auxílio superior.

Resumo do poema analisado

Temática : lirismo filosófico-existencial

Sentido do título do poema : o desengano filosófico

Sentido do título da obra: é um oxímoro; a antítese em que os termos se contradizem (Claro Enigma)

Estilo : restauração das convenções pré-modernistas

Métrica: tercetos

Linguagem : alta elaboração da linguagem. Idioma poético mais tradicional. Embora modernista, está em consonância com as normas lingüísticas do passado para expressar uma amargura resignada, o tédio dos acontecimentos, o recolhimento meditativo, o pessimismo, o sentido da vida, a dúvida e o desengano.

Augusto Matos
Enviado por Augusto Matos em 20/05/2010
Reeditado em 10/06/2010
Código do texto: T2268313
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