Um posto avançado do progresso

No conto “Um posto avançando do progresso” de Joseph Conrad, vemos dois homens (Kayerts e Carlier), que são encarregados pela “Companhia” de chefiar um posto de comércio no Congo, ruírem, pouco a pouco, em meio a um sistema colonialista implementado na África. A desgraça desses dois “indivíduos perfeitamente insignificantes e incapazes” começa a se delinear, claramente, após a venda de alguns africanos para traficantes de escravos em troca de marfim – venda que não foi realizada sob a consciência de Kayerts e Carlier.

Assim, no conto, nos defrontamos com dois personagens que não conseguem lidar e entender a realidade que os cerca e, por isso, essa os deforma e os absorve – como também acontece em Bouvard e Pécuchet de Flaubert.

Isso pode ser evidenciado se notarmos que, apesar do narrador se utilizar do discurso direto, este necessita ser explicado na sequência. Uma passagem onde isso se evidencia:

“Já entendi! Eles foram atacados enquanto dormiam profundamente depois de terem tomado o vinho de palmeira que você deixou Makola distribuir para eles. Tudo combinado! Entendeu? E o pior é que alguns dos homens de Gobila também estavam lá, e foram levados juntos, sem dúvida. O menos bêbado acordou, e acabou levando um tiro por causa da sobriedade. Que país estranho. E o que você vai fazer agora?”

“Não podemos ficar com isso, é claro”, disse Kayerts.

“Claro que não”, concordou Carlier.

“A escravidão é uma coisa horrível”, gaguejou Kayerts com a voz trêmula.

“Terrível – tanto sofrimento”, grunhiu Carlier com convicção.

Acreditaram no que diziam. Qualquer pessoa demonstra uma deferência respeitosa perante certos sons que ela própria ou seus semelhantes são capazes de emitir. Quanto aos sentimentos, porém, ninguém na verdade sabe nada. Falamos com indignação ou entusiasmo, falamos de opressão, crueldade, crime, devoção, sacrifício, virtude, e não sabemos o que existe de real por trás das palavras. Ninguém sabe o que significa o sofrimento ou o sacrifício – exceto, talvez, as vítimas da finalidade misteriosa dessas ilusões.

O ressentimento que os personagens sentem com relação à escravidão não é convincente em suas falas e sim na contextualização, na complementação do narrador. Com isso o narrador nos expõe dois personagens que retratam o desconhecimento ou a falta de entendimento sobre o processo colonizador da África – desconhecimento que foi dominante nos homens dos países europeus que aceitavam o colonialismo como uma forma de avanço de progresso da civilização.

Dessa forma, Kayerts e Carlier são retirados do seguinte idealismo:

“Daqui a cem anos, pode ser que aqui exista uma cidade. Um porto, depósitos, e alojamentos, e – e – salões de bilhar. A civilização, meu rapaz, e a virtude – e tudo o mais. E então, as pessoas vão saber que estes dois sujeitos, kayerts e Carlier, foram os primeiros homens civilizados a viver neste exato lugar!”.

E são sujeitados a existência da escravidão, da falta de suprimentos, da negligência da “Companhia”; a civilidade e os valores morais soçobram. Assim, sem conseguirem entender o significado de sua situação, os personagens não conseguem mais lidar com a convivência destituída de valores, de certezas, e acabam ruindo e se destruindo.

A ficção é história, história humana, ou não é nada. Mas também é mais que isso: ela se apóia em chão mais firme, baseando-se na realidade das formas e na observação dos fenômenos sociais, enquanto a história é baseada em documentos e na leitura de impressos e de manuscritos – em conhecimento de segunda mão. Assim, a ficção está mais próxima da verdade. Mas deixemos isso de lado. Um historiador também pode ser um artista, e um novelista é um historiador, o preservador, o detentor, o expositor, da experiência humana.

Pensando, a partir deste trecho peculiar retirado da epígrafe do posfácio de Luiz Felipe de Alencastro ao livro “Coração das Trevas” de Conrad, podemos vislumbrar Joseph Conrad como um historiador ou um pensador da história que colocou em seu conto “Um posto avançado do progresso” toda a problemática da Europa e do homem europeu colonizador e civilizador. Fazendo-nos repensar a relação dialética e instável do seres humanos com as distintas formas de sociedade existentes.