Elementos da Poética de Gregório de Matos

Análise literária no Curso de Letras - 2000.

O discurso antropofágico, além de altamente crítico e inovador, caracteriza-se por seu aspecto e função devoradores e marca-se por uma devoração específica: um parricídio conceitual, em que a palavra passa a não ser mais o estatuto que oficializa o poder, e através do qual ele se manifesta sob múltiplas formas de opressão. A atitude antropofágica é uma metáfora, um diálogo e uma terapêutica. Metáfora da cerimônia guerreira da imolação do inimigo aprisionado no combate; diagnóstico da sociedade brasileira sufocada pela repressão colonizadora; e terapêutica enquanto reação violenta e sistemática contra os mecanismos de repressão. O tipo de discurso antropofágico está presente na obra de Gregório de Matos assim como a poética carnavalizante ou “poética do riso”. Através dessa “poética do riso”, Gregório de Matos mostra-se um crítico atento à sociedade que o envolve, e da qual ele traçou um perfil rigoroso e sem concessões.

Um outro elemento poético importante da obra de Gregório de Matos é o riso carnavalizante: não fala o discurso do poder e é uma confluência de discursos, descontínuos e repentinos, cuja articulação imprevista carrega uma força crítica e corrosiva. Esta crítica carnavalizante da cultura é um veio popularizante, marginal, que dialoga com o sistema de normas instituído para a preservação do estatuto simbólico, ou seja, regulador da cultura. Também está presente na obra de Gregório de Matos a polifonia, cujo conceito é medular: seus textos se recolhem, num incessante trabalho de intertextualização, materiais e heterogêneos.

A linguagem poética de Gregório de Matos, apesar do vínculo estilístico às matrizes barrocas de um Góngora ou um Quevedo, viabiliza ao meu ver uma saída brasileira dentro da expressão literária do tempo, saída ou maneira esta surpreendida quer na desenvoltura sintática da frase ou na clarificação geral do discurso, quer na formulação mais livre e graciosa da idéia ou mesmo aproveitamento de um novo material semântico, retirado ao vivo de uma fala de nítida feição nativa.

Gregório de Matos é o primeiro autor a introduzir na poesia da língua portuguesa uma nova feição de sensibilidade e linguagem que podemos denominar "a dimensão brasileira". Fortemente marcado pelo espírito de sua época, suas composições evidenciam a mesma propensão lúdica dominante na arte seiscentista, a atração pelo jogo das idéias e das palavras que empolgou o escritor do tempo. O jogo de sua poesia antes que jogo velado, sutil, dissimulado, é jogo franco direto, sem meias medidas, jogo feito às claras, em que uma nova semanticidade, de referência imediata aos objetos e não de mera alusão conotativa, revela uma também nova ordem de significados, emergente, sem dúvida, da sua realidade, ou seja, da realidade colonial brasileira.

Poeta-jogador por condicionamento irrefugível das tendências de sua época, mas sobretudo poeta-jogral por uma predisposição de temperamento, é na verdade mais exatamente profana de sua poesia - a de cunho jocoso e satírico, que Gregório de Matos encontraria condições naturais para a plena expansão de sua exuberância lúdica. Ele não esconde então a sua qualidade de artesão barroco atento às exigências do procedimento estilístico, aos recursos de linguagem que assinalam o gosto do tempo, aliando a isso, contudo, uma visão extremamente realista do seu mundo, fixada através de uma forma poética aberta tanto estética quanto semanticamente, forma voltada sempre para a urgência comunicativa, problema que em muitos casos poeta equacionava oralmente e até mesmo com o auxílio da música. Ludicidade e jogralidade representam, portanto, elementos fundamentais e inseparáveis na estrutura do verso de Gregório de Matos, em cuja tessitura localiza-se não só os expedientes comuns a toda a técnica da poesia barroquista - as paronomásias, as aliterações, as assonâncias, os quiasmas, as elípses etc., porém uma vontade maior de jogo, diria até um indomável ímpeto jogralesco, traduzido na vivacidade rítmica da frase, na exploração dos contrastes e efeitos de dissonância e correspondência sonora entre as palavras, enfim numa espécie de marcação melódica mais consentânea com o processo de comunicação musical do que com o da poesia.

A Cristo S. N. Crucificado estando o poeta

na última hora de sua vida

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,

Em cuja lei Protesto de viver,

Em cuja santa lei hei de morrer

Animoso, constante, firme e inteiro:

Neste lance, por ser o derradeiro,

Pois vejo a minha vida anoitecer,

É, meu Jesus, a hora de se ver

A brandura de um Pai, manso Cordeiro.

Mui grande é o vosso amor e o meu delito;

Porém pode ter fim todo o pecar,

E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,

Que, por mais que pequei, neste conflito

Espero em vosso amor de me salvar.

Um outro elemento importante da poética de Gregório de Matos é a ideologia da seriedade que está presente no soneto apresentado anteriormente. Esta ideologia por ser monológica, por exprimir verdades, por ter um centro e portar o “teos” e tais atributos estarem contidos no soneto, fazem-no assumir as referidas características.

A ideologia da seriedade opera por um tratamento sisudo e bem comportado, além de selecionar um repertório nobre, de preferência, os sentimentos elevados e sublimes que engrandecem a alma humana. É nessa concepção ideológica que se apoiou Gregório de Matos para a criação desse soneto, que é dedicado a Jesus Cristo quando o poeta está na última hora de sua vida. Aqui, Gregório de Matos deixa de lado o discurso antropofágico, o riso carnavalizante em prol de uma poética mais séria e que harmoniza com a essência do poema que é nobilíssima e que “reflete”, em parte, a magnitude de Providência Divina.

Maravilhosamente bem construído, o soneto não perde em clareza pois, ao contrário do verso pedante das academias, produzido e consumido nos limites de um pequeno círculo de iniciados, a poesia de Gregório de Matos dirigia-se a uma comunicação mais ampla, pretextava falar ao entendimento popular numa sociedade de contornos bem primitivos, ao nível da qual procurava dar forma à sua expressão.

A postura contrária aos excessos poéticos de seus contemporâneos invocada por Gregório de Matos não significava, no entanto, confissão de qualquer pobreza de concepção ou ausência de força expressional, mas antes uma contenção maior na utilização de imagens, uma fidelidade mais acentuada ao sentido referencial das palavras. Porque, sem ceder às demasias do modismo, sua linguagem livrou-o a atingir instantes de criatividade e culminância lírica, a exemplo do soneto acima, de contrição religiosa dirigido ao Cristo crucificado ou de meditação tipicamente barroquista sobre o drama do fluir inoxerável do tempo, em que os condutos lúdicos - os jogos de idéias e de palavras - só fazem fortalecer uma grande e translúcida impulsão de lirismo.

Jesus Cristo quando foi imolado na cruz como um manso Cordeiro, sacrificou-se a si próprio por amor e salvação da humanidade com a finalidade de aniquilar o pecado. Durante sua vida, dedicou-se às pregações da Palavra de Deus, através de parábolas e outras formas de discursos, através de atos maravilhosos de demonstração de amor à toda criatura de Deus e anunciando o que de fato o é, ou seja, o Caminho, a Verdade e a Vida, que o tornam um Justo Juiz de todos nós e infinitamente brando e misericordioso para neutralizar os nossos delitos. Como diz na 3ª estrofe do soneto analisado:

“Mui grande é vosso amor e o meu delito;

Porém pode ter fim todo o pecar,

E não o vosso amor, que é infinito.”

Há muita religiosidade presente no soneto, e esta assume formas e contornos de diferentes nuances no suceder dos versos. Algo grandioso está implícito ou “revestido” pelas palavras cuidadosamente empregadas. Talvez uma simples leitura não propicie um “vislumbrar” adequado da magnitude a que se referem os versos concisos, expressivos e claros mas que ainda assim “forçam” os pobres mortais às atentas releituras para, então, “adentrarem” e acessarem plenamente a essência do poema. Cada palavra e cada verso, abrem “portas” que nos põem em “ambientes” de difícil descrição, talvez pelo fato de os leigos nesse campo literário terem sempre dificuldades de compreensão... mesmo com o propósito predominantemente simplista do autor nesse contexto.

Certos trechos do soneto me trazem uma reflexão sobre uma grandeza que à mente humana não é possível compreender claramente. É a magnitude de Deus, da qual somos uma minúscula parcela e por essa razão, por não sermos o Todo, não nos é concedida a mesma compreensão sobre o mesmo Todo. Já no caso da cruz, como meio de imolação de Jesus Cristo, assumiu na História e fora dela, um gigantesco significado: ícone mágico e valioso para todo cristão. Essa mesma cruz, esse mesmo significado pode ser “indicado” por meio do 1º verso da 1ª estrofe.

Na 1ª estrofe, aborda-se também o significado da Lei de Deus, importantíssima, grandiosa e uma das “placas” que orientam o caminho de um indivíduo à sua digna salvação. A maior e mais importante delas é, sem dúvida, Jesus Cristo ao qual o poeta clama antes de sua morte. Sabendo este que por ser infinito o amor de Cristo e a salvação espiritual estar Nele, depositou-no sua confiança última. O ciclo de vida estando em seu final, implica uma morte carnal e a redenção espiritual e justamente isso é implicitamente desejado no 3º verso da 4ª estrofe por parte do poeta que, no amor de Cristo espera a salvação da alma e não do corpo que é terreno.

Num plano abstrato, apresentam-se conceitos na forma de pares como:

* magnitude Divina diante da pequenez humana;

* necessidade de intercâmbio entre o espiritual e o carnal;

* a plenitude suprimindo a carência;

* o processo de transição entre a vida carnal e a espiritual;

* os pecados acumulados pela vida corpórea e a possível extinção dos tais, quando a vida após o Juízo será espiritual;

* o jugo da Lei de Deus para o corpo e a ausência dele para a alma após a morte do corpo.

Augusto Matos
Enviado por Augusto Matos em 25/05/2010
Reeditado em 10/06/2010
Código do texto: T2279066
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