Lembranças de um Guardião

Som de gritos.

Som de metal.

Confusão.

Estou no meio de uma batalha. Estou coberto de lama e sangue. Há uma confusão ensurdecedora por todos os lados. Um homem surge de repente com um machado, avançando e gritando em minha direção. Consigo desviar e o atinjo com uma longa espada. Minhas mãos estão cobertas por manoplas e couro. Sinto um empurrão pelas costas e caio com o rosto na lama. Luto pra me levantar em meio ao tumulto.

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Estou em casa. No meu quarto. Uma mulher canta e posso ouvi-la pela janela alongada, dividida em três, em uma grossa parede de pedra. É uma mulher cuidando de uma horta. A luz do dia fere meus olhos. A canção é doce e cheira a lar, família...

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Uma cama grande, uma mesa com pergaminhos, próxima à janela. Uma armadura em uma estrutura de madeira e um estandarte na parede. Vermelho com uma wyvern amarela. O mesmo desenho em um pergaminho na mesa.Uma velha senhora com roupas de criada entra e anuncia alguém. Um homem alto com barba e cabelos longos, negros como plumas de um corvo, perspicazes olhos azuis, entra e me saúda com alegria. Traja uma armadura escura e gasta. Fala algo que não compreendo e me entrega um tubo metálico. Parece conter algum documento. Sinto ser um amigo verdadeiro, quase um pai. Parece preocupado ao se despedir.

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Estou diante de um castelo, em pé na neve que quase chega aos meus joelhos. Peles cinzentas cobrem meus ombros e aguardo algo. Observo os portões escuros e enormes, imaginando que não são abertos há muito tempo, pois estão muitos cobertos pela neve. Como vou entrar? De repente de uma portinhola escondida, surge um velho senhor e um cãozinho de pelos negros que me cerca feliz. Convida-me a entrar com reverência e faz sinal para que eu o acompanhe. Estandartes vermelhos com três leões amarelos agitam-se ao vento gélido de um dia cinza, no grande pátio interno. Uma visita a um amigo? Aliado?

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Cheiro de comida. Muitas pessoas circulando, com animais e cargas, gritando e trabalhando. Uma feira! Um grande pedaço de carne está sendo assado em uma grelha por um homem. Eu aguardo, observando as pessoas. Um menino surge em meio a elas correndo em minha direção, e me entrega um pão branco. Some novamente apressado. Como o pão e o cheiro da carne me faz sorrir. Depois da guerra, estou perto de casa...

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Seus cabelos são loiros, levemente avermelhados. Se move como um cisne, altiva e certa de sua beleza. Mas seus olhos são o que mais surpreendem. São como um lago límpido e esverdeado. E sorri sempre, um sorriso luminoso e puro. Parece muito feliz. Veste branco e dourado, às vezes vermelho e branco. No jardim outras damas brincam e ela pratica com um arco, olhando pra mim e rindo, envergonhada quando erra.

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As pedras estão ali a mais tempo do que até os mais velhos podem se recordar...Estou vestindo a armadura, e com uma das mãos descoberta, toco aquelas rochas. Centenárias? Milenares? Não sei. Mas sinto um respeito ancestral por elas. Sinto a presença de algo Sagrado apenas por estar ali.

Sinto o musgo sobre elas. Respiro o ar frio da manhã. Acaricio a rocha pronunciando palavras que parecem uma oração por proteção. Estou perto de casa, mas não estou indo para lá...Volto-me e observo o exército com bandeiras vermelho-sangue ao vento gélido, aguardando no horizonte.

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Escuridão. Uma luminosidade, de repente, no canto de um quarto. Uma velha mulher se ergue e me entrega...Um bebê? Um bebê, ensangüentado e com o cordão umbilical. Desajeitado, eu o seguro com as luvas de metal frio na carne macia e desprotegida. Observo seu rosto belo por um longo tempo e abro um sorriso. Corro para fora com a criança e várias pessoas aguardam na noite iluminada por tochas fincadas na terra. Ergo o bebê para todos, orgulhoso.Todos urram, bebendo da minha felicidade.

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Afundando.

Estou afundando. Abro os olhos e na água há pedaços de madeira, cavalos nadando e homens mortos. Sangue, fogo. Mãos me agarram e me puxam para cima. Um garoto e o amigo de armadura escura me auxiliam e me forçam a correr. Apóiam-me pelos braços e corremos para uma carroça de feno no meio da batalha. De repente algo quente, úmido me atinje o rosto. A cabeça de meu amigo é atingida ao meu lado e ele cai. Dor, raiva, desespero. Quero voltar, mas estou fraco, o garoto praticamente arrasta-me para a carroça e ela sai em disparada.

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Um garotinho de cabelos dourados, olhos grandes e claros corre desajeitado em minha direção. Entrega-me um cavalinho de madeira com rodas e volta para a mãe que sorri orgulhosa. Seguro aquele cavalinho de criança, rindo. Momentos em casa. Paz. Felicidade. Minha família amada.

Antes da guerra.

Não quero pensar nela. Aproveito a paz enquanto posso no jardim com arcadas de pedra...O riacho rodeado de pedras pontiagudas e floresta no fim do gramado... Lavo meu rosto nas águas. Tenho cabelos longos na altura do peito, escuros, talvez castanhos. A barba bem aparada, olhos azuis. Sorte da esposa...Até que sou apresentável...

Nado várias vezes no riacho frio. Minhas roupas secam no corpo enquanto cavalgo de volta pra casa. Bons momentos entre uma batalha e outra. Até quando?

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Ela sorri, correndo por entre as rochas ancestrais, como que escondendo-se de mim por entre os troncos de uma floresta de pedra. Tento alcançá-la, sem sucesso. Ela deixa que eu a pegue. Seus olhos dizem o que é preciso dizer, quando o coração só escuta outro coração.

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Ela não está mais sorrindo. Senta-se ao meu lado junto ao fogo da lareira e encosta sua cabeça no meu ombro. Juntos olhamos para o fogo. Sei que ela está triste. Não me lembro de ela estar triste antes dessa noite, a não ser antes de uma viagem para a guerra. Ajoelha-se e chora com o rosto afundado em minhas mãos. Acho que ela sempre foi muito feliz ao meu lado. Penso que quanto a isso, eu não falhei. Fazer uma esposa feliz...

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Na porta da catedral dois grupos armados entram em conflito. Uns empurram os outros e o sacerdote intervem. Felizmente ninguém saca suas armas. Guardas rosnam impedindo que eu e meus homens entremos no templo. Olho para cada um, penetrando seus olhos, e me retiro com os outros. Não sei se fui até lá para rezar. Por que não pudemos entrar?

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Meus pulsos, amarrados por grossas cordas, em uma pesada cadeira de madeira. Minha camisa, rasgada e imunda. Não consigo mover a cabeça... não consigo olhar para os lados. Uma porta, com uma pequena janela com barras de ferro, duas tochas na parede à minha frente. Uma sala pequena e nenhuma outra luz. Sinto meu coração acelerar. Eu grito. Grito muito.

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Um lugar apertado. Escuridão. Sons. Uma porta se abre e sou violentamente puxado de dentro de um...Caixote em pé? Caixão? Dois homens me empurram.

Caio com o rosto na pedra áspera. Alguém com trajes em vermelho se aproxima de mim, ainda de joelhos e cabeça baixa. O rosto arde. Ele se abaixa. Um homem de cabelos brancos, curtos, e olhos azuis. Um azul frio, metálico. Está furioso, agitando papéis diante de meu rosto. Continuo ouvindo, de olhos baixos. Então o encaro diretamente, derramando meu desprezo em seus olhos. E cuspo. Ele se ergue, limpando-se com um lenço, enquanto sou espancado pelos dois homens. Acabo de cuspir em um cardeal...

Não me arrependo...

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Noite. Um luar magnífico... Sinto a madeira do poste em que estou preso. Apoio minha cabeça nele, desolado. Logo abaixo um sacerdote de vermelho faz o sinal da cruz, cercado de outros homens. Vermelho...Sempre essa cor...

Vermelho, como a bandeira que defendi. Como o pôr-do-sol nos cabelos dela...Como a água do riacho, quando eu me banhava depois de uma batalha, lavando a armadura do sangue dos derrotados...e de amigos perdidos.

Não sei o que houve com minha família. Estarão bem? À minha esquerda, uma grande construção. Na noite só consigo ver pouco dela, graças ao fogo que começa a queimar aos meus pés e ao luar banhando tudo. Parece ser uma igreja. É grande, talvez uma catedral.

Terei falhado? Continuo a olhar para a igreja, enquanto um grande sentimento de abandono toma conta de mim. Abandono por Deus? Por minha família? Por meus aliados? Não sei. Apenas...Abandono.

Abro os olhos.

Mas hoje, sei que não é o fim...