Os Mortos (Sobre o conto de Joyce)

Na transcendência estética reflete-se o desencantamento do mundo.

Posição do narrador no romance contemporâneo, Theodor W. Adorno

“Os Mortos” – último conto da coletânea Dublinenses de James Joyce – pode ser dividido em três partes: I – recepção dos convidados/início da festa; II - continuação da festa/discurso de Gabriel; III – fim da festa/ conversa de Gabriel e Gretta no hotel. Em cada uma destas partes há um diálogo de Gabriel Conroy que evidencia seu deslocamento com relação à sociedade, às pessoas e a si próprio.

Na primeira parte, Gabriel Conroy ao chegar à festa de final de ano das senhoritas Morkan - suas tias Kate e Júlia - é recebido por Lily, a filha do zelador. Após algumas palavras, Gabriel e Lily travam o seguinte diálogo:

- Diga-me, Lily – perguntou em tom amável – você ainda vai à escola?

- Oh, não senhor! Deixei de estudar há mais de um ano.

- Suponho então – acrescentou Gabriel, brincando – que um dia desses iremos ao seu casamento?

A jovem olhou-o por sobre os ombros e respondeu com azedume:

- Os homens de hoje são todos uns aproveitadores bons de conversa.

Gabriel enrubesceu como se tivesse cometido um deslize e, sem olhar para ela, tirou as galochas e esfregou vigorosamente o cachecol nos sapatos de verniz.

Neste diálogo, evidencia-se certa inadequação social de Gabriel que, ao fazer uma brincadeira com Lily, recebe uma resposta “brusca e rude da jovem”. Gabriel interpretará perfidamente esta inadequação como uma dificuldade em conciliar a sua “superioridade” intelectual com a simplicidade do resto das pessoas. Isso o leva a rever seu discurso de final de ano e supor que: “O discurso todo era um equívoco, um completo fracasso”. Gabriel desloca para o discurso e para as pessoas a sua volta a sua inadequação social, a sua disparidade, a sua falta de percepção.

Na segunda parte, já iniciada a festa, durante um momento dançante, vê-se um diálogo de Gabriel com Molly Ivors, - “jovem loquaz e desembaraçada”:

Ao tomarem seus lugares para a dança, ela afirmou inopinadamente:

- Tenho uma conta a ajustar com você.

-Comigo?

Ela balançou a cabeça com ar grave.

- O que é? – perguntou Gabriel, sorrindo de seus modos solenes.

- Quem é G.C.? – indagou a jovem encarando-o de frente.

Gabriel enrubesceu e ia franzir a testa como se não tivesse compreendido, quando ela prosseguiu:

- Oh, meu ingênuo farsante! Descobri que você escreve para o Daily Express. Não se envergonha disso?

-Por que haveria de me envergonhar? – perguntou Gabriel piscando os olhos e tentando sorrir.

- Bem. Estou envergonhada de você. – disse ela com franqueza. – Pensar que escreve para um jornal como esse. Não sabia que era anglófilo.

Gabriel fica “perplexo” com a brincadeira de Molly e novamente se encontra diante de uma situação de inadequação – “Mas não tinha direito de chamá-lo de inglês diante dos outros, nem brincando. Tentara ridicularizá-lo na presença de todo mundo, provocando-o e encarando-o com seus olhos de coelho”. O contexto do diálogo se refere ao tenso momento que vivia a Irlanda em seu processo de independência. Gabriel encontra-se, então, em uma situação que o coloca em conflito com sua nacionalidade e sua língua materna – que Gabriel acaba por negar.

Mais uma vez, Gabriel desloca sua inadequação para o seu discurso. Dessa vez, o deslocamento se dá no medo que Gabriel sente pela possível crítica que Molly Ivors poderá manifestar, através de olhares insinuantes, ao discurso que ele fará - cujo um dos temas é a “hospitalidade irlandesa”.

Na terceira parte, após o fim da festa Gabriel e Gretta – sua esposa – dirigem-se para o hotel onde passarão a noite. No trajeto para o hotel, Gabriel excitado pelo sucesso do discurso, pelas bebidas ou pela proximidade em relação à esposa vê: “Momentos de sua vida íntima irromperam como estrelas na memória”. Porém, as expectativas de uma noite agradável, onde sua mulher compartilharia de suas excitações, são logo quebradas quando, no quarto de hotel, Gretta demonstra um ar triste. Gabriel questiona o porquê e Gretta diz estar pensando na canção que ouvira no final da festa de ano novo e que a fazia se lembrar de um jovem, uma paixão adolescente. Gabriel manifesta ciúme e Gretta lhe diz que esse jovem está morto.

Procurou manter o tom de frio interrogatório, mas sua voz soou humilde e indiferente:

- Suponho que esteve apaixonada por esse Michael Furey, Gretta.

- Queríamo-nos muito bem nesse tempo – respondeu ela.

Sua voz era velada e triste. Percebendo como seria tolo tentar arrastá-la ao que pretendia, Gabriel começou acariciar-lhe a mão e disse, também com tristeza?

- E por que morreu tão jovem, Gretta? Tuberculose, foi?

- Creio que morreu por minha causa.

Nesse momento, mais que atordoado ou perplexo com a situação, Gabriel fica totalmente desestabilizado ao tomar consciência de sua inadequação como marido e, de maneira geral, sua inadequação emocional. Gabriel percebe como falta paixão em sua vida. Se entendermos a paixão como a suspensão temporária da realidade, vemos que Gabriel tem uma existência retilínea, paralisada, ou, metaforicamente, “morta”.

Escolhemos estes três diálogos para mostrar um dos alicerces da construção do conto “Os Mortos”. Nesses diálogos, evidencia-se o movimento cíclico que Gabriel fará em sua percepção da realidade, até quase o final do conto. Esse movimento consiste em Gabriel ser colocado frente a situações de conflito com a realidade, nestas situações Gabriel percebe sua inadequação, porém, devido a uma perspectiva idealizada da realidade, Gabriel desloca sua inadequação para as outras pessoas ou para o seu discurso de final de ano. Assim, as inadequações percebidas são deslocadas e acabam gerando outras inadequações. – Vale lembrar aqui a ironia de Joyce ao colocar a anedota de Patrick Morkan e seu cavalo Johnny contada pelo próprio Gabriel, sendo a anedota uma possível metáfora do destino cíclico de Gabriel em sua existência absolutamente linear e vazia.

Joyce constrói ao longo do conto – de forma dialética – conflitos entre a perspectiva que Gabriel tem da realidade e outra perspectiva sutilmente sugerida e formada pelas descrições do narrador e pelos diálogos de Gabriel com outras personagens. Entretanto, na terceira parte, após o diálogo com Gretta, tudo se modifica. Gabriel percebe sua inadequação emocional e Joyce irá aproximar a perspectiva do narrador à do personagem – uma aproximação cinematográfica visceral, típica dos filmes de Bergman.

Então havia esse romance em sua vida: um homem morrera por ela. Quase já não o magoava pensar no pouco que ele, marido, representava em sua vida. Observava-a enquanto dormia, como se nunca houvessem vivido juntos.

A partir daí, veremos o mundo pela óptica do personagem que passará por um momento catártico, onde o passado e o futuro não importam mais. Suspenso numa apaixonante atemporalidade metafísica - “O mundo real, sólido, em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se” – Gabriel, então, ouve “a neve cair suave através do universo, cair brandamente, como se lhes descesse a hora final, sobre todos os vivos e todos os mortos”.