Interpretação e Superinterpretação: Sobre a possibilidade de uma ética da leitura musical

I

O título deste pequeno ensaio, assim como sua singela presunção, nasce da leitura de dois textos: o livro Interpretação e Superinterpretação de Umberto Eco e o ensaio Sobre a possibilidade de uma ética da escuta musical de Rodrigo Duarte. O primeiro irá discutir os limites da interpretação de textos (literários ou não); o segundo discutirá a possibilidade de uma ética da escuta musical formulada a partir da teorização das tipologias da escuta musical feita por Adorno em Introdução à Sociologia da Música.

Para que um ouvinte possa entrar em contato com uma obra musical, faz-se necessário a mediação prévia do intérprete, que comunicará, através de sons, a formulação artística do compositor (pode haver casos diferenciados, mas, genericamente, o processo é esse). Desta forma, nas três instâncias: ouvinte, intérprete e compositor (que podem se encontrar, às vezes, no mesmo indivíduo), estão presentes tanto a escuta, quanto a interpretação musicais. Para que uma apreciação se torne uma experiência estética, o ouvinte precisa interpretar/interagir com o objeto de apreciação. Para uma boa interpretação, uma das necessidades prévias fundamentais é uma boa escuta, assim, um bom intérprete será, necessariamente, um bom ouvinte dentro de suas propostas interpretativas. No âmbito da composição, para que uma criação seja comunicativa, tanto ao intérprete quanto ao simples ouvinte, o compositor tem que ser o primeiro intérprete, o primeiro ouvinte, aquele que apreciará e criticará, primeiramente, a obra.

Dentro deste silogismo, paremos para pensar: em qual momento desse processo existem diferenciações entre as instâncias? Podemos apontar, como um aspecto que diferencia o ouvinte do intérprete e do compositor, a relação com o texto musical: a partitura . Não é comum que um simples ouvinte escute música acompanhando na partitura. Isso acontece muito com músicos que desejam entender melhor a composição, porém, podemos supor que, para a maioria dos ouvintes, o ato da escuta não é acompanhado da partitura musical. Assim, chegamos a uma espécie de aspecto limítrofe que nos permite selecionar, para pensarmos a questão da interpretação musical, apenas as instâncias do intérprete e do compositor.

Após este pérfido preâmbulo, podemos voltar à presunção deste ensaio e a relação dele com os textos citados no primeiro parágrafo. Então, tentaremos tratar, sucintamente, da questão dos limites da interpretação musical em relação a (re)criação a partir da leitura do texto musical. Consequentemente, tentaremos verificar se a reflexão sobre os limites da interpretação musical permite a elucubração de eixos para uma ética da leitura musical.

II

Para entendermos a questão da leitura interpretativa em cima de uma partitura, precisamos entender primeiramente o que, em geral, constitui esta. Faremos aqui um breve panorama, ressaltando que as reflexões contidas neste ensaio não presumem a definição de um todo, ou seja, as questões aqui apresentadas podem variar nas diversas formas de composição musical.

A escrita musical surge como uma forma de registrar a execução musical. Uma execução musical pressupõe emissão de sons. Todo som possui algumas características básicas:

• Altura: determinada pela frequência das vibrações, isto é, da sua velocidade. Quanto maior for a velocidade da vibração, mais agudo será o som.

• Duração: extensão de um som; é determinada pelo tempo de emissão das vibrações.

• Intensidade: amplitude das vibrações, é determinada pela força ou pelo volume do agente que a produz. É o grau de volume sonoro.

• Timbre: combinação de vibrações determinadas pela espécie do agente que as produz. O timbre é a “cor” do som de cada instrumento ou voz, derivado da intensidade dos sons harmônicos que acompanham os sons principais.

Assim, em um primeiro momento a escrita musical tentará abstrair, o que antes era uma vibração sonora, em signos que representarão graficamente o som. Então, surgem ao longo da história da escrita musical, diversas formas de notação (sinais que representarão as características dos sons), até que a crescente complexidade das intenções e das composições musicais acaba por inverter a ordem dos fatores: a escrita musical se torna uma forma de criar a execução musical.

O compositor é aquele, então, que escreverá um texto musical (partitura) que será lido e interpretado, para depois ser reproduzido. Aqui podemos tentar traçar outra diferenciação entre as instâncias. O compositor é aquele que escreve a partitura. O intérprete é aquele que lê, interpreta e reproduz. Assim, chegamos a outro aspecto limítrofe que nos permite selecionar, para pensarmos mais especificamente a questão da interpretação musical, apenas a instância do intérprete, ou seja, aquele que receberá a composição musical em forma de partitura pré-formulada e a transformará em realidade sonora.

III

Entre o momento da recepção e leitura de uma partitura e a realização sonora da composição existe o processo de interpretação. Este pode nos sugerir como o intérprete lê uma partitura e como, dentro de suas capacidades técnico-interpretativas, reproduz sua leitura dentro da composição musical. Portanto, poderíamos colocar a leitura como o primeiro passo no processo interpretativo (leitura – interpretação – execução), e, desta forma, podemos nos fixar na transição entre leitura e interpretação que é, junto com o aparato da técnica, o arcabouço de uma boa execução musical.

Como foi dito acima, no processo intermediário da interpretação é que podemos nos aproximar da leitura de uma partitura (descobrir como o intérprete lê). Então, verifiquemos as opções interpretativas que nascem de determinadas formas de se ler um texto musical.

Acreditamos que a pluralidade de opções interpretativas pode ser resumida a duas vertentes: uma que valoriza os direitos do texto musical sobre as interpretações, outra que valoriza os direitos da interpretação sobre o texto musical.

Dentro dessas vertentes, os objetos de leitura de um texto são, basicamente, os mesmos. O compositor escreverá: a altura das notas (com seus respectivos acidentes), escrevendo-as no pentagrama com determinada clave; a duração das notas através das figuras rítmicas e das fórmulas de compasso; possíveis intensidades com anotações de dinâmica; e timbres com a escolha dos instrumentos e com o trabalho de orquestração. Há também anotações de expressão, de andamento, de acentuação, ornamentação, etc. Enfim, podemos pensar que escrever as alturas e durações das notas é selecionar o material. Todas as anotações subsequentes referem-se a sugestões para a execução do material.

Voltando para as vertentes interpretativas, podemos apontar que as duas, geralmente, tendem a respeitar as alturas. As durações já são lidas segundo os preceitos estéticos de cada vertente. Porém, é nas anotações de dinâmica, expressão, etc., que as vertentes divergem radicalmente.

Podemos entender a questão da seguinte forma: a vertente que valoriza os direitos do texto musical tende a estabelecer uma interpretação que procura fazer uma leitura analítica das anotações do compositor. A vertente que valoriza os direitos do intérprete tende a estabelecer uma interpretação que procura utilizar os textos, fazendo uma leitura que busque na partitura as melhores formas de usar as anotações do compositor para os fins expressivos do intérprete. Ambas vertentes lêem as partituras de perspectivas completamente diferentes. A primeira valoriza a intenção do compositor ao escrever a obra e, assim, busca descobrir no texto a intenção do autor por trás daquelas anotações. A segunda valoriza a intenção do intérprete e busca no texto material para construir uma interpretação que se aproxime da intenção que o intérprete deseja expressar.

Acreditamos que, para além da intenção do autor ou do intérprete, possamos abstrair uma intenção do texto. Porém, não acreditamos que esta intenção possa se manifestar de outra forma que não na relação com alguém que o lê e interpreta. Além disso, a mediação, no caso da música, faz-se imprescindível: para que a composição em forma de partitura exista como realidade sonora é necessária a execução do intérprete.

Assim, pensar que os direitos do texto prescindam aos diretos do intérprete ou o contrário é acreditar na possibilidade da existência autônoma de um sem o outro. Ambos são relacionais e interdependentes.

Portanto, não se trata de que vertente interpretativa se segue, mas sim da lógica do discurso artístico-interpretativo que o intérprete propõe em sua execução a partir do modo como leu a pré-formulação composicional. Cremos também que denominar algo como interpretação ou superinterpretação, referindo-se a composições musicais, é dar primazia a alguma intenção (texto, autor, intérprete), ou, apegar-se a defesa do contexto histórico, social, estético musical... Porém, todo contexto é dinâmico e variável. Ele pode servir para deixar as intenções um pouco menos incertas, mas não pode, todavia, tornar auto-sustentável uma interpretação. Esta se sustenta na tensa e intensa relação de leitura de um texto musical, criando sua própria lógica interpretativa.

Ademais, sobre a possibilidade de uma ética da leitura musical, haveria necessidade de uma teorização da leitura musical que abarcasse ou suprisse todas as intenções. Sobre a possível avaliação estética das lógicas do discurso interpretativo, podemos apenas sugerir que:

Apesar das diferenças óbvias quanto aos graus de certeza e incerteza, toda descrição do mundo (seja uma lei científica, seja um romance) [ou uma composição musical] é um livro em si mesmo, aberto a outras interpretações. Mas certas interpretações podem ser reconhecidas como malsucedidas porque são como uma mula, isto é, incapazes de produzir novas interpretações ou por não poderem ser confrontadas com a tradição de interpretações anteriores.

Notas:

1. ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

2.DUARTE, Rodrigo. Sobre a possibilidade de uma ética da escuta musical. In: Ensaios sobre música e filosofia. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2007.

3.Vale ressaltar aqui que a partitura não é a única forma de escrita musical. Todavia, deter-se-á especificamente na leitura desse tipo de escrita, pois – mesmo na imensa diversidade desse tipo de escrita – podemos encontrar algumas características comuns que ajudam na reflexão que se propõe este ensaio.

4.MED, Bohumil. Teoria da Música. Brasília, DF: Musimed, 1996. Pág. 11-12.

5.Observamos aqui que, segundo nosso entendimento, o compositor ao ler, interpretar e reproduzir sonoramente os resultados escritos de sua composição, já está na instância do intérprete e, portanto, o que tangenciaria a função do compositor é a criação e a escrita. Estritamente, podemos pensar que o compositor é o responsável pela criação, o intérprete pela execução e o ouvinte pela apreciação. Todavia, como já foi falado, estas funções e instâncias não são fixas e se confundem muito.

6.ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Pág. 177.

Lucas Paolo
Enviado por Lucas Paolo em 22/07/2010
Código do texto: T2393330
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