Filosofia e comida

Por que uma filósofa escreveria sobre comida?

Filósofo escreve sobre qualquer coisa. Ele é o cara que mete o bedelho em tudo, principalmente onde não é chamado. O filósofo é intruso por causa daquela velha história de que a filosofia é a mãe de todas as ciências. O amor à sophia lhe permite passear por mares nunca dantes navegados. Daí ele acha que pode argumentar com os médicos, dialogar com os mestres de obras, discutir com os políticos, ouvir os amigos achando que é psicólogo e fazer arte na cozinha achando que é gastrônomo, chef de cuisine, ou seja, cozinheiro.

Diante do fato, vamos então conversar sobre o ato mais delicioso que existe: comer. Correr é bom, mas comer é melhor. Isso é apenas uma doxa. Haja vista que tem gente que corre para comer; ao contrário daqueles que comem para correr. Acredito que vocês devem estar pensando sobre o ato delicioso: sexo!?!?. Não, não vou falar sobre sexo agora. Mas dizem que quem come muito é porque neste setor não está lá aquelas coisas. Pode ser. Mas ao contrário de Vinicius de Moraes aconselho as comidinhas para antes do amor e não para depois, assim você pode queimar essas coisinhas. Coisinhas do tipo: queijo tipo gorgonzola com pimenta e goiabada. Receita retirada do filme Estômago, assista quem tiver cabeça e estômago. Ah! A pimenta eu acrescentei por conta própria, ficou ótimo. Experimente também com pão de queijo mineiro. Uma delícia.

Minhas receitas virão mais tarde, quero dizer, outro dia. Primeiro um pouco de teoria (bem leve), depois a prática (bem pesada, porque cozinhar é igual rapadura - é doce mas não é mole). E vocês sabem que a arte culinária é a prática na qual para se extrair os maiores prazeres deve-se utilizar os maiores esforços. Como tudo na vida. Tão mais saborosa uma comida, tão mais trabalhosa. A não ser que você seja daqueles/as que comem couve sem lavar, porque lavar couve dá um trabalho danado, principalmente se for orgânica.

Então vamos filosofar...

Comer é um ato. É um ato humano, talvez o mais fundamental. Comer é um ato primário. E todo ato, como toda ação, por sua vez, deve ser pensada. Ação pensada porque comer é um ato de sobrevivência. E acredito que você não vai querer morrer. Pois comemos para nos mantermos vivos. Mas comer é muito mais que um ato de sobrevivência. Queremos viver mais e bem, porém queremos também viver com prazer. E comer é um dos atos que mais nos proporciona prazer.

Comer não é uma mera satisfação de necessidades fisiológicas. O ato de comer não possui a única função de nutrir o corpo. Comer é um ato que alimenta a alma quando aberta, a mente quanto pensante e o coração quando tranqüilo. Isso porque ao comer utilizamos os nossos sentidos: olfato, visão, tato, paladar e em alguns casos a audição. Nossa percepção se volta para o ato de prazer e nossa intencionalidade fica toda desperta para o alimento que deve ser contemplado, cheirado, tocado e degustado com toda a pachorra do mundo. O alimento deve envolver o corpo como um todo, de modo holístico, provocando assim as sensações e o próprio discernimento.

Comer é também um ato fundamental porque é o ato que está intimamente vinculado à philia, ou seja, à generosidade de partilhar o alimento com aqueles que temos amizade, amor.

Comer sempre foi um ato mais amplo e mais profundo do que simplesmente saciar a fome ou satisfazer a própria gula. Os filósofos da Magna Grécia tinham o hábito de se reunirem em symposium/banquetes para discutirem conceitos importantes, ou seja, filosofar. Comida e bebida sempre estiveram presentes nesses momentos de reflexões e diálogos. O Banquete de Platão bem como a última ceia de Jesus com seus apóstolos retratam a importância e o significado humanístico das refeições.

Platão se reúne com os sete oradores: Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agaton, Sócrates e Alcibíades para discutirem, nada mais nada menos sobre o deus Eros, um dos mais antigos deuses. E por ser o mais antigo traz consigo as fontes do bem. Diz Fedro que é o Eros que insufla os homens a grandes brios. Só os que amam sabem morrer um pelo outro. Eis o tema do Banquete.

E Jesus, antes de demonstrar aos homens seu extremo ato de amor, se reúne com os apóstolos para realizar sua última ceia. Naquele momento ele lava os pés dos doze apóstolos, institui o ritual da eucaristia, se despede dos amigos e para a humanidade deixa o seu testamento, seu exemplo.

Esses são os dois marcos básicos na história da humanidade que demonstram que o ato de comer sempre esteve envolvido com o conhecimento, celebrações, amizade e o amor em todos os seus aspectos: agape, philia, storge e eros.

Porém, como o amor está démodé: comer bem e com prazer também está fora de moda. Nada mais antigo do que cozinhar a própria comida, nada mais antiquado que produzir seu próprio alimento, desde o plantio à arte de cozinhar em panelas de ferro, de barro e em fogão à lenha. Bons tempos! Mas dizem que bons tempos são agora, que não se tem que carregar a lenha, nem usar panelas pesadas. Isso é bom, mas em contrapartida não se queima calorias, o que é muito prejudicial para si mesmo e para a visão alheia.

Dizem também que bons tempos são agora, porque o mundo inteiro aderiu aos fast food. Mais prático, rápido, barato, não gera esforço, enfim, não cansa. Você só precisa letargicamente esperar pelo seu prato feito, pagar e consumir. Prato esse, por sua vez, feito sem carinho, sem amor, sem cuidados e sem energia humana. Em compensação vem acompanhado de muito sabor, cor e consistência, em outros termos: açúcar, sal, gordura trans, corantes e conservantes. Ou seja, tudo aquilo que a própria indústria alimentícia diz que faz mal para a saúde: sua, do seu filho, da sua família e de toda Nação Fast Food.

Silvia Santana
Enviado por Silvia Santana em 09/12/2010
Reeditado em 09/12/2010
Código do texto: T2662759
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