TENTANDO JUSTIFICAR A LEGITIMIDADE DA LEI DE COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES
 
Como foi o governo português o instituidor e o governo brasileiro o mantenedor do (agora horrendo) regime da escravidão, é justo que o próprio governo, hoje, promova políticas reparadoras para as vítimas indiretas do regime escravista que vivem nos dias atuais. Que faça o papel que não fizeram os primeiros republicanos. Afinal, os governantes, os governados, os escravistas e os escravizados mudaram, mas o governo é o mesmo, o país é o mesmo. E os benefícios e os prejuízos consequenciais do regime permanecem os mesmos, até hoje, para eurodescendentes bem de vida e para afrodescendentes pobres, respectivamente. Portanto, temos uma responsabilidade histórica, mas também contemporânea, e temos de acertar essas contas.
É certo que quem acaba pagando pelas políticas de reparação, especialmente no que se refere ao sistema de cotas nas universidades, são os vestibulandos eurodescendentes, os branco-brasileiros e os afro-brasileiros não adotantes das cotas, sejam de que etnia ou subetnia ou condição econômica forem.
Ocorre que todos os privilegiados históricos são herdeiros diretos de gerações de senhores de escravo ou de homens livres da escravidão, que eram, nos séculos passados, também livres para estudar e livres para acumular e legar riquezas para seus descendentes atuais. E o que os negros pobres de hoje herdaram dos seus ancestrais? Nada de economia nem de educação formal, porque seus ancestrais, ainda que tivessem capacidade laborativa e intelectual, simplesmente não podiam exercer economia, nem podiam estudar, proibições que perduraram mesmo no século XX.
A lei das cotas não deve se destinar para os afrodescendentes pobres só porque estes são negros ou pardos. O espírito da lei seja o de beneficiar objetivamente a quem de direito, que são os trinetos e tetranetos de escravos aqui do século XXI, oriundos de escola pública e hipossuficientes do ponto de vista econômico, por uma questão mínima de justiça socio-histórica. E como os escravos eram negro-africanos ou afrodescendentes diretos ou mestiçados, então o critério utilizado pela lei de cotas é de que o candidato ao benefício se identifique como afrodescendente e que demonstre, pela documentação epidérmica, que efetivamente tem “sangue negro” na sua linhagem genealógica, além de ser baixa-renda. O sistema não tem nada de assistencialismo demagógico nem de preconceito positivo piegas. Tem caráter reparador (ou difusamente indenizatório) de toda uma etnodiceia (conjunto dos direitos de um grupo étnico ou nação – Dic. Houaiss.) que fora usurpada pela própria iniciativa governamental luso-brasileira, e que ainda hoje gera consequências danosas na maior parte do corpo social do país.
Pode e até deve ser um direito renunciável. Quem, por qualquer razão, não quiser se utilizar do benefício da cota, que exerça seu direito de não exercer tal direito. Mas, para quem a julgar necessária e queira se beneficiar dela, é importante que ela exista, como embrião de uma futura legislação mais ampla e efetivamente igualizadora das condições socioeducacionais para todos os cidadãos, o que será percebido finalmente quando as escolas públicas assumirem de vez seu papel de formação de mentes e de cidadania, desde o nível fundamental. Isso talvez ainda precise de mais algumas gerações.
 
{Não defendo cega nem apaixonadamente a lei de cotas. Em princípio, todos deveriam ser iguais perante a lei, independentemente de raça, cor etc, como dita a Constituição Federal. Entretanto, reconheço que, a partir de um prisma de interpretação jus-historicista, essa lei (ainda) é  justificável, pelo menos enquanto não houver uma educação de qualidade acadêmico-ingressiva para todos, para que todos estejam efetivamente em pé de igualdade perante as oportunidade da vida social. A lei maior é justa. Injustos são os sistemas econômicos e sociais, que na prática desigualam os afrodescendentes pobres desde o maternalzinho, que, a propósito, nem existe em grande parte das escolas públicas do ensino fundamental.
Contudo, fazendo fileira com os demais movimentos sociais, os movimentos negros, numa política de preparação mais específica, devem lutar mais intensamente, não pela manutenção ad infinitum dessa lei protetiva, mas principalmente para, através de cursos paralelos de formação geral e específica, melhor instrumentalizar as pessoas histórica e socialmente discriminadas, para enfrentarem todos os concursos que exigem grande preparo intelectual. A luta também seja no sentido de que o próprio governo, numa política de reparação mais ampla, melhore imediatamente as escolas públicas, desde o ensino fundamental, para que as pessoas hipossuficientes financeiras possam ter mais capacidade de ultrapassar a barreira de acesso e possam frequentar as universidades públicas em pé de igualdade com os preparados em escolas particulares de ponta. [Tem existido uma melhoria em algumas escolas públicas, mas só para aquelas voltadas para curso técnicos específicos para o mercado de trabalho, trabalhadores ou seres humanos roboides capacitados a servir ao sistema capitalista ou homines cientifici e homines fabri. Obviamente, com a relação com os números e cálculos, o meio estudantil pode se quadrificar, ou pode se circularizar. Quer dizer: ou a máquina maquiniza o homem, ou o homem humaniza a máquina. Depende de cada aluno e seu histórico escolar de vida pregressa intra e pré-encarnacional.]
A obrigação do crescimento é individual, fruto do esforço e do mérito. É básico. Porém é obrigação do governo e da sociedade civil oferecer as condições para esse crescimento, concorrendo em pé de igualdade com as escolas particulares, que as oferecem muito bem para quem pode pagar por elas. Por isso a lei de cotas é antes de tudo um instrumento de justiça social, porque propõe uma política não só de reparação, mas também uma política de igualização de oportunidades socioascensionais.
 {“Suspiramos pela democracia, mas nunca lhe quisemos pagar o preço. O preço da democracia é a educação para todos. É a educação que faz homens livres e virtuosos. E por que não a tivemos? Porque força é insistir. Jamais fizemos da educação o serviço fundamental da República." - Anísio Teixeira.}
 Mas, a questão de ordem agora também já passa a ser a seguinte: o que é mesmo que se deve ensinar em sala de aula? Qual é o pulo do gato que o povo deve aprender, para se livrar das garras diabólicas do famigerado capitalismo democraticida? Vamicê, camujerê, que é passante (de assuntos) e mestre da educação, pode ensinar qual é a ginga ou a esquiva de ouro? Ou V. Sa. serve passivamente ao sistema conscienciofágico e desumanizante dos dinheirudos plutocratas e destruidores da cultura nacional, da filosofia, das tradições e das artes, da liberdade e da independência de pensar?}
 
A questão negra, pois, não é meramente étnica. Envolve objetivamente aspectos de liberdade econômica, de liberdade educacional e, agora, de liberdade de pensar, também.
Ainda nos dias atuais se veem os reflexos desse desequilíbrio de forças nos resultados de concursos públicos. A grande maioria dos aprovados provem de boa formação escolar e de famílias bem estruturadas financeiramente. Já a maioria dos negros sequer conclui o ensino médio, inclusive porque tem de trabalhar cedo para ajudar na sobrevivência familiar.
O sistema de cotas tenta amenizar os desníveis de ascensão social impostos pelas gerações do passado e que ainda sequelam e vitimam os negros da atualidade. Isso para não incluir nestas reflexões o fato de que os azorragues e as chibatas ainda zunem nos ares da nossa contemporaneidade, através do neoescravismo laboral, que serve ao capitalismo lucrólatra, e através das atitudes discriminatórias e etnopreconceituosas que ainda contaminam toda a nação. Só não zunem com mais contundência graças às políticas sindicais, às leis antidiscriminatórias e às denúncias dos próprios prejudicados. Graças também às ações cada vez mais inclusivas dos movimentos negros que nunca baixam a vigilância. Graças, enfim, aos próprios afrodescendentes próximos ou remotos que individualmente assumem suas atitudes protetivas, autoafirmativas, superativas e libertadoras da maior forma de escravidão dos tempos atuais: a escravidão das consciências.
A lei das cotas serve apenas para pensar (tapar com curativo superficial) as feridas ainda abertas pelas chibatas escravistas. De certa forma, ela retoma a evolução legislativa negro-libertária do século XIX, que fora interrompida com a lacunosa Lei Áurea. [Ela teve apenas dois artigos: “Art. 1º É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil. Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.] Analogamente, equipara-se à satisfação liminar de um direito continuado, enquanto se espera a sentença judicial ou a lei final complementar que vai conceder todos os direitos principais, inclusive o indenizatório.
A atual legislação federal atinente à matéria tem usado corretamente a expressão “reparação”, ao invés de “indenização”. Como se trata de um prejuízo moral e material de proporções incalculáveis, é melhor promover ações afirmativas, reparatórias e emancipatórias, com efeitos ex nunc (a partir de agora), do que ficar tentando contar ou reascender prejuízos originados há quase quinhentos anos.
Facilitar, pelo menos, o ingresso dos historicamente excluídos às cadeiras da faculdade pode ser o bom início de prestação de contas com as dívidas desse passado mal resolvido com a própria consciência coletiva. É uma forminha de redenção. É uma fumaça de boa justiça, tardia, mas ainda a tempo. Espiritualmente, é um descarrego cármico de toda a sociedade, mesmo que simbolicamente. A memória da história continua perseguindo estrada do tempo adiante, enquanto não se resolve questões acumuladas no inconsciente, seja individual, seja coletivo, mesmo que, de certa forma, correções objetivas já tenham se perpetrado pelo corretivo das reencarnações individuais com troca de papéis.
O nosso problema maior ainda é que, mesmo com as regulações pontuais já operadas pela justiça reencarnatória, as lembranças dos traumas antigos (que são iguais aos próprios traumas) perduram ou se fortalecem, enquanto os preconceitos, as discriminações e as novas formas de escravidão substituem as desoportunizações de crescimento ou de liberdades sociais do passado. Grande parte dos negros de hoje continuam de certa forma alijados nas senzalas sociais, que são as periferias sem infraestrutura sobrevivencial digna, que são os rincões perdidos no sertão, que são as escolas públicas desequipadas, que são as prisões sem qualquer política de educação efetivamente moralizante, reinclusiva e dignificadora.
 
{O que se aprende na faculdade não é necessariamente o que se aprendeu antes no ensino médio, muito menos é o que se estudou para passar no vestibular.
Não pretendo aqui fazer apologia cega ao academicismo. Tem gente que entra na faculdade institucional sabendo pouco sobre o que deve saber na faculdade da vida, e quando recebe o canudo, sabe menos ainda.
Mas, do ponto de vista pragmático-social, a universidade é um mundo à parte nas vivências estudantis. É lá que são formadas mentes pensantes, muitas destas oriundas de escolas públicas ou até de cursos supletivos ou de aceleração. Lá incubam-se mentes não necessariamente pensantes sobre o que se lhes é posto a pensar, mesmo porque por lá também se perpassam ideologias contrárias à verdade sobre os problemas do ser, do destino e da dor.
Quem faz sua universidade é cada aluno em si e seus propósitos, suas intenções, sua visão geral de mundo já trazida na mochila para a aula inaugural. O aluno ativo e questionador aprende com os mestres e com os autores, mas também tem sua forma de pensar própria, a qual se amplia com as ideias, noções e terminologias adquiridas nas aulas, nos textos e nas discussões e nas teses infinitas, principalmente no campo das ciências sociais.
Ao se formar numa faculdade, ou se está pronto para ser um interventor social construtivo, ou se transforma num robo sapiens programado para reproduzir ideologias dominantes veredas sociais afora. Depende das tomadas de posição e das elucubrações mentais adotadas por cada discente, logo no primeiro semestre, principalmente a partir das disciplinas Introdução à Filosofia, Economia Brasileira e Elementos de Sociologia.
 Muitos acadêmicos que ingressaram pela lei de cotas dão-se melhor do que não cotistas no enfrentamento do currículo, principalmente quando levam no consciente um certo engajamento de postura crítica perante o sistema social etnoexcludente. Depende da dedicação, do enturmamento, da personalidade, da vontade de superação. Ele vai com propósitos além de somente aprender. Ele vai para melhor se instrumentalizar cognitivamente acerca das políticas ostensivas e ocultas que controlam as matrizes sociais e para melhor se posicionar no mercado de trabalho e no mercado da vida de relações em geral.
Aqueles alunos hipossuficientes financeiros conscientizados que desistem, ou que são seguidamente reprovados, não é exatamente por causa da dificuldade de entendimento, mas por causa da dificuldade de acompanhar o ritmo como um todo, aí incluindo-se questões subsidiárias. Se fosse primeiramente por questão cognitiva, o cotista sequer teria passado no vestibular. Ele foi beneficiado apenas pela reserva percentual, não pelo ingresso sem preparo no ambiente acadêmico. [É certo também que depende do curso escolhido. Cada caso é um caso.]
Há também outra questão. A lei de cotas não é apenas um instrumento da política de reparação, não. Serve também para garantir uma inclusão mercadológica em níveis socioeconomicamente mais prestigiados e confortáveis para mentes pensantes e com grandes potenciais intelectualmente produtivos.  Para os negros que querem ou têm capacidade de desenvolver sua mão de obra mais especializada junto às esteiras de produção intelectual, o título universitário tem sido uma necessidade primária. No comum das relações empresarial-operária baseadas nas aparências, um negro com o terceiro grau tem o mesmo prestígio de um branco com o segundo grau, principalmente quando se trata de um negro que tem o padrão biotípico africano em disputa com um branco com padrão biotípico europeu, independentemente da origem socioeconômica de cada um.
 
Nossa sociedade é racista e etnoexcludente. Nas empresas de contato direto com clientes finais convencionalmente classificados de high society ainda funcionam as chibatas, não para castigar, mas para afugentar e não empregar negros, ainda quando sejam demonstradamente qualificados. Quando não têm o terceiro grau no currículo escolar, fica mais difícil ainda.
Essa distorção não fica mais à mostra, porque não há uma consciência nem uma preocupação voltada para essa percepção. Existe uma certa acomodação geral nesse apartheid manso e pacífico em terras brasileiras, particularmente na Bahia, tanto da parte dos brancos quanto da parte dos negros. O que existe é a prestigiação de uma cultura negra, mas de um lado, e, depois de um hiato sificientemente largo, a prestigiação de uma cultura branca do outro, mais confortável, mais bem infraestruturada e climatizada. Isso se reflete também na vitrina dos negócios empregatícios.
 
Todos são iguais perante as leis, inclusive perante as leis do mercado e perante os critérios da empregabilidade. Só quem não liga para isso são os empregadores high society.
Então, os negros pobres e em especial os negros afrobiotípicos que, usando apenas o conhecimento como instrumento de acesso, pretendam chegar mais para o centro dos ambientes laborais econômica e socialmente prestigiados, precisam perseguir uma maior instrução escolar, além das capacitações cognitiva e profissional, para concorrer em pé de igualdade com os brancos, em especial com os brancos eurobiotípicos. A culpa da exclusão etnossocial não é exatamente destes últimos. É do sistema como um todo, sediado particularmente no departamento de RH das corporações elitistas e aristocráticas caducas.
 
Enfim, mesmo sem ter a devida preparação para ingressar na faculdade, é necessário um esforço maior de quem se origina de camadas etnossociais desprestigiadas, para enfrentar e vencer o currículo acadêmico. E, como eles também são egressos de ambientes cognoformacionais fracos e pedagogicamente limitantes, se puderem vencer a barreira que dá acesso à faculdade beneficiados por uma lei reparadora de um passivo etnoeducacional histórico e que seja socialmente equalizadora, por que não aproveitar a chance? Uma vez lá dentro, aí são outros quinhentos. Aí é a hora de correr atrás do prejuízo e de despertar a consciência acadêmica, a partir do empenho, da dedicação e da garra inspirada nas lutas dos guerreiros ancestrais.}
 
A Constituição Federal preconiza o princípio da igualdade de condição de acesso à educação. Por isso, já foram criadas várias leis tendentes à pragmatização desse princípio, tais como as que instituíram o ENEM e o PROUNI.
Entretanto, muito ainda precisa ser legislado para corrigir e efetivamente cicatrizar de vez as chagas herdadas da maior monstruosidade da história social de Portugal e do Brasil. E para se plenificar essa gigante correção inclusiva, devem contribuir e se responsabilizar, conjuntamente, o governo, a sociedade e cada cidadão, independentemente de suas origens étnicas ou multiétnicas e do grau de sua negralidade epidérmica.
 
“E vós, arcas do futuro,
Crisálidas do porvir,
Quando vosso braço ousado
Legislações construir,
Levantai um templo novo,
Porém não que esmague o povo,
Mas lhe seja o pedestal.
Que ao menino dê-se a escola,
Ao veterano — uma esmola...
A todos — luz e fanal!”
Castro Alves (no poema “O Século”)


A QUESTÃO NEGRA É UMA QUESTÃO DE TODOS NÓS
 
Todo esse tema sobre a questão da escravatura negra já deveria se integrar apenas na História, para nos servir de (abo)lições preventivas no presente e no futuro. Sabemos que o instituto da escravidão para trabalho forçado e gratuito é tão velho quanto a história do homem. A rigor, houve muito mais escravidão de não-negros do que de negros. A folha corrida de todas as etnias tem dívidas nesse sentido. Mas, no atual ciclo ascensional do Brasil, temos de resolver mesmo é a pendência presente que nos incomoda e aflige, que são os efeitos ainda prementes da escravidão negra luso-brasileira.
No Brasil Colônia houve contornos únicos no mundo em relação ao papel dos escravizados africanos que ajudaram na povoação do território. O Brasil nasceu e cresceu juntamente com os negros e se fortaleceu principalmente com o sangue negro.
O Brasil é um país formado por brancos, negros, índios, asiáticos e suas infinitas miscigenações. A riqueza da nossa nação está nessa mistura, que lhe fará crescer tanto mais quanto maior for o equilíbrio de forças e de oportunidades entre as várias formações étnicas, subétnicas, sociais, culturais, religiosas, educacionais e econômicas.
A contribuição negra para a formação do povo brasileiro foi a mais dura. Ao mesmo tempo em que eram tratados como objetos e ao mesmo tempo em que viviam subjugados pelo império da chibata, os negros também iam fazendo valer sua cultura, sua ascendência moral, sua sabedoria milenar, sua religiosidade espiritual. Ao mesmo tempo em que viviam sob coações laborais, psíquicas, morais, religiosas e sociais, demonstravam a pujança de sua inteligência, de sua capacidade de sobrevivência e de superação de traumas sociais continuados, no convívio mais íntimo, no exercício mais em close da “microfísica do poder”, pelo corpo, pela mente, pela espiritualidade e pelas emoções.
[A instância do exercício de poder nem sempre é territorial, hierárquica ou dominiosa. Pode ser também circunstancial, emocional, psicológica, espiritual, intelectual ou decorrente de outros fatores reais ou ocultos de poder. Em seu livroMicrofísica do Poder”, o filósofo e
professor francês Michel Foucault (1926-1984), sustenta a tese de que não existe o poder em si, mas apenas sua prática, que não é necessariamente de mão única, mas que empodera quem engana melhor, quem convence e subjuga com mais eficácia, quem faz mais pressão, quem faz mais aceleração. No teatro inter-relacional, quem toma a iniciativa de fazer o papel de poderoso, normalmente recebe do outro o poder que espera. Para isso o pretenso poderoso vale-se da arrogância ou prepotência verbal, gestual, vocal, cognitiva ou até fisioaspectual. A materialização do poder dá-se quando a parte “passiva” da relação oferece ou exibe um perfil de submissão ou de consentimento usando os mesmos instrumentos aparentes (palavras, gestos, entonação ou timbre de voz, além também do aspecto físico). [Lembremos que, pela segunda lei da mecânica, de Isaac Newton, força (ou poder) é o produto da massa pela aceleração. Não tendo massa (sujeito ativo) ou aceleração (ação, movimento), não há poder. Quem mais empodera o poderoso é quem é propenso a ser empoderado passivamente. Não é raro, contudo, o jogo de dissimulações de ambos os polos para ver quem tira mais proveito de suas aparências em relação ao outro. No frigir dos ovos, não importa tanto o poder, mas, sim, o que se tira de proveito com seu exercício ou com o exercício do outro. Tão ou até mais importante do que o poder é a ponderação.]
 
A prática negro-escravista começara no Sec. VI, pelos árabes, mas os negros não contribuíram fundamentalmente para a formação do povo árabe como contribuíram para a formação do povo brasileiro.
Os negros brasileiros sempre foram sócios do Brasil como nação, ainda que inicialmente tenham entrado pela porta de serviço forçado e gratuito. Só que, mesmo após a abolição da escravatura, essa categoria de sócios nunca lhes foi outorgada pela sociedade, porque o preconceito nascido da sua antiga condição de escravos sempre se impôs coletivamente.
 
{“Ser negro no Brasil é, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros”. – Milton Santos.}
 
Há um preconceito quase natural da “chamada boa sociedade” em relação aos negros, ainda vigente. Esse “lá em baixo” referido pelo grande geógrafo e professor Milton Santos é como se fosse uma senzala inconsciencial no cérebro coletivo da elite branca brasileira, herdada dos conceitos e preconceitos históricos, e para onde são colocados os negros automaticamente. É um impulso reflexo, talvez marcado por arquétipos fossilizados desde a época do aportamento dos primeiros navios negreiros, em 1530.
Todos são iguais perante o ente abstrato chamado Lei. O problema é que a dureza da lei não tem a mesma densidade para todos na hora de se fazer valer, porque quem realiza a lei são os homens detentores de poder. São estes que fazem as discriminações, concretizam os preconceitos e patrocinam as segregações no caso concreto, dia a dia e noite a noite, das formas mais ostensivas ou sutis possíveis, consciente ou inconscientemente.
 
Tudo bem que hoje a tônica das grandes questões sociais gira derredor dos desnivelamentos sociais, drogas, violência urbana, direitos humanos e outras urgências, que atingem todas as classes sociais e etnias. Entretanto, o chato do IBGE sempre nos alerta que a problemática da questão negra, independentemente de seus contextos e correlações com outras questões sociais, sempre é uma questão historicamente mal ou não resolvida. [Segundo dados do IBGE, de 2006, dois em cada três analfabetos brasileiros são negros ou pardos. Das pessoas com mais de 15 anos de estudo – o que basta para se concluir o ensino superior, 78% são brancas e apenas 3,3% são negras(!) Isso para não citar dados alarmantes quanto a empregabilidade e saúde] Sempre carece de um enfoque em separado, em que pese à necessidade atual de se enfrentar qualquer questão, seja individual, seja social, sempre sob pontos de vista multidisciplinares. É uma equação que ainda se sustenta por si só e admite, ou melhor, exige recortes reflexivos próprios, até ser fechada pela matemática da justiça histórica.
 
{A grande e corpulenta pessoa coletiva chamada “povão”, multiétnica, de matiz e de matriz predominantemente mestiça (oitenta por cento dos brasileiros têm gene africano), tem dificuldades de se adequar ao ensino formal de qualidade, principalmente o superior, porque nunca lhe foi dada real oportunidade para isso.
Nossos pacotes curriculares ainda são marcadamente tradicionalistas, formalistas e "branquistas", portanto limitados, cientificistas e antipovão.
 
"Na maioria das vezes, os professores não estão preparados para lidar com as diferenças, e muitos deles já se mostram predispostos a não esperar o melhor resultado do estudante negro e pobre." - Kabengele Munanga (1942), antropólogo congolês naturalizado brasileiro, pesquisador, escritor e professor na Universidade de São Paulo, em entrevista para uma revista étnica.
 
[Ele refere-se principalmente à discriminação prima facie, ou seja, à primeira vista, àquela que tende a marcar de logo o nível comunicativo ou contratual que vai predominar na continuidade da relação.]
 
Temos a tendência de privilegiar a educação civilizatória europeísta que ainda vige em nossos dias e se estende sarcasticamente nos vestibulares e nos concursos e testes admissionais do grande mercado de trabalho. Coaduna-se com os reclames do atual capitalismo globalizado, lucrólatra, culturofágico e anticonsciencial. Charles Darwin, do século XIX, ainda exerce cátedra nos currículos escolares do século XXI.
Quem não se afina com o discurso oficial é tido como analfabeto funcional ou iletrado, mesmo sendo detentor de outras formas de saber sobrevivenciais, e é alijado das oportunidades ascensionais dentro das camadas politicamente prestigiadas da sociedade.
 
É inquestionável que o sucesso de quem quer que seja depende muito mais de si mesmo do que de fatores externos. Porém, o homem é, também, produto inevitável dos vários meios exteriores e ulteriores com que interage, desde a família, a escola, o trabalho, as ideologias reinantes e influências espirituais. E é fruto também dos meios de comunicação (inclusive literários). Isso para não falarmos daquela conhecida turma de amigos ou colegas e sem nunca desprezar o mais sutilmente determinante de todos os meios: os dados estatísticos formadores de pessoas coletivas. Os meios étnicos, religiosos, culturais, sociais, drogais, intelectuais e acadêmicos tendem a uniformizar pensamentos, sentimentos e ações coletivas, com repercussão na individualidade, automaticamente.
Por sua vez, o indivíduo tem maiores noções das pluralidades unificadas quando se depara com resultados de pesquisas quantitativas (em que pese às suas diferenças para mais e para menos ou às informações inexatas dos pesquisados, às falhas de registro dos pesquisadores ou ao erro na análise dos próprios resultados). A partir da visão numérica e gráfica, o indivíduo abala, reduz ou expande seus pensares, seus sentires e seus agires, com repercussão na coletividade, automaticamente.
 
Se alguém é nascido e educado em um meio, mas quer ou precisa, por algum motivo, interagir com outro meio, ele tem que conhecer, no mínimo, a linguagem de acesso desse outro meio, ainda que de forma artificial, só para entrar, como se fosse uma linguagem-senha, isso se pretender eleger o conhecimento escolar ou acadêmico como forma de prosperidade. O português de concursos é uma língua praticamente morta entre os falantes de todos os meios sociais. Serve mais como critério reprovativo do que aprovativo nas provas escritas em geral.
A maioria das escolas públicas abertas, que são as do povão, não preparam seus alunos para transpor o estreito portal dos saberes acadêmicos. Daí as escandalosas estatísticas do IBGE com referência aos negros, que são a principal etnia das camadas sociais menos favorecidas intelectual e economicamente. Sempre, contudo, é necessário excetuar o talento, a competência e o esforço individual de alguns magísteres e administradores escolares idealistas que veem na atividade do ensino um sacerdócio e que compensam, até onde podem ou lhes é permitido, a deficiência dos currículos disciplinares obrigatórios. São aqueles que, mesmo mal pagos, mal assistidos e mal compreendidos, não saem do ramo, nem perdem o rumo da sua missão e, na média, conseguem artifícios para encantar seus alunos, mesmo concorrendo com o MSN, ORKUT, MP3, MP4, ipod e outros tecnologismos desconcentrativos do aprendizado coletivo via giz.
E sempre, também, é necessário excetuar a garra, a determinação e o empenho heroico de certos alunos que vencem os bloqueios do sistema, porque vencem antes seus próprios bloqueios, e partem e conseguem se posicionar firmemente no campo das concorrências sociais mais exigentes. Muitos já assumem essa consciência autoinclusiva ainda na adolescência, e chegam juntos na superação dos obstáculos que lhes são impostos, ao ponto até de renunciarem ao benefício das cotas ao disputar um lugar no ensino superior público através do exame vestibular.
Enfim, os que, com ou sem apoio ostensivo, tomam a iniciativa de correr atrás da própria autoinclusão social, dão seus pulos aqui e acolá, com ou sem benefício de cotas, e, quando se pensa que não, olhem eles lá aparecendo também na foto, junto dos mais favorecidos histórico-ambientais!
 
Especificamente, quem quiser transpor os portais da "elitista universidade pública", vindo das camadas populares, tem que se preparar “por fora”, romper madrugadas frente a luz de velas, passar fichas de assuntos no ônibus, alisar cadeiras de biblioteca... e tem de dominar o português e o português. Tem de dominar a linguagem do seu ambiente de origem, se quiser manter seu respiradouro linguístico natural, tem de dominar o português padrão (o dos livros, revistas, jornais e textos midiáticos) e tem de dominar a linguagem artificial, que é o português culto, exigido pelo sistema agressivo e ingressivo das elites sociais e econômicas. Os filhos destas se preparam em escolas ou cursos especialmente montados para capacitá-los a se saírem bem nos certames. E os filhos dos excluídos? Contam com quê?
Na atual estrutura de distribuição de oportunidades educacionais, a rica e autêntica cultura popular não garante qualquer colocação. Não é reconhecida pelo MEC.
Vale ressaltar, inclusive, que a cultura genuinamente popular está agonizando frente ao bombardeio incessante da chamada (in)cultura de massa, destruidora de valores, emburrecedora, anestesiante, insensibilizante, erotizante, drogante.
O conhecimento exigido para se passar nos concursos públicos nunca é o popular, nem é o da Antropagogia (pedagogia social que trata da educação além da escola e do círculo familiar. – Dic. Houaiss). É sempre o de base euro-oitocentista, frio, materialista, formal, inútil para a vida prática dos dias de hoje, inútil até para a própria vida acadêmica. Só serve como forma de seleção social para favorecer os já favorecidos históricos e para manter os oriundos da periferia apenas espiando pela janela ou servindo a merenda.
Não estou aqui desqualificando sistematicamente o português culto ou erudito, não. Quem quiser ou gostar de usá-lo, deve usá-lo. Ele também integra o idioma. Merece respeito. [De qualquer forma, ela está se resvalando rapidamente para a norma descritiva e já é vista por alguns como distração para os antigos, para os culteranistas e para os puristas. Os formadores de opinião dicionarísticos e telemidiáticos convencem mais que os compêndios de gramática normativa.] O preconceito linguístico não deve existir sobre nenhuma vertente ou forma de expressão. O que mais importa é o que se diz, não como se diz. A norma culta só não deveria servir de parâmetro para aferição de conhecimentos de quem deseja ingressar no ensino superior ou no serviço público, face a seu uso limitadíssimo nas frentes sociolinguísticas e textuais pós-modernas.
 
Reiterando, todo aquele oriundo das camadas populares mais afastadas do centro de prestígio urbano e que quiser se projetar socialmente pelas vias da educação e do conhecimento, para não alimentar as duras estatísticas do insensível IBGE, tem de ser bilíngue dentro do seu próprio idioma. Tem de estabelecer um diálogo progressista com seus eus intelectuais interiores.
O QI verbal é chave para os QIs intrapessoal, interpessoal e cognitivo, e estes costumam abrir portas e portais mais seletivos e estamentais.
Quem, por sua vez, não fizer essa questão toda de vender conhecimentos para o sistema, selecione aprendizados mais profundos, consciencio-expansivos e multi e translibertadores.}
Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 02/01/2011
Reeditado em 17/01/2014
Código do texto: T2704219
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