Considero Cristianismo não só o reportado nos quatro evangelhos, mas também os chamados evangelhos apócrifos, ou seja, os censurados principalmente pelo Papa Damaso I. Este chefe eclesiástico foi o primeiro grande compilador da coleção de livros judaico-cristãos denominada Bíblia (concluída no ano de 382). E isso ele fez depois de ter aprovado a “atualização” feita por São Jerônimo
[1], e sob sua supervisão, do que já havia de escrito e coligido, incluídas aí as epístolas complementares de Paulo de Tarso.
Frise-se que essa adoção oficial do Cristianismo por Roma, em 380, por intermédio do imperador Teodósio I, foi o fator cardeal para que o Vaticano introduzisse de vez os textos cristãos na Bíblia, dois anos depois. Antes, porém, havia mais de cem anos, o Império Romano já vinha cedendo à pressão das massas.
Em 306, com a assunção ao trono do Imperador Constantino I, o Grande, uma das primeiras medidas não oficiais, ainda naquele ano, foi o Império, senão oficializar, pelo menos começar a fazer “vistas grossas” ao movimento cristão subimpositivo.
Sabe como é o povo, não é? Quando “bate pé firme” de querer mesmo uma coisa, não tem Governo nem nenhum outro macrofator real de poder que impeça! É só questão de tempo e de carimbos e rubricas protocolares. O chato é que depois quem aparece na foto dos vitoriosos são os “líderes” de última hora, que se aproveitam das ondas revolucionárias para implantar seus regimes particulares pseudolegítimos.
Mas não foi nada fácil nem rápida essa pressão popular. Apesar de Constantino I ter praticamente reconhecido os cristãos, estes, enquanto “clandestinos”, sofreram muitas atrocidades, mesmo porque o paganismo continuou mandando e desmandando no pedaço. [O próprio Constantino costumava adorar o Deus Sol.] O Cristianismo longe ainda estava de se tornar a religião oficial do Império.
O imperador Decius Trajanos (249-251), observando o esvaziamento cada vez maior dos templos pagãos, iniciou, em 250, a oitava perseguição contra os cristãos, que passaram a ser extremamente torturados antes de serem mortos. Essa monstruosidade imperial holocáustica só não prosseguiu porque os romanos iniciaram uma guerra contra os godos e as atenções imperiais foram então desviadas.
Com os conflitos ideológicos entre pagãos e cristãos, o Imperador Flavius Valerius Constantinus, então chefe de estado e dos assuntos religiosos, convocou o famoso “Concílio de Niceia” (em 325), de caráter ecumenicista, tendo reunido inclusive várias seitas cristãs. A ideia era tentar apaziguar os ânimos, inclusive quanto à discussão acerca da própria figura de Jesus e sua identidade como Deus, Filho e Espírito Santo (versão trinitária) ou como homem comum (versão ariana
[2]). Esse sumo pontífice imperador, ainda que simpático à causa do Nazareno, morreu em 337, mas não registrou o Cristianismo em cartório.
O auge do genocídio aos cristãos se deu no Império de Juliano, entre 361 e 363. Muitas vezes, nas belas e ensolaradas tardes de domingo (já oficializado em 327 como dia de repouso), milhares deles serviram de distração mais excitante para os romanos entediados de prazeres triviais. Vários seguidores do “Caminho” eram devorados por leões esfomeados, em plena arena, para o delírio da torcida. Era “casa cheia” nos dias de tais sacrifícios esportivos!
Todavia, apesar desses espetáculos dantescos, sempre que saíam do estádio para ir para a casa, agora com a consciência mais recobrada, os torcedores “patrícios” se ensimesmavam com a seguinte incógnita: por que aqueles “loucos” não fraquejavam na sua dignidade, mesmo diante das feras que vinham correndo para cima deles com as bocarras cheias de presas afiadas? Por que eles até cantavam e riam para o alto, como se estivessem prenunciando um reencontro para breve? Por que, mesmo sendo mártires, não perdiam a pose de heróis? Por quê? Por quê?
Foram essas, entre outras inquietudes, que influenciaram o Império a reconhecer que os cristãos não eram apenas membros de uma religião a mais, das que viviam a brincar de adorar deuses!
Claro que, aí, o imperador, que não era menino, procurou aparecer como o “bom da boca” frente à nova realidade social cristianizada. Que é que ele estrategiou para se reforçar no poder? Recriou e reeditou uma velha artimanha jusnaturalista, de que seu poder emanava de Deus. Ele admitiu os cristãos, mas incitou-os a reconhecer só nele o grande enviado de Deus à Terra para cuidar dos destinos da humanidade. Percebeu a nuance do governante para administrar com vantagens o pluralismo político? Era a ideologia política acomodativa já reinante desde aquela época!
Destaque-se que até a Idade Média o poder clerical andava de braços dados com o poder governamental. Era a política conjunta do “me-apóie-que-eu-lhe-apoio”. Com isso o povão apolítico ou não político vivia a engolir bulas papais e éditos imperiais (que eram praticamente o mesmo documento), sem direito nem a mastigar. Vomitar qualquer coisa imposta, ou melhor, embocada, por ordem desses dois leviatãs-sócios do poder temporal, já implicava o risco de ir para a fogueira. Você teria coragem de abrir a boca para dizer algum não? Eu não! Enfim, ou engolíamos esses sapos oficiais ou iríamos para as labaredas ou para as varas
[3]. Você preferiria o quê?
A sanção final do texto bíblico (ou cânone) foi dada pelo Papa Inocêncio I, em 405, embora ainda tenha havido depois diversas alterações e inclusões de textos da própria Igreja Católica.
O pior é que, após os conflitos havidos na longa fase de elaboração, inclusão e exclusão dos textos que integram o corpo da principal bíblia atual, a Igreja Católica não só censurou, como escondeu a sete chaves o “making off" do livro de papel mais lido do mundo até hoje. Isso para não contar que seus biblioclastas (assassinos literários) destruíram centenas de textos que contrariavam os interesses ideológicos do “alto clero”.
Posteriormente, outros papas mandaram até soldados saírem mundo afora à cata dos outros escritos que não tinham ido para o exame na formação da primeira edição da Bíblia. Foi uma das tarefas das chamadas “Cruzadas”. Milhares de inocentes foram assassinados, por guardarem, terem ou esconderem os escritos “proibidos”, acusados de heresia.
Com sua atitude repressiva, o Vaticano cometeu um verdadeiro crime continuado de lesa-evolução, que se protraiu por quase mil e quinhentos anos (a chamada “idade das trevas”). Nesse ínterim, a principal tônica eclesiástica era: “extra ecclesiam nemo salvatur” (“fora da Igreja ninguém se salva”)
[4].
 
{Bem, reconheço que estou aqui heresiando contra a velha Igreja Católica e seu passado reconhecidamente tenebroso, o que é historicamente público e documentalmente notório. Ainda corro o risco de ser anatematizado e excomungado sumariamente, senão pelo Santo Padre, pelo menos pelo pároco aqui da minha freguesia. Isso hoje, porque se fosse mil anos atrás, quando prevalecia o intolerantismo
[5], provavelmente eu seria tostado na fogueira do Santo Inquérito e estes despretensiosos ensaios argumentativos seriam incluídos no expurgatório ou Index Librorum Proibitorum[6].
 
Entretanto, não podemos deixar de reconhecer os benefícios sociais fomentados pelas correntes neocatólicas dos dias atuais, especialmente aqui no Brasil e particularmente na Bahia, onde a dogmática católica sempre recebeu um certo tempero sincrético, que lhe suavizou e até surrealizou bastante seus traços medievalistas e temibilíssimos. Apesar de todos os seus crimes hediondos do passado, sob essa mesma instituição político-religiosa se abrigaram muitos verdadeiros santos com seus discursos e exemplos universalistas e eternos, que estiveram bem acima dos dogmas e ortodoxias clericais. Dentre eles temos São Francisco de Assis, Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho, São Luiz, Santo Antonio de Pádua, Tereza d’ Ávila, Madre Tereza de Calcutá, Padre Antonio Vieira e Huberto Rohden. E, aqui mais entre nós, não podemos jamais deixar de alistar nossa saudosa Irmã Dulce (quem sabe senão futura “Santa Dulce”?).
Embora acatólico ou, melhor dizendo, descatolicizado, eu não tenho sistematicamente nada contra o império religioso vaticanista. Não sou um bom exemplo de anticlericalismo. Penso que, ainda que sob heteroinfluências, cada católico, como, aliás, cada religioso ou seguidor de qualquer credo, fez e faz as suas escolhas ou se mantém nelas conscientemente, ainda que de acordo com o modo de ver a vida e baseado em suas próprias convicções ou influências ambientais ou históricas. Até prova de prejuízos graves a sua vida ou à de outrem em contrário, isso deve ser respeitado, inclusive com base no princípio da liberdade de credo.
O diálogo íntimo mais importante não é o que se mantém com a igreja, mas, sim, com o Cristo, que se perpassa entre todos os credos, dogmas e ritualismos, em direção aos corações contritos e de boa-fé.
Repisando no ponto, o que importa não é a forma de fé do fiel, mas, sim, o que cada fiel faz a partir de, com, independentemente de ou apesar da sua forma de fé.}
 
A seleção de todos os textos bíblicos que vieram até nossos dias, nesse volume único bem encadernado, basta para dar uma ideia da essência do que efetivamente pregaram os grandes sábios ali reportados, especialmente o maior deles, que foi o Cristo. Não podemos exigir cem por cento de precisão epífana em um livro que foi escrito durante quase mil e seiscentos anos, por diversas pessoas, inspiradas ou não, em diversos lugares, em línguas, culturas e ideologias diferentes e com centenas de eixos temáticos diferentes.
Alguns pesquisadores já apontaram mais de duas mil contradições entre as passagens bíblicas. Mas, certamente, grande parte delas se originaram de falha de leitura, por contaminação talvez com ideias preconcebidas. É também uma verdade que cada um busca e vê a verdade ou a falsidade e o erro ou o acerto que a sua mente já está predisposta a ver, concorda?
Entretanto, ainda que cheia de eventuais conflitos, erros (mesmo grosseiros) e intracontradições, a Bíblia consegue fornecer a essência de muitas mensagens espirituais eternas, principalmente nos quatro Evangelhos (desde que não se fique nas leituras meramente literais). Tudo na Bíblia tem de ser interpretado para uma linguagem e formas de ideação atuais, especialmente aquelas verdades camufladas nas histórias (inclusive a da Gênesis mosaica) e nas parábolas de Jesus.
No geral, a Bíblia tem dado para o gasto circunstancial de todos aqueles que precisam de um bom referencial de conduta e de aproximação a Deus, cuja centelha jaz dentro de cada um de nós. E Este, em verdade, só editou um livro cem por cento verdadeiro até hoje: a consciência.
 
A Bíblia não se enfeixa apenas nas interpretações intratextuais. Ela não é apenas um livro sagrado das religiões. Ela é um superlivro. Está acima das religiões, em que pese ao fato de ser editada por religiões. Daí porque há a necessidade da extensão dos textos bíblicos no tempo, como que para melhor esclarecer, adaptar e contextualizar seus ensinamentos.
A Grande Palavra não se restringe apenas à coleção dos textuários montada inicialmente pela Igreja Católica em sua formação. Ela se espraia em mensagens avulsas escritas ou orais, livros comentadores e revelações epifânicas.
As chamadas Escrituras Sagradas nunca prescindem dos textos complementares extra e pós-bíblicos, que estão sempre aparecendo sob as luzes da história literária das formações religiosas e dos povos, para explicar, revisar, atualizar e ressignificar todo o seu conteúdo.
Até hoje surgem e se escrevem novos “evangelhos apócrifos”, que continuam a despertar os eternos conflitos de sempre. Entretanto, eu prefiro ter o direito de conflitar respeitando o direito alheio de contradizer minhas próprias “leituras apócrifas” sobre esses assuntos sagrados, a vivermos sob a ditadura cultural execradora das maiores liberdades humanas: a liberdade de opinião, a liberdade de credo e a liberdade de expressão, ainda que relativamente controladas.
O verdadeiro iluminante nestes tempos de escuridão e trevas inconscientizadoras ainda é o Cristo, o maior escritor de todos os tempos. Por intermédio de um de seus ghost writers, Ele asseverou: "Eu sou a luz do mundo". O dever nosso é refratar centelhas dessa luz na direção uns dos outros, intersolidariamente, enquanto estradamos na escuridão do caos que zoa na nossa contemporaneidade. [Você conhece ou tem as novas lâmpadas sem filamento? São formadas por vários e vários LEDs (aqueles diodos eletrônicos que têm luz própria) enfileirados, que se acendem com pouquíssima energia e que, juntos, têm o efeito de uma lâmpada forte. Vamos acender os nossos LEDs, para juntos formarmos, quem sabe, uma via lucis em continuidade à via crucis que a maioria de nós, inclusive eu, ainda segue, até o final da grande transição?]
 
[1] Considerado um “doutor” da Igreja Católica, Eusebius Sophronius Hieronymus (340-420) foi o tradutor oficial da Bíblia do grego antigo e do hebraico para a vulgata latina.
[2] Em referência a Arius (256-336), então presbítero cristão egípcio, o qual, no Concílio de Niceia, liderou uma corrente de pensamento que negava a existência de uma mesma natureza entre Jesus e Deus.
[3] Houve um tempo na Roma Antiga em que os Doutores e Magistrados condenavam acusados a sofrerem determinado número de açoites com uma vara. Daí a expressão “meter-se em camisa de onze varas”, que era ficar com a marca oficial de onze varadas no corpo, o que quer dizer hoje meter-se em enrascada.
[4] Variação de outra frase latina famosa: “extra ecclesiam nulla salus” (fora da Igreja não há salvação). Ambas as frases foram instituídas pelo teólogo egípcio Orígenes (185-253), em suas homilias. Thascius Cecilianus Cyprianus (200 a 210-258), o São Cipriano, instituíra máxima semelhante: “salus extra ecclesiam non est" (não há salvação fora da Igreja). 
[5] Doutrina que adota como princípio a intolerância a qualquer desvio relativo ao conteúdo e às expressões das verdades e práticas religiosas. – Dic Houaiss.
[6]“Índice dos Livros Proibidos”, relacionados pela Igreja Católica, desde 1559. Quem lesse qualquer livro dessa lista seria automaticamente excomungado. Calma! Não se Assuste! Tal lista foi engavetada pelo Papa Paulo VI em 1966. Continue a leitura.
Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 22/01/2011
Reeditado em 26/09/2013
Código do texto: T2744922
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