Algumas Considerações sobre o Consumismo

Vivemos numa contemporaneidade que se caracteriza, sobretudo, pela pulverização. Tudo está disperso. Claro que esta definição não se esgota aí, pois o conceito de contemporaneidade é vasto demais, se perde num amplo painel de complexidades. Mas hoje as relações humanas encontram-se esgarçadas, a palavra do momento é fluidez. Nunca fomos tão herdeiros do filósofo grego Heráclito quando este afirmou a transitoriedade, a impermanência de tudo numa única frase grega, panta rei, comumente traduzida como “tudo flui”. Os indivíduos não se prendem mais a nada, não buscam por estabilidade de qualquer ordem, não almejam a essência de coisa alguma, apenas mergulham no velho rio heraclitiano, pois o mesmo Heráclito recorreu ao rio como metáfora de fluidez, de estado passageiro, de efemeridade, uma vez que as águas do rio não se detêm em parte alguma. Em uma famosa proposição o filósofo disse que ninguém mergulha duas vezes no mesmo rio, por um motivo muito simples: da segunda vez o rio bem como a pessoa que nele mergulhar já terão mudado, não serão mais os mesmos, tal a transitoriedade de tudo. Hoje as pessoas são os nadadores desse rio, mergulham de cabeça no fluxo contínuo da correnteza. O mercado entende muito bem isso e produz objetos descartáveis, coisas que, pela sua insubsistência, são logo substituídas por outras (o ser humano mesmo se torna substituível). Claro que há uma jogada econômica aí regendo esse mercado. É preciso vender, ganhar dinheiro. Para isso as coisas não podem durar. Assim as pessoas, teleguiadas pelo efeito hipnótico do marketing maciço, correm às lojas em busca do mais novo modelo de celular, computador e aparelho de televisão, que vão ficando cada vez mais antiquados, passageiros, tanto quanto o rio heraclitiano. Nunca houve tanto consumo como hoje, uma vez que as condições econômicas são favoráveis a isso. O problema é que esse consumismo pode estar encobrindo questões mais profundas. Quando as pessoas começam a se preocupar excessivamente com a aquisição de coisas materiais, quando elas compram apenas por comprar, é sinal de que há algo de errado. Afinal, Marx dizia que quando alguém se prende a algo do reino da matéria seu valor humano fica diminuído. E as coisas indicam que isso está ocorrendo, as pessoas estão buscando se completar nas coisas, enquanto se anulam espiritualmente, a si e a sua identidade, bem como se afogam no sem-sentido do mundo. O lema atual é “seja feliz”. Acontece que a situação espelha uma faceta muito triste do homem. A felicidade possui ângulos diferentes de acordo com cada caso. Ora ela é identificada com o gozo dos sentidos, o que aproxima o sujeito da vida animal, outras, raras vezes, é identificada com a atividade reflexiva, o que eleva o ser à condição de gênio. Há felicidades que são apenas fulgurações meteóricas que desaparecem depois deixando um abismo interior de proporções incomensuráveis. Ensinam os orientais, e a tradição socrático-platônica o confirma, que buscar a felicidade nas coisas externas e materiais só gera mais tristeza e frustração. Isso é óbvio por si: o que é material se corrompe com a ação corrosiva do tempo, e como se busca nele a felicidade, quando ele perece perece também a felicidade, obrigando o indivíduo a renovar sua lista de apegos. O filósofo Schopenhauer disse que o apego é um ciclo destrutivo porque para cada desejo satisfeito há mil novos exigindo satisfação e aprisionando o sujeito a um egoísmo cego e anti-ético. Mas voltando à tradição, sabedoria então consiste em transcender os aspectos formais e buscar conforto no que é em si e por si, no que não morre nunca, o que não obedece a modismos nem a imposições do mercado: o espírito e sua auto-realização. Os budistas afirmam que viver é dor (primeira das quatro nobres verdades). Isso se deve ao fato de vivermos apegados às coisas e pelo que acabei de dizer sermos levados a nos apegar aqui e ali, sem encontrar a plenitude. A origem dessa dor, portanto, é o desejo de posses, que deve ser negado. Se olharmos para as lojas de eletrodomésticos apinhadas de gente ansiosa para adquirir seremos obrigados a rir ironicamente e a constatar que a civilização ocidental errou de paradigma e que os budistas estão na contracorrente do consumismo obsessivo e patológico que explode nas ofertas irresistíveis, nos produtos exuberantes com promessas de felicidade, e o que é melhor, a felicidade pode ser dividida em até dez vezes sem juros! O filósofo grego Sócrates é o emblema do desapego. Ele nada possuía, de fato. Certa vez, diante de artigos de sua época numa feira, sabiamente exclamou “Quantas coisas das quais eu não necessito...”, pois de fato os homens são levados a consumir o supérfluo. A existência e seus problemas, o belo, o verdadeiro, o destino do homem, a profunda tristeza que lhe corrói a alma, sua total alienação num mundo digitalizado, controlado, instrumentalizado, isso não importa, desde que se possua algo. Nunca as pessoas tiveram tanto sem ter verdadeiramente nada. Estamos no reino do ter. A afirmação marxista “A valorização do mundo da coisa avança em razão direta com a desvalorização do mundo do homem” nunca foi tão atual, pois hoje o que há é o predomínio da coisa sobre o ser. O resultado é uma sociedade de pessoas estereotipadas, vazias, vivendo sob o efeito de todos os tipos de drogas, sejam as ilícitas ou as lícitas, como o álcool, sejam as artificiais, como as da indústria farmacêutica, sejam aquelas mais mascaradas, como o entretenimento oco. O próprio consumismo se configura como uma espécie de droga, sem dúvida, na medida em que provoca um entorpecimento da consciência do sujeito que, exatamente como o efeito do crack, temporariamente se sente preenchida, até que a coisa passe (tudo flui) e obrigue o homem à busca de novos prazeres renovados. Antes, lá nos gregos, o destino da alma, a evolução moral, ética e espiritual do homem era o que importava, o resto era apenas acessório. Hoje o acessório é a alma, considerada uma ilusão tão descartável quanto os produtos na vitrine de uma loja, enquanto os homens estabelecem relações coisificantes com tudo e todos, vendo a si e a todos como supérfluos e descartáveis na grande indústria do dinheiro. Mas os sintomas dessa degenerescência pipocam aqui e ali sob a forma de violência gratuita, atitudes autodestrutivas, síndromes do pânico, depressões, drogas, etc. Num mundo cujo poder de compra aumenta a alma foi vendida barato. As pessoas se tornaram montes de nervos em pó, sorridentes, mas histéricas, de olhos vidrados onde se lêem angústia, desespero e busca de um sentido. Não se deve ser purista, moralista, no entanto. O mundo evoluiu bastante com as novas tecnologias, com as novas mídias, que agilizaram as coisas e encurtaram fronteiras, as condições econômicas melhoram cada vez mais, a mente do homem é mais dinâmica, aberta. Ter dinheiro é bom, mas não quando ele tenta substituir o homem e instaurar condições patológicas de existência, e sim na medida em que as coisas são apenas acessórios e não essências, na medida em que é a alma, plena e realizada, que governa e não o contrário, na medida em que a saúde psíquica e a qualidade de vida são o que importa, e não se se tem ou não o último modelo de celular. Para fechar, recorro a uma máxima estóica que diz “Sê rico e abdica”. Sim, pois quando você se esvazia das coisas de fora se enriquece das coisas de dentro e se você apenas se enche das coisas de fora acaba por ser um pobre de espírito. Mas melhor ainda é quando as coisas de fora e as de dentro se encontram repletas.

Vagner Rossi
Enviado por Vagner Rossi em 22/07/2011
Código do texto: T3111604
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