ANÁLISE DA OBRA DE SALVADOR DALI – "A TENTAÇÃO DE SANTO ANTÔNIO" (1946)

(cf. ver a imagem em qualquer site)
Esta obra de Salvador Dalí (1904-1989), chamada de “A tentação de Santo Antônio”, assim como todas suas outras obras, chama a atenção pela incrível combinação de imagens bizarras, oníricas, com excelente qualidade plástica. Sem entrar em maiores detalhes sobre sua vida e suas importantes obras, convém chamar a atenção para um fato interessante: em sua juventude, segundo biógrafos, manifestou grande interesse pela figura de Freud que o conheceu.
 Psicanaliticamente esta obra de Dalí tem muito que nos ensinar e é fruto de interpretação.  Dalí retrata na tela Santo Antônio sendo tentado. Este se encontra nu, assim como nos sonhos nos encontramos despidos de qualquer privação. A tentação é tão forte que desnuda o Santo, lhe restando somente sua única proteção, a cruz (Deus). Salvador Dalí trabalha com a distorção e justaposição de imagens conhecidas. Perante esta visão pessimista e angustiada de Santo Antônio, a única esperança está em Cristo – a cruz. Só pela força da renúncia, amparado pela fé, pode o homem libertar-se dos demônios que o atormentam. A Tentação de Santo Antônio nos revela a loucura e o pecado, a visão de Cristo e do Santo firme na sua fé. Nos sonhos somos assaltados e incomodados com imagens sem nexo e até logicamente contraditórias entre si.
Explicitamente percebemos no quadro seis cenas (figuras) essenciais: santo Antônio; quatro animais gigantes carregando objetos (um cavalo e três elefantes); um elefante ao longe; uma nuvem nublada invadindo a cena, vindo da esquerda até o centro; dois pequenos personagens abaixo dos gigantescos animais (santo Antônio sendo tentado por alguém de preto), e, enfim, o lugar deserto onde ocorre o episódio da tentação. Este é o conteúdo manifesto do sonho exprimido por Dalí.
No sonho perde-se a proporção de tamanho ou de tempo restando apenas a intensidade do que sentimos no mais fundo do inconsciente. As criaturas das quais o Santo se protege, são desproporcionais a qualquer criatura real. Como num sonho, tomam proporções exageradas, enfatizando sua maldade ou medo do Santo com relação às mesmas.
Começando pela última imagem percebida, vemos o deserto, o local onde ocorre a cena e a pintura. O deserto é sugerido como o local onde ocorre a dramatização dos personagens, o teatro, o palco, o cenário na pintura de Dalí, embora não se possa atribuir exatamente este significado. O deserto nos dá a sensação da ausência da unidade de tempo, os segundos, minutos e horas não existem, nos passa uma imagem de vazio, abandono, solidão. O Santo anda em círculo para encontrar um local, um espaço qualquer ou um ponto imaginário numa coordenada espacial percebida e definida por ele através de seus sentidos, é sua inconsciência ativa, sua miragem, sua loucura. É o campo árido de suas mais íntimas reflexões. Em outra visão, o deserto é o calor das tensões, o fogo das paixões, o delírio que o lança à miragem de seus desejos como elementos, o que fervilha, Ele é errante em busca do oásis, do paraíso da água e do alimento, da satisfação, do objeto de desejo. O deserto o traz a esperança de que alcançará seus objetivos.
Na linha de frente da segunda cena (imagem) vemos os quatro grandes animais, encabeçados por um grande cavalo branco. O cavalo que se encontra posto a frente do Santo sugere que ele vai se lançar sobre Ele. O cavalo branco representa inconscientemente a limpeza, a ordem mental e a opção pelo caminho certo, embora o cavalo tende a caminhar em direções opostas. No quadro, o cavalo tende a caminhar pela trilha correta, impulsionado pelo ego (o Ideal do Eu), mas é barrado pela energia do Santo (O Eu Ideal). O cavalo simboliza o inconsciente profundo, reprimido, o acúmulo de emoções, das quais o Santo pretende ter as rédeas em suas mãos [sic] mente. O cavalo é o guerreiro em posição de combate contra o mal, é um contrainvestimento do superego. O corpo do cavalo mostra a robustez muscular vista pela defesa contra os elementos reprimidos. O cavalo está nu, sem ornamentos que o cubra; sua força se faz vista pelas couraças de defesa do ego. A face do cavalo está voltada para a direita e mostra o esforço hercúleo de negar a investida sexual. Na parte pélvica que está paralisada, as patas traseiras e o órgão sexual do cavalo em posição vertical são os membros inferiores e o pênis do homem (Santo). O cavalo quer a plena satisfação do orgasmo sexual, mas luta bravamente contra as tentações mundanas, impedidas pela cruz (o ego). O Santo nu é o espelho do cavalo, embora pelos instintos recalcados apresenta-se de estrutura menor, mais frágil. O Santo tenha em sua mão direita uma cruz, o domínio do ego, seu elemento de força em forma de símbolo. A cruz é de estrutura frágil e sugere que pode quebrar ou se desfazer revelando a fragilidade do homem que só se defende em momentos de extrema necessidade. O borrões dos cascos dianteiros do cavalo visto do primeiro plano à direita, dão a impressão de “derretimento”, característica marcante na obra de Dali. O autor traz do inconsciente para essa obra seus traços artísticos inconscientes representado no cavalo pela desintegração lenta dos elementos transformados pelo superego e aceitos pelo ego. Há após o cavalo outros três grandes elefantes carregando objetos. O elefante é uma distorção do espaço, suas pernas contrastam com a idéia de imponderabilidade com a estrutura. O consciente não permite os desejos reprimidos – o elefante com a torre parece estar “fugindo”, retirando-se lentamente em outra direção, indo em direção contrária aos elementos recalcados, retornando ao inconsciente. Os elefantes em fila indiana caminham lentamente em direção ao Santo, trazendo o cortejo que significa o luto, a morte, a tortura, um desprazer esmagador, masoquista, sentido lentamente. É o retorno da energia não sublimada. Por ser um animal herbívoro, o elefante não sobreviveria por muito tempo no deserto, sem alimento e água; assim o homem não sobreviveria isento do objeto de autoconservação, abandonado-se a um cenário onírico árido. O Santo sente fome de comer e sede de beber. Beber do rio das águas sujas. Dalí ilustra o elefante com patas de cavalos, animal capaz de sustentar as fortes mudanças climáticas e geográficas, capaz de sobreviver ao ambiente árido do inconsciente e das vicissitudes conscientes. Simbolicamente representa o homem que carrega sua carga, seu fardo, sua cruz. O elefante é o sacrifício do jejum, a abstinência, a castidade do Santo para a purificação do corpo e da alma. Só assim, livrando-se das tentações é que se chega ao Divino.
As orelhas dos elefantes denotam habilidade de escutar e refletir sobre as verdades espirituais, órgão de sentido que mascara o verdadeiro objeto sexual, o objeto de desejo. A orelha que simbolicamente representa o órgão sexual feminino está presente no cavalo, embora de forma sutil e ampliada é retratada pela sequência de sua crina que revela a mulher erótica, pecadora, sexualmente pervertida, a provação, a desambiguação do demônio.
A nudez do Santo mostra que Ele está prestes ao concluio sexual, é o ato sexual inconsciente, desejado, que não se realiza, pois é temido, temido porque escuta vozes como vindas do exterior, avisando-o sempre da tentação. Representa o desejo inconsciente de Dalí de despir-se do luxo, a máscara teatral arrancada, o louco peregrino. A tromba do elefante representa esse elemento de comunicação. É o ego atuando sobre o consciente. As trombas são o eco do pensamento, o recalcamento que consegue localizar seus inimigos e sua fonte de desejo, a paranóia, o delírio. Contrariamente, as trombas significam a impotência sexual, o sentimento de castração. É a anunciação da verdade.

Sobre as outras figuras: As duas figuras de pé sobre o chão, em miniaturas, aparentam estar em conflito lembrando a figura de padres numa luta não revelada e incansável do id com o ego. São lembrados como os sermões contra os pensamentos e atos impulsivos e pecaminosos dos homens, dos insetos que rastejam no inconsciente. As nuvens são a representação dos pensamentos e da memória; condensam e transportam os elementos de excitação, as energias primárias da libido sexual, os impulsos do inconsciente e seus representantes da idéia, do pensamento, dos traumas, da loucura. A formação das nuvens no canto superior esquerdo da pintura revela-se no quadro pela graduação do cinza e preto e significa a condensação do material reprimido, o investimento energético, o movimento, os instintos reprimidos em direção ao ego das nuvens carregadas - sinal de mau presságio trazido pelas águas da morte, anunciado pelo anjo com corneta acima da cúpula dourada; é a inundação devastadora que vem transtornar a terra e tragar os seres vivos e trazer à tona, ao consciente toda a sujidade contraída no curso dos contatos cotidianos obscuros. A torre sobre o elefante atrás da nuvem é o primeiro sinal, a primeira ameaça dos instintos reprimidos, a libido sexual, uma revelação tentando transpor a barreira do recalcamento. O anjo de corneta é o superego em ação.
A figura feminina representada pela mulher nua de pé sobre o segundo elefante apresenta dois significados: o desejo incestuoso reprimido pela mãe ameaçado pelo elefante com a torre (o pai) que embora segue em outra direção, permanece no inconsciente, é o desejo que transpôs a barra de recalcamento, sublimado, embora ameaçado pela figura constante do pai. A figura da mulher está sobre um chafariz. A mulher, símbolo da pureza e que está bem equilibrada em sua posição é a água que sai do chafariz, o gozo, a preferência velada do filho pela mãe, sublimada pelo Santo pela purificação da água viva, da água benta. A imagem da mulher com as mãos nos seios, mostra inconscientemente que ela está segurando uma criança em seu colo com o braço direito. O corpo da criança se funde com a perna esquerda da mulher.
André Boccato
Enviado por André Boccato em 29/07/2011
Código do texto: T3126185
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.