Silêncios

Passou um carro na rua tocando uma música no último volume. Parece que os carros hoje são criados para carregar esses alto-falantes e amplificadores portáteis.

Nós valorizamos muito o som. Raramente paramos para pensar no silêncio. Silêncio é geralmente encarado como algo inexistente, morto e, portanto, sem importância.

Existem tipos de silêncios. Alguns silêncios são mais reveladores e expressivos que conversas ou olhares. O silêncio pode ser um meio de comunicação.

Me lembro do meu avô. Nós dois tínhamos uma conversa silenciosa. Ambos sentados na sala ou na varanda, vendo tv ou olhando a rua. Vez ou outra aquele mar de silêncio era quebrado e trocávamos algumas palavras, como se fosse uma pausa para respirar e de novo mergulhar no silêncio. Na verdade não era. Nosso silêncio era simplesmente um meio de aproveitar o momento, deixar o mundo traiçoeiro das palavras, e ter uma conversa inaudível. Cada um admirava o outro senão ninguém estaria ali. Nas pequenas frases articuladas ficávamos rapidamente inteirados do dia de um e do outro. Mas o que pesava mais era o silêncio, era descansar assistindo tv ou observar os tipos engraçados e as mulheres na rua por meio do silêncio

Silêncio aqui significava interação.

A esfera familiar é o locus perfeito dos silêncios, de todos os tipos. Existiam outros parentes que se silenciavam diante das atitudes de seus desafetos. Era um ato de reprovação não ouvir nada, só sentir o olhar condenador. Outros usaram o silêncio para se proteger. Cansados de serem julgados ou metidos em intrigas se refugiaram no distante bairro chamado silêncio e de lá saíram poucas vezes desde então.

Além do silêncio da interação, da concentração, da condenação e da proteção, existe outro: o silêncio do fim. A morte é um tipo de silêncio. Afinal nunca mais se ouvirá algo vindo da boca de um morto. "Mortos não contam histórias". É um dos silêncios mais fortes que existe, pode até produzir todos os outros dos quais falamos. Ele anda de mãos dadas com outro personagem: o esquecimento.

Esquecer é perder algo na memória. Não se perde algo ruidoso, pois isso chama muito a atenção. Agora, algo quieto e tranquilo é muito mais fácil de ser esquecido. O silêncio é uma das condições para ser esquecido.

A História é feita de silêncios. Imagine todas as pessoas que passaram pela Terra, todas elas aparecem nos livros de História ou só aquelas que parecem mais importantes, as mais "ruidosas"? Embora se procure hoje, é difícil encontrar a voz dos homens e mulheres que apenas queriam viver sua vida ou mesmo aqueles que participaram de algo considerado importante. Por exemplo, os construtores das pirâmides ou da Muralha da China são batalhões de trabalhadores esquecidos. No mínimo podemos encontrar as vozes dos engenheiros ou do governador que ordenou sua construção, mas deles...

No entanto, ás pessoas próximas de nós podemos quebrar o silêncio mortal reproduzindo em nossa cabeça seu som. O som que suas lembranças produzem. O som de sua voz, de suas músicas cantaroladas.

A memória luta contra o esquecimento, assim como o som luta contra o silêncio. Ninguém ganhará a batalha, mas a luta continua. São adversários cordiais, velhos inimigos que se respeitam e que de certa maneira são até complementares.

A memória não é perfeita e o esquecimento não é total. O silêncio não é totalmente inerte e o som também não é 100% espontâneo. Já mostramos aqui como o silêncio pode preencher algumas funções do som.

O silêncio nos lembra das limitações de nossas ciências (como a História), de nossos relacionamentos (como a família) e até mesmo de nossa condição (de seres mortais).

Eu até falaria mais sobre o silêncio, mas meu vizinho acabou de ligar seu rádio superpotente e sinto que deverei trocar algumas palavrinhas não muito carinhosas com ele. Afinal, há hora de silenciar, hora de falar e hora de botar a boca no trombone...