GRAMÁTICA NÃO É A MESMA COISA QUE LINGUAGEM!

Comumente, uma ideia equivocada envolvendo o ensino de língua acaba sendo supervalorizada, impossibilitando uma real e profícua contribuição que poderia ser realizada neste sentido. Trata-se de aulas de linguagem que possuem, na maior parte do seu tempo, e em se tratando do tempo escolar, que é escasso, isso se torna ainda mais grave, um conteúdo voltado, predominantemente, para a mera taxonomização e decoração de elementos gramaticais superficiais e estruturais da língua que se estuda. Isso acaba configurando-se como um grande problema que, além de podar uma possibilidade de mergulho analítico acerca de todo o fenômeno linguístico fundador dos atos de linguagem por parte daqueles interessados em seu estudo, ou seja, os próprios usuários da língua; também acaba, por fim, desvalorizando o trabalho daqueles profissionais que se debruçam sobre estudos profundos e que, alguns até chegam a fazer pesquisas mais densas, durante quatro anos pelo menos de graduação em Letras e, até mais, com os anos de pós-graduação de outros.

Neste sentido, jorra rio abaixo todo um tempo desperdiçado em leitura detida, análise crítica, esboço de propostas de intervenção e elaboração de planos de cursos na área de linguagens. É claro que variadas desculpas surgem frente a este problema como falta de tempo para trabalho, pressão de mecanismos de aprovação em vestibulares e concursos que exigem o domínio de um uso padrão e formal da língua, escassez de alternativas distintas de trabalho com a linguagem das presentes em livros didáticos etc. Com certeza, uma infinidade de obstáculos particulares e muitos até considerados universais poderiam ser elencados na tentativa de justificar a desistência de um enfrentamento a esta ideologia dominante no ambiente escolar, propriamente dito, que se chama domesticação do ser humano. Ensina-se, cada vez mais, que existem maneiras de falar e escrever errado e correto/ adequado e inadequado, a depender do ambiente, sobretudo quando se quer incentivar a produção escrita do alunado. Contudo, discute-se pouco sobre os mecanismos retóricos poderosíssimos que a publicidade utiliza para persuadir e arrebatar mais consumidores, provocando, pari passu, níveis mais altos de inadimplência entre os membros da parcela menos favorecida economicamente da sociedade; assim como também se analisa em sala de aula, esporadicamente, a construção dos discursos políticos manipuladores e estrategicamente convincentes que, bianualmente, invadem os meios de comunicação em busca de mentes despreparadas e inocentes para financiarem e apoiarem seus projetos e objetivos.

Com isso, parece mesmo que Professor de Língua seja Portuguesa, Inglesa, Espanhola, Francesa ou qualquer outra, se tornou Professor de Gramática de sua respectiva língua. Deste modo, reduz-se a competência e fragmenta o conhecimento acerca da linguagem, que se subentende que o profissional habilitado e licenciado pela academia teria, além de reduzir as possibilidades de ampliação dos saberes escolares para os alunos usuários desta linguagem que se estuda ali naquele ambiente e naquele momento. Ninguém ganha com isso. Muito pelo contrário. Uma ciência de raiz humana se torna saber de uma especificidade técnica e aplicada, que busca acompanhar a tendência do mercado científico da tecnicização maciça dos saberes. Entretanto, “nossos processos mentais, que constituem nosso ser e vida, não são apenas abstratos e mecânicos, mas também pessoais, e nisto envolvem não só classificar e categorizar, mas também continuamente julgar e sentir” (SACKS, 1997, p.15). Assim, esquartejam-se sentenças e classifica-se até as curvas de suas letras, ao invés de buscar analisar intencionalidades do discurso, construções subjetivas e ideológicas subjacentes, a polissemia possível do léxico empregado, enfim, uma gama enorme de possibilidades linguísticas em detrimento de um saber morto, redutor, fragmentário, extremamente formalista e parcial. Prefere-se sempre a parte ao todo.

Há de se lembrar, nesta discussão, que não se advoga exatamente de forma contrária ao uso e ao estudo da Gramática. Pois esta ciência ou ramo da ciência da linguagem é de suma relevância no aprofundamento do saber linguístico. Mais é isso e só. Ela não é, em hipótese alguma, a linguagem mesmo. Esta é muito maior e dinâmica. Não se prende a estruturas facilmente verificáveis e constantes. Não se pode compreender os elementos da linguagem através de simples classificações estanques e distantes do uso ou da apropriação dos sujeitos e dos discursos existentes. Deve-se analisar as partes, mas nunca e jamais retirar estas de um todo fundador. Um advérbio qualquer, por exemplo, nunca será só um modificador do verbo ou de um enunciado como prega a maioria dos compêndios gramaticais. Dependendo do seu uso, ele pode indicar uma posição subjetiva no discurso e, quem sabe, identificar um juízo ou uma opinião dos sujeitos envolvidos nesse. Vai além da taxonomia e da possibilidade funcional. Exerce um movimento na sentença que deixa implícito uma intenção ou um posicionamento ideológico acerca de algo.

Para exemplificar um pouco este discurso acerca de uma distinção necessária entre linguagem e gramática, faz-se uso de dois textos leves, reflexivos e profundos sobre a temática que, de algum modo, faz pensar sobre estas coisas de maneira menos ingênua. São eles: a música Mágramática, da banda O Teatro Mágico, e o poema De Gramática e de Linguagem, de Mário Quintana.

Mágramática (O Teatro Mágico)

Todo sujeito é livre para conjugar o verbo que quiser

Todo verbo é livre para ser direto ou indireto

Nenhum predicado será prejudicado

Nem tampouco a frase, nem a crase

Nem a vírgula e ponto final

Afinal, a má gramática da vida

Nos põe entre pausas

Entre vírgulas

E estar entre vírgulas

Pode ser aposto

E eu aposto o oposto

Que vou cativar a todos

Sendo apenas um sujeito simples

Um sujeito e sua visão

Sua pressa e sua prece

Que enxerguemos o fato

De termos acessórios para a nossa oração

Adjuntos ou separados

Nominais ou não

Façamos parte do contexto

Sejamos todas as capas de edição especial

Mas, porém, contudo, todavia, não obstante

Sejamos também a contracapa

Porque ser a capa e ser contracapa

É a beleza da contradição

É negar a si mesmo

E negar-se a si mesmo

É muitas vezes encontrar-se com Deus

Com o teu Deus

Sem horas e sem dores

Que nesse momento em que cada um se encontra agora

Um possa se encontrar no outro

E o outro no um

Até por que

Tem horas que a gente se pergunta...

Porque é que não se junta tudo numa coisa só?

O texto é construído todo com palavras de duplo sentido que representam uma ideia de transgressão e ruptura das normas existentes na Língua Portuguesa pela Gramática Normativa, que é o conjunto de regras que padronizam e buscam unificar o idioma oficial. As palavras que lembram categorias de classificação sintática como sujeito, aposto, adjunto, ou as de classificação morfológica como as conjunções de oposição (entretanto, todavia, contudo etc) utilizadas na música, remetem o leitor a uma reflexão acerca dos aprisionamentos que o sujeito falante de sua língua encontra ao utilizar a linguagem. Em resumo, a música, utilizando-se de sua forma poética como rimas, figuras de linguagem várias e outros elementos próprios deste gênero textual, questiona a ideia de liberdade de expressão que o indivíduo possui com relação ao seu próprio falar.

De Gramática e de Linguagem (Mário Quintana)

E havia uma gramática que dizia assim:

"Substantivo (concreto) é tudo quanto indica

Pessoa, animal ou cousa: João, sabiá, caneta".

Eu gosto das cousas. As cousas sim !...

As pessoas atrapalham. Estão em toda parte. Multiplicam-se em excesso.

As cousas são quietas. Bastam-se. Não se metem com ninguém.

Uma pedra. Um armário. Um ovo, nem sempre,

Ovo pode estar choco: é inquietante...)

As cousas vivem metidas com as suas cousas.

E não exigem nada.

Apenas que não as tirem do lugar onde estão.

E João pode neste mesmo instante vir bater à nossa porta.

Para quê? Não importa: João vem!

E há de estar triste ou alegre, reticente ou falastrão,

Amigo ou adverso...João só será definitivo

Quando esticar a canela. Morre, João...

Mas o bom mesmo, são os adjetivos,

Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto.

Verde. Macio. Áspero. Rente. Escuro. luminoso.

Sonoro. Lento. Eu sonho

Com uma linguagem composta unicamente de adjetivos

Como decerto é a linguagem das plantas e dos animais.

Ainda mais:

Eu sonho com um poema

Cujas palavras sumarentas escorram

Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,

Um poema que te mate de amor

Antes mesmo que tu saibas o misterioso sentido:

Basta provares o seu gosto...

O poema traz um pensamento acerca das classificações que a gramática, sobretudo a normativa, costuma fazer com as palavras como se essas fossem, realmente, de fácil caracterização e de breves definições. O problema é que as coisas, ou cousas como o próprio poeta utiliza, aliás, demonstrando a dinamicidade e a evolução da própria Língua Portuguesa no tempo, podem ter vida e fazer barulho. Deste modo, elas não seriam iguais às outras coisas que são consideradas substantivos concretos como a pedra ou uma caneta, por exemplo. A partir da leitura deste poema pode-se questionar se as palavras já nasceram grudadas nas coisas realmente ou se isso é uma convenção dos homens que não podem ser encaradas como verdades absolutas. A gramática é uma coisa que tenta descrever os elementos linguísticos e a linguagem. A disciplina é morta. Mas a linguagem é viva e só será definitiva no momento em que João “esticar a canela”. Enquanto isso, ela viverá e não será encerrada numa classificação qualquer ou num sentido único e exclusivo. Assim como o fim do poema diz e, igualmente, numa outra música de O Teatro Mágico, Sonho de uma flauta, que também foi bebida das leituras de Mário Quintana, é mais importante provar o gosto da linguagem do que querer “encontrar o verdadeiro sentido das coisas”. Pois isso “é querer demais”.

Agora, buscando uma relação mais estreita entre a música de O Teatro Mágico e a poesia de Mário Quintana, percebe-se que o conhecimento sobre a linguagem extrapola as descrições e classificações linguísticas produzidas pelas gramáticas, sobretudo a Gramática Normativa, em que se procura estudar a planta e o esqueleto da linguagem, e não, o sumo, o embrião e a vivacidade da língua em verdadeiro uso. É importante aprender a Gramática Normativa, pois somos usuários de uma Língua Portuguesa considerada o idioma oficial de uma nação em que necessita um mínimo de padrão para estabelecer a unidade na comunicação entre os sujeitos. Portanto, seu uso em textos oficiais é considerado obrigatório. Todavia, isso não impede o falante e autêntico usuário da sua língua, adquirida em seu meio cultural, de se expressar a sua maneira e de ser respeitado por isso e, principalmente, de seus usos linguageiros servirem de matéria de estudos também, por que não? Segundo Peter Burke e Roy Porter (1993, p.439), "aqueles que se afastam das normas do grupo provavelmente são colocados de lado. Apenas no estudo das narrativas é que se focalizam os indivíduos. Raramente se aprende sobre indivíduos que são perseguidos, adotam e adaptam novos meios, em especial meios de escrever, e que, se não formam um grupo em relação ao local de moradia, ao sistema monárquico ou algo semelhante, ainda têm uma existência que revela algo importante."

A gramática, neste sentido, ajuda a entender um pouco do funcionamento da linguagem, mas assim como nenhuma ciência, ela não sabe de tudo e não deve ser considerada mais importante do que a própria língua.

Por fim, salienta-se a importância da discussão acerca das intenções ideológicas que estão por trás do apoio e do incentivo de estudos a uma prática do saber das humanidades, pautada na mera e rápida aplicação empírica. A linguagem existiu ontem, existe hoje e existirá amanhã, independente da classificação tal e da limitação imposta pela descrição de um fenômeno isolado e quantificável. O professor de linguagens deve fazer a sua autocrítica e buscar entender o que se torna necessário ensinar e discutir em sala de aula acerca do seu conteúdo. Não se pode esgotar o ensino de língua na sua descrição e taxonomia superficiais e arquetípicas. Deve-se buscar sempre ir além. Os estudos que dependem de resultados mais ou menos esperados e exatos são os de cálculos, os das ciências naturais e muitos destes novos conhecimentos contemporâneos acerca de tecnologias e engenharias diversas. Que continue dando a César o que é de César. A linguagem é humana e, como tal, não se encerra facilmente em simples definições exatas e muito menos em predicados totalizadores.

Referências

BURKE, Peter. PORTER, Roy (org.). Linguagem, Indivíduo e Sociedade. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.

SACKS, Oliver. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. In: MOTTA, Laura Teixeira (Trad.); GHISI, Marcilene Aparecida Alberton (Digit.) e MORESCO, Rosangela Maria (Arranj.). O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras histórias clínicas. 7. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Cap.1, p.8-16. [Obra digitalizada em 2003].

Links:

• Mágramática – O Teatro Mágico [http://letras.mus.br/o-teatro-magico/1229112/];

• De Gramática e de Linguagem – Mário Quintana [http://palavrastantas.blogspot.com.br/2006/08/de-gramtica-e-de-linguagem.html].

Helder S Rocha
Enviado por Helder S Rocha em 09/07/2012
Reeditado em 10/07/2012
Código do texto: T3768667