O FILTRO DO MESTRE HAMILTON MACHADO

Hamilton Machado (1949-1992) apresentou-se durante toda sua existência como um enigma. Dotado de grande poder de observação e talento para o desenho, que é afinal o registro inicial que fazemos ao olhar o mundo e de nossas impressões vivenciadas, enveredou depois pela pintura, gravura em metal e ilustração, além do ensino de desenho na Escola Fritz Alt da Casa da Cultura de Joinville.

A crítica e o jornalismo tentaram em vários momentos enquadra-lo numa categoria, ora apontando-lhe características de um ilustrador, ora de um artista surrealista ou do realismo fantástico, este primo latino-americano do pensamento onírico. Durante todo o século XX, pela sucessão de escolas e movimentos artísticos criou-se até hoje no público uma necessidade de classificar obras e artistas, filiando-os a uma tradição. Se até a década de 70 havia certa lógica nesse comportamento, hoje pela multiplicidade de formas criativas convivendo de modo válido em um mesmo artista, nota-se que a rigidez de pensamento desapareceu, e o artista é um grande filtro do mundo que o cerca.

Penso ser esse exatamente o caso de Hamilton Machado, um virtuose no desenho, que sem dúvida pelo domínio técnico em que custa crer foi autodidata, encaminhou-se para o surrealismo. O surrealismo definido pelo Prof. Leon Kossovitch, titular de estética da FAU-SP, como o “último refúgio dos acadêmicos”, foi marcado desde sua origem principalmente por Salvador Dali, como exercício pirotécnico na habilidade do traço. Lembremos que o projeto mais geral do surrealismo visava mesclar a vida real com o imaginário, abolir todas as impossibilidades, remontando a Leonardo da Vinci quando este diz para observar manchas nas paredes, e ver o universo ali oculto. O problema é de que o acaso, que deveria nortear a criação acaba por se tornar uma receita, e a ”fabricação” de símbolos algo nada criativo.

No caso de Hamilton as pombas como símbolo da inocência, corujas da sabedoria, maçãs saboreadas como tentações, cavalos como indomável, relógios em chamas pela passagem incontrolável do tempo, constituem-se representações de um mundo de sonho, mas sonhos já conhecidos, e por isso nem ousados nem perturbadores. Só um levantamento completo permitiria ir além das generalizações, mas nos exemplos conhecidos aparecem criações maneiristas pela deformação das imagens, violinos moldados como penteados, gatos ajeitados sobre cabeças, enfim adição de elementos que não modificam o todo. Há exceções, como no bico-de-pena em que a porção superior da cabeça se transforma em estrutura arquitetônica como uma torre, metáfora possível do compartimento de pensamentos. Nessa linguagem surreal inventou paisagens fantásticas formadas por múltiplos elementos que agregados formam retratos, tradição que vem do século XVI com Hieronimus Bosch e Arcimboldo, porém ao criar o “Invisível busto de Lautréamont”, personificação do mal e do sadismo e ícone no surrealismo, não foi além de um jogo de formas, faltando-lhe criar visualmente a imagem de um poeta maldito.

Fruto da década de sessenta a obra de Hamilton traz elementos de Siron Franco, por sua vez influenciado pelo artista mexicano José Luis Cuevas, então grande destaque nas Bienais Internacionais. Aparece assim na arte o Realismo Fantástico, termo criado por Alejo Carpentier, para fazer distinção entre o surrealismo relacionado com a narração dos sonhos e o fantástico, nas substituições simbólicas no mundo real. Essa nova forma foi determinante nos paises latino-americanos pelo escapismo de um lado, e de outro como aprofundamento de uma realidade político-social vivida, da qual somente restaria a denúncia e o convívio político forçado. É assim que surgem os corvos e os bispos, tanto em Siron Franco como em Hamilton, herdeiros diretos de Cuevas. Igualmente de Siron é que aparece nos desenhos de Hamilton um morfema de estilo no rosto, assumindo aspecto de um caramujo, sendo que com outra origem as conchas do caracol e do nautilus aparecem simbolizando talvez movimento de permanência capaz de resistir às tentações, ou, mais provavelmente, tendências ao infinito.

As necessidades normais de sustento levaram Hamilton com sua capacidade em desenho a estar disponível como ilustrador editorial, o que o conduz a uma linguagem estereotipada. No passado falou-se de possíveis influências de João Câmara e Reynaldo Fonseca, e não duvido que Hamilton os conhecesse, mas as afinidades são formais no desenho, não em concepção. João Câmara apresentou tendências surreais próprias da arte fantástica, preocupações com o desenho e até aproximação à ilustração no conteúdo. Como em Hamilton existe acentuação na musculatura próxima a uma estilização do protótipo masculino, mas o sentido é outro. Igualmente Reynaldo Fonseca, com seu desenho sólido, figuras enigmáticas e a meio caminho entre o realismo fantástico e a atmosfera metafísica pela suspensão no tempo, lembram as mulheres de Hamilton. As figuras femininas adoçadas seriam o traço comum, mas em Hamilton o arredondado anatômico é o da ilustração. Existe em Hamilton o conhecimento da anatomia, contudo a repetição é a generalização das formas perfeitas dão a medida entre arte e ilustração – existe um modelo que é o ideal, portanto ilustração de uma ideia proposta ao artista, em que a imagem é codificada e por isso incompleta, voltando-se sobre si mesma no conceito do belo, tão exaurida que tende para o Kitsch.

Na década de 70/80, à sombra da Pop Art., surgem às obras mais importantes de Hamilton, algumas inseridas na “Nova Figuração”. Quando premiado em 1975 na Pan Art. sua proposta é de um desenho solto, com detalhes inseridos em reservas como quadros fotográficos, cor e volume na plenitude em oposição á linha externa. Essa passagem do desenho para a pintura enquadrada, minuciosa, lembra momentos das HQ inglesas, embora nestas o detalhe microscópico da realidade não seja extensão da linha desenhada. Apesar disso, persiste o conceito do ilustrador, na demonstração da habilidade faltando o clima surreal da proposta.

Contudo, há grandes momentos do desenho como no “Planeta Possível”, pela alternância de espaços vazios e preenchidos por figuras reais e surreais, lembrando o clima mágico do mundo do “Yellow Submarine” dos Beatles, onde tudo é possível e as dimensões espaciais desaparecem. Outro trabalho importante do período é a “Carta a Darcy Ribeiro” conjugando domínio da cor, traço e inserção na Pop Art., uma citação, já que reproduz a “Primeira Missa no Brasil” de Victor Meirelles, não se limitando a mostrar o original porque não o substitui, relacionando-o com o presente e indo além. A ação se passa em três momentos, a cena da missa propriamente dita na área superior, o primeiro plano dos indígenas que a assistem na inferior, e ao centro, em linguagem sócio-política do movimento “Nova Objetividade” de 1967, e seqüencial como as HQ a mensagem: armas empunhadas contra os índios (e contra os observadores), na tecnologia militar de dominação dos conquistadores citados pelo sociólogo Darcy Ribeiro.

E qual seria o filtro do Mestre, como ele mesmo se denominava, sua seleção de modelos tão diversos e dos quais pinçou detalhes aqui e ali? A resposta deve ser a mesma que a dada pelo pintor Alberto Giacometti: “O que me interessa em todas as pinturas é a semelhança, quer dizer o que para mim é a semelhança. - aquilo que me faz descobrir um pouco o mundo exterior”. O filtro do mestre é o do olhar, refletir de uma forma generosa sobre o pensamento alheio, sobre aquilo que se deixou de lado, buscar as equivalências e o significado no mundo. A visão do pintor, como nos diz Merleau-Ponty, é o delírio da própria visão, forma bizarra de possessão praticando teoria mágica no ato de ver, olhando aquilo que ali está e que nos pede para ser revelado: a inspiração do artista é o próprio mundo que respira.

Walter de Queiroz Guerreiro

Critico de Arte (ABCA-AICA)

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 30/08/2012
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