O GNOSTICISMO

Quando os teólogos da Igreja Romana transformaram o Cristianismo numa ideologia de massa e vincularam-na á cultura do Império Romano como religião oficial, a maravilhosa doutrina do Mestre de Nazaré deixou de ser uma verdadeira ponte entre o sagrado e profano para se transformar em mais um instrumento ideológico. E assim também aconteceu com o Islamismo, o Judaísmo, o Bramanismo e todas as demais religiões que foram apropriadas pelos governantes e utilizadas como instrumento político de educação e controle das massas. 
Nesse sentido, Jesus também deixou de ser o Cristo, aquele que religaria as almas humanas com o Céu, para se tornar apenas mais um ideólogo. O Jesus do Cristianismo oficial transformou-se em mais um filósofo, contestável e doutrinariamente insatisfatório para os espíritos que buscavam uma realidade divina, original e descontaminada das impurezas das ideologias políticas e raciais, que estão no cerne de todas as religiões.
Assim pensavam os gnósticos e por isso floresceram as teses defendidas por essa escola, como tentativas de recuperar aquele Cristianismo messiânico e mágico que as primeiras comunidades cristãs professaram e que fez a força do novo credo. Surgiram então as diversas teses que procuravam explicar o universo através das mais estranhas e bizarras concepções. Foi assim que nasceu o conjunto de doutrinas místicas que se convencionou chamar-se de Gnose.
A idéia era a de que os filósofos podem ser contestados, os deuses não. A Igreja transformara a mensagem divina, trazida por Jesus, em uma filosofia de vida acomodatícia e materialista, fundamentada em uma doutrina vazia de conteúdo espiritual, cujo único propósito era garantir o poder temporal para os governos que a adotasse e o poder espiritual para os membros do seu clero. Os cristãos, nos primeiros séculos do cristianismo e principalmente depois que se tornou a religião oficial do Império Romano, eram duplamente escravos, pensavam os gnósticos, pois na vida profana eram subjugados pelo estado romano e na vida espiritual serviam a um clero corrupto, arrogante e ganancioso.
Foi contra a massificação da mensagem de Jesus, a sua politização e transformação em instrumento do poder secular que as correntes gnósticas de pensamento se insurgiram. Os gnósticos cristãos dos primeiros séculos queriam preservar a pureza do conhecimento iniciático contido na mensagem cristã. Não acreditavam em nenhuma verdade revelada por um Deus particular e preconceituoso, como lhes parecia ser o Deus do Velho Testamento. A verdade, segundo a sensibilidade que os dominava, estava na própria criação que Deus espalhara sobre o universo e não na mensagem de uma igreja, ou de um grupo em particular.
Destarte, se o Deus do Velho Testamento era assim tão contestável, aquele que essa Igreja anunciava como sendo filho dele não o seria menos, diziam algumas seitas gnósticas. Por isso era preciso desvincular a doutrina de Jesus do Judaísmo tradicional e apresentá-lo sobre uma ótica nova. Dessa forma, o Cristo judeu fundiu-se com as divindades solares das antigas religiões, especialmente egípcia e persa, e dai nasceu um novo Deus, palatável para gregos e romanos que relutavam em abandonar suas antigas deidades para adorar o filho de um carpinteiro que eles mesmos haviam crucificado. Foi assim que o Cristianismo venceu em Roma e se tornou o credo oficial.

O CRISTO GNÓSTICO


Embora a Igreja de Roma jamais tenha reconhecido esse fato, é preciso dizer que o Gnosticismo contribuiu bastante para essa vitória. Não foram os ensinamentos dos apóstolos de Jesus que deram sedimentação ao credo que se instalou em Roma, mas sim a doutrina de Paulo de Tarso, enxertada pelas teses gnósticas, o verdadeiro alicerce da nova crença adotada pelos romanos. O Cristo de Paulo não é mesmo dos apóstolos judeus de Jesus. Esse conflito doutrinário transparece claramente nas crônicas dos Atos dos Apóstolos e nas Cartas Paulinas. O Cristo dos apóstolos não é um “deus”, no sentido que lhe deu Paulo e os gnósticos, mas sim um profeta maior, no mesmo nível de Moisés ou Elias, ou o Maomé dos muçulmanos, filhos de homens que foram escolhidos por Deus para realizar uma missão na terra. E ainda que acreditassem que ele era, de fato, o emblemático Messias, uma espécie de semideus ansiosamente aguardado pelo povo de Israel para redimir sua nação, jamais se cogitou, entre eles, de atribuir ao seu líder o status de uma verdadeira divindade, no mesmo nível de Jeová, o Deus único e universal.
Aliás, para os judeus, a idéia de que Jeová tivesse um filho, de posição hierárquica igual à dele no panteão divino, era uma verdadeira blasfêmia, uma heresia que só podia mesmo ser punida com a morte. Foi essa a principal razão que levou Jesus á cruz, aliada á questão política, que pesou muito na balança, quando se aventou a possibilidade de que Jesus pudesse ser, realmente, o propalado Messias das profecias.
Assim, não passava pela cabeça dos discípulos de Jesus fazer dele um Deus, com estatura paritária ao próprio Jeová, pois este era o Deus universal e único. Uma idéia dessas jamais seria aceitável no universo judeu, e a simples menção dessa possibilidade já constituía blasfêmia das grossas, crime capital, punível com a pena de morte.
Mas essa hierarquia existia no Mitraísmo, pois os discípulos de Mitra fizeram dele uma divindade com posição semelhante á da divindade suprema, Ahura Mazda.
A condição divina de Cristo, encarnado em Jesus, começa a aparecer na obra de Paulo de Tarso e encontra seu maior defensor no gnóstico João, autor do Quarto Evangelho. E a partir daí essa idéia extrapolou para fronteiras que até Paulo e João jamais imaginariam.(1)

O CRISTIANISMO MÍSTICO

Na verdade, o Cristo judeu só foi aceito pelas elites do Império Romano porque ele se identificava com Mitra, a divindade de maior prestígio entre os romanos na época em que Constantino elegeu o Cristianismo como religião oficial do Império. Essa foi uma jogada de mestre do Imperador, que adiou por mais de cem anos a queda do Império Romano no Ocidente e forneceu as bases sobre as quais o Império Romano do Oriente sobreviveria por mais um milênio. A religião mitráica era profundamente mística e agasalhava muitas teses semelhantes áquelas que os gnósticos professavam.  
Da mesma forma que os sacerdotes egípcios e os mestres das religiões orientais, os gnósticos pensavam que o conhecimento do mundo divino só podia ser atingido através de uma adequada iniciação, onde a prática ritualística pudesse ser combinada com fórmulas apropriadas de meditação e invocação da divindade.
Acreditando que a popularização de um conhecimento que só podia ser obtido pela prática iniciática acabava por abastardá-lo, os gnósticos formavam pequenos grupos sectários, e no mais das vezes transmitiam sua doutrina por via oral e sempre através de símbolos. Nisso imitavam as antigas sociedades iniciáticas do Oriente e essa tradição foi transmitida para os hermetistas, que depois deles fundaram seitas iniciáticas para sua conservação e transmissão.  
Os gnósticos não devem ser confundidos com mágicos ou divulgadores de heresias religiosas, embora em suas práticas apelassem constantemente para o pensamento mágico. Seus temas são naturalmente religiosos e não poderiam deixar de ser, dada á própria cultura na qual estavam inseridos. Constituíam, na verdade, grupos de livre pensadores que recusavam qualquer dogma e deduziam seus conhecimentos das grandes leis da natureza. Cultuavam o saber pelo saber, sem temores escatológicos. Pretendiam criar uma ciência do divino, uma teologia mística, cujo objetivo era a descoberta dos caminhos para a salvação do homem através do conhecimento, em oposição ao caminho da Igreja, que era o da fé, absoluta e incontestável, nas interpretações dos seus doutores.
A base da filosofia gnóstica era uma visão unificada do universo, onde tudo estava contido em tudo, o que estava em cima era igual ao que estava em baixo, o que estava dentro igual ao que estava fora. Essa era, segundo acreditavam, a primitiva composição do universo e a ela a sociedade dos homens, como um todo, e o espírito humano, como indivíduo, deviam aspirar.
A função do iniciado − o verdadeiro religioso − passava a ser a descoberta dessas realidades para unificá-las em seu espírito, atingindo assim a definitiva iluminação que constituía, na verdade, a única salvação que o homem poderia almejar. Essa noção teve nos chamados filósofos neoplatônicos os seus mais ferrenhos defensores, mas também encantou os pitagóricos, que nela incorporaram a sutileza das suas concepções matemáticas e geométricas a respeito da estrutura do universo e da atuação das forças divinas na sua formação. É claro que vários doutrinadores eclesiásticos aproveitaram essas idéias para justificarem as suas concepções acerca da natureza de Cristo e da proposta escatológica do Cristianismo para a humanidade. Daí encontrarmos várias seitas dentro da Igreja Católica desenvolvendo doutrinas que agasalhavam as mais estranhas concepções religiosas. Eram tantas e tão bizarras que a Igreja de Roma as censurou, colocando a maioria delas na conta das heresias.  

As FRATERNIDADES GNÓSTICAS (2)

Os gnósticos dos primeiros séculos formavam comunidades calcadas na interação mestre-aprendiz, acreditando que tal prática gerava a energia necessária para alimentar a chama sagrada do conhecimento do divino (gnosis). O conhecimento só podia ser transmitido por iniciação e não por um processo de memorização e dedução. A sabedoria se obtinha por iluminação e não pelo aprendizado acadêmico.
Em função disso, os gnósticos desprezavam o clero secular, que pensava preservar e desenvolver o conhecimento copiando e imitando as obras antigas. Considerando como ”ovelhas perdidas” os membros do clero regular, que para eles eram meros padres, enquanto eles se consideravam “monges”, os gnósticos formaram comunidades iniciáticas que se resguardavam do apelo popular e realizavam interação somente entre os membros iniciados. Nisso integravam a tradição dos Antigos Mistérios, profundamente hostil à popularização dos assuntos sagrados, com o  momento em que viviam, em que a mensagem trazida por Jesus ganhava as ruas e se transformava em ideologia de massas.(3) 
Essa mesma fórmula viria a ser utilizada mais tarde pelos cavaleiros templários, o que, de certa forma, contribuiu para o afastamento deles da Igreja Romana. É possível que a transformação dessa Ordem em sociedade iniciática tenha sido um dos principais motivos da sua condenação. Afinal, a maioria das acusações feitas a eles envolviam teses gnósticas que a Igreja havia repelido e condenado antes como heresias. Abstraindo os motivos políticos e econômicos, que pesaram bastante na balança quando da extinção da Ordem do Templo e da prisão de seus membros, pode-se dizer que os templários foram condenados e tiveram sua organização extinta justamente por agasalhar entre suas práticas algumas idéias consideradas heréticas. Situam-se entre essas práticas o culto à deusa Ísis ( a lua crescente), o culto ao ídolo Baphomet, à serpente Ouroboros, os seus rituais de iniciação e de elevação, que eram claras reminiscências de antigos rituais de fertilidade. Embora o processo movido pela Igreja contra a Ordem dos Templários tenha sido publicado e nele se revele a face francamente herética (na visão católica) dessa Irmandade, o fato é que o verdadeiro caráter dos seus rituais e a natureza da sua filosofia nunca foi de fato revelada, permanescendo, até hoje, um verdadeiro mistério. Mas o que parece indiscutível é que os Cavaleiros do Templo podem ser classificados como verdadeiros gnósticos, tal como seriam os seus suscedâneos mais próximos, os cátaros.(4)
De qualquer forma, em tudo que se refere à Maçonaria, essas informações são de extrema importância quando se trata de conhecer a sua origem e entender a sua filosofia. Ela contém raízes muito profundas na Gnose cristã. E embora a Gnose, como sistema de pensamento, tenha sobrevivido à atividade predadora que contra ela a Igreja tem praticado através dos séculos, foi através da prática maçônica que ela ganhou corpo entre a elite intelectual que se formou após o período cultural conhecido como Renascença. Através da Maçonaria a humanidade conservou também a tradição iniciática da fratria e a noção altamente espiritualizada da utopia e da egrégora. Assim, o pensamento mágico dos gnósticos e a noção corporativista dos antigos clãs se uniram para dar sedimento à estrutura filosófica da Arte Real.

É, pois nesses arquétipos – a noção de um mundo mágico e harmônico que já existiu um dia (a utopia), e na crença de que o pensamento humano pode alcançá-lo através do estudo e da prática virtuosa (o pensamento mágico) − que a Maçonaria, enquanto disciplina espiritualista se alicerça. E é para esse fim que ela congrega seus membros em egrégora(A Loja), buscando na realização desse simbolismo o mesmo resultado que as antigas corporações iniciáticas obtinham em suas práticas rituais.

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Notas:

1. Mitra era o deus preferido das legiões romanas. A esse ver respeito ver o capítulo X desta obra.
[2] As chamadas seitas gnósticas, que na sua grande maioria tinham o carater de verdadeiras Fraternidades.
[3] Ver Sarane Alexandrian- História da Filosofia Oculta, citado.
[4] Sobre os Cavaleiros Templários e sua relação com a Maçonaria veja-se a nossa obra “Mestres do Universo” já citada. Sobre os cátaros e a influência da Gnose na doutrina agasalhada pela tradição maçônica, veja-se o nosso trabalho “Conhecendo a Arte Real, publicado pela Ed. Madras, São Paulo, 2007


João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 10/09/2012
Reeditado em 10/09/2012
Código do texto: T3874910
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