O OUTRAMENTO E “A FENDA” PELA QUAL SE ATRAVESSAM AS EXPERIMENTAÇÕES LITERÁRIAS NO LIVRO “A HORA DA ESTRELA ” DE CLARICE LISPECTOR

“O outro do eu, no discurso, é outro discurso”

(Segolin)

“Eu poder ser tu sem deixar de ser eu”

Foi Fernando Pessoa quem inventou o verbo OUTRAR-SE, bem como o substantivo OUTRAGEM. A heteronímia de Pessoa revela de maneira extremada a despersonalização, o fenômeno de outrar-se. Segundo a Infopédia, a definição para o verbete outrar-se é:

Fenómeno (sic) de fazer-se outro, de adotar várias personalidades, dando-lhes vida e independência.

Outrar-se pode ser, também, definido, como deixar-se contagiar por algo de sentido novo e diferente (por exposição a culturas, climas, linguagens, pensamentos...), deixando-se transformar num ser novo, distinto, que veste uma nova personalidade ou forma de estar no mundo.

Logo, o outramento na literatura é um devir, um vir a ser, no qual autor e obra não se confundem; é um desfazimento, um desprendimento do autor ao jogar-se na obra. Como diz Foucault, citado por Nelson Oliveira, “O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na obra. Jogada, não expressa; jogada, não realizada. Por isso, o autor nada pode fazer além de continuar, na obra, não realizado e não dito”. O outramento é o trampolim para o “possível” na literatura. E, por sua vez, o possível é “a fenda pela qual se atravessam as experimentações literárias”.

Podemos então, após entender o sentido do vocábulo outramento, partir à árdua tarefa de definir, na obra A hora da estrela, o outrar-se de Clarice Lispector, assim como a “fenda” pela qual se atravessaram as suas experimentações literárias, os seus “possíveis”.

Tomemos como ponto de partida a dedicatória do “autor”. “Pois que dedico esta coisa ai ao antigo Schumann e a sua doce Clara que já são hoje ossos, ai de nós. Dedico-me a cor rubra muito escarlate como meu sangue de homem em plena idade e portanto dedico-me ao meu sangue”.

Percebe-se, pois, que já existe um outrar-se de Lispector quando se não considera mais mulher ao jogar-se na obra. Na obra é “homem em plena idade”. Mas até mesmo esse homem em plena idade (Rodrigo S. M.) não é ser uno, indivisível. Ele é um “Eu poder ser tu sem deixar de ser eu”. Observamos isso quando diz ainda na dedicatória:

[...] - a todos esses que em mim atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de eu neste instante explodir em: eu. Esse eu que é vós pois não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter de pé,[...].

“Esse eu que é vós” de Rodrigo S.M. mostra-nos que ele também é perpassado por outros seres, por outros discursos, por outras leituras e até mesmo por outros espíritos quando diz “dedico-me sobre tudo aos gnomos, anões, sílfides e ninfas que me habitam”. Há, pode-se dizer, em Rodrigo S. M. o outramento do outramento. Vejamos nós! “Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido”. Temos ai um mim do Outro em Outro. É exatamente aí que encontramos a “fenda” que Nilson Oliveira leciona.

Faz-se importante destacar que o objetivo do presente trabalho não é fazer um resumo da obra. O objetivo é unicamente, ainda que não exaustivo, pois seria de grande prepotência se assim o fosse, é fisgar excertos que, para nós, impressionaram os nossos estados de espírito. Excertos em que o outramento torna-se evidente. Excertos que vislumbramos a luz do “impossível literário”, que perpassa pela “fenda” das experimentações.

Nilson Oliveira diz que as experimentações literárias que passam pela fenda é o não se tratar “de incorrer nas malhas do já pensado”; é a invenção; é o novo; é o inédito; é o inesperado. Temos tudo isso já nos treze títulos da obra. Entendemos que são todos títulos e não treze possibilidades de título. O Outro de Clarice tem poder de criação, ele é o criador, por isso diz “Se esta história não existe, passará a existir”. Temos aí o “possível” possibilitando “potência” “para erigir suas investidas”. Os possíveis da literatura dão-se por meio da Palavra; não palavra qualquer, muito menos a palavra de um qualquer, mas sim a Palavra criadora, aquela que tem poder de fazer existir mesmo aquilo que não existe; aquela que tem poder de dar vida ao inexistente. “Se a história não existe, passará a existir”. E ponto final.

Encontramos outra pista do outramento na fala do narrador ao dizer “Sem falar que eu menino me criei no Nordeste”. Mais a frente ele se identifica, mostra aquilo que mais nos particulariza: o nome. Ele se chama Rodrigo S. M. Sabemos que há vários Rodrigo, vários José, várias Maria, várias Joana, no entanto ninguém é igual a ninguém; cada qual é cada qual. Assim, o Rodrigo, criador de A hora da estrela, é um, mas que está em todos, por isso diz “que cada um se reconheça em si mesmo porque todos nós somos um”.

O Outro de Clarice tem vida própria, tem necessidades próprias, tem anseio, tem desejos. Tem desejo de narrar. Narrar e não imitar. Narrar e não inventar é o seu desejo. Daí ele dizer “O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito. Então eu grito”.

As palavras que lhe vêm, as ideias que lhe brotam e as informações que lhe chegam, tudo isso vem de si para si mesmo. Eis a pista: “o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria.” Ora quem bem conhece o trabalho de carpintaria sabe que é um trabalho paciente, duro, árduo, no entanto artístico. Assim é o trabalho do Outro em Lispector.

O Outro em Clarice não é “um intelectual, escreve com o corpo”. O intelecto, embora inegavelmente existente, não é substantivo palpável, visível, não tem cheiro, não tem sabor, não tem tato (é lógico que estamos falando de maneira literal). E o corpo?! Esse nós podemos tocar e ser tocado por ele. Esse nós podemos ver, podemos cheirar o seu cheiro, podemos saborear o seu sabor. É com o corpo que expressamos os nossos desejos, nossas alegrias e tristezas. É com o corpo que amamos, que nos excitamos e gozamos a vida. Daí que o Outro, no “corpo”, parece ter uma “quedinha” pela sua criatura, Macabéa, ao dizer:

"Macabéa, esqueci de dizer, tinha uma infelicidade: era sensual. Como é que num corpo cariado como o dela cabia tanta lascívia, sem que ela soubesse que tinha? Mistério".

[...]

"Penso no sexo de Macabéa, miúdo mas inesperadamente coberto de grossos e abundantes pelos negros – sexo era única marca veemente de sua existência".

"Ela nada pedia mas seu sexo exigia, como um nascido girassol num túmulo".

Encontramos no outramento uma transgressão. Não transgressão de normas humanas, mas uma transgressão dos próprios limites do narrador. Ele próprio a reconhece: “Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente”. Ele confessa nessas palavras que a própria história está além de si mesmo.

Há uma espécie de possessão espiritual, na qual a criatura se apossa do criador. Não uma posse só do corpo, mas uma posse do corpo e espírito do narrador: “É. Parece que estou mudando o modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela”.

Temos nessa fala do narrador o que ensina Nilson Oliveira: “[...]. para um escritor, o movimento definitivo para alcançar a obra consiste no apagamento daquele que escreve, num árduo trabalho para fora da identidade, numa espécie de outramento, ou seja, uma experiência que o Eu torna-se Outro”.

O narrador de a A hora da estrela por vezes indaga-se porque escreve. E nas suas lucubrações chega a seguinte conclusão:

Porque escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”, como se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”.

O que seria essa ‘força maior’ ou ‘força de lei’? Seria porque o seu corpo e o seu espírito está imbuído do corpo e do espírito de sua criatura? Seria o caso de a criatura tornar-se criadora, e assim tomar às rédeas do criador, fazendo com que este não tenha mais domínio sobre a obra e sobre narrativa?

Talvez, por isso, há certo tom de aflição na voz do narrador ao dizer:

"Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados". [...]

"Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais".

[...]

""A ação desta história terá com resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto".

[...]. "Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. [...]. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa".

[...]. "Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias".

Giorgio Agamben, citado por Nilson Oliveira em suas lições em “A literatura e os possíveis da escrita literária”, diz que “Na escrita, não se trata da manifestação ou exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não pára de desaparecer”.

O Outro de Clarice Lispector, nas citações acima, mostra exatamente essa não manifestação ou exaltação da escrita literária; mostra que não está amarrado em uma linguagem que já foi apropriada por todos; há um total desaparecimento da autora Clarice Lispector.

Há momentos em que já se confundem o criador e a criatura, Rodrigo S. M e Macabéa. É uma relação simbiótica.

"Vejo a nordestina se olhando no espelho e – um rufar de tambor – no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos".

[...]. "Voltarei algum dia à minha vida anterior? Duvido muito".

[...]. "Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus".

[...]. "Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência".

Agambem diz que “escrevemos para nos tornarmos impessoais”. Assim, após essas considerações, constatamos que há em toda obra “A hora da estrela” a impessoalidade da autora, Clarice Lispector.

Manoel Barreto
Enviado por Manoel Barreto em 13/11/2013
Código do texto: T4568484
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