O que é arte 2 – Organizando a maçaroca – Paradoxo da regressão ao infinito do sistema de regras.

Gente, vocês entendem inglês? Assistem seriados americanos legendados? É uma experiência interessante. Se você entende um pouco de inglês percebe o esforço da pessoa que escreve as legendas em manter o sentido do texto original. Muitas vezes, porém, a pessoa nem tenta dar sutileza à tradução. Sem contar, é claro, aquelas vezes em que percebemos que quem fez a legenda não entendeu o que realmente a obra estava dizendo, casos em que sai uma tradução literal que não se encaixa em nada à intenção do texto.

Esta situação chama atenção para uma percepção trivial: para entender uma obra temos que estarmos familiarizados às regras que a regem. Para entender as legendas tenho que ser alfabetizado, para entender as falas originais tenho que conhecer o inglês. Repare, qualquer obra é uma maçaroca (uma bolo indistinguível) de informações. Dentre esta maçaroca é possível separar vários grupos de informações, ou seja, é possível uma organização. Cada subgrupo de informações é, por sua vez, uma submaçaroca. Uma delas é a dos sons (ruídos, trilha sonora, falas). Isto se dá através de critérios (ou seja, regras). Toda uma organização é possível ao decompormos mais e mais as submaçarocas. Da subsubmaçaroca das falas podemos encontrar encontrar a as palavras, ou os parágrafos, ou as metáforas, ou as falas sem sentido, ou as falas mal pronunciadas, ou as falas em voz grave... Reparem, as sub maçarocas existem de acordo com o modo com que as organizamos. Se organizamos em termos de entonação da voz do ator encontraremos informações bem diferentes das que encontraríamos caso organizássemos em termos sintaxe. Em outras palavras, a análise de um diretor de atores é bem diferente da de um linguista. Cada um atribui sentido usando um sistema (ou organização) diferente. E a partir da organização é criado/descoberto os sentidos de uma obra.

Só temos acesso a este conteúdo se formos “alfabetizados” nele. Se temos internalizadas as regras a partir das quais todo este conteúdo se ordena. A obra só existe a partir do momento em que a interpretamos. E só temos um entendimento profundo da obra na medida em que estamos familiarizados com as regras que a compõem. O que fica muito claro no exemplo da leitura das legendas ou no entendimento das frases.

Eu sei, eu sei, esta é a hora em que você, minha cara leitora fica se movendo de um lado para o outro e soltando interjeições irritadas pensando, “isto até pode funcionar no caso do texto, mas no caso de arte abstrata?”. Do alto da minha condição de autor me reservarei ao direito de só tratar disso em outro texto, em outra ocasião. Cena para os próximos capítulos ; )

Mas quais regras são necessárias estarem internalizadas para o entendimento de uma obra? Depende da obra, claro. Para uma tirinha de quadrinhos da Mafalda é necessário estar familiarizado com as regras do texto, ser alfabetizado no espanhol ou na língua para o qual o quadrinho foi traduzido. Mas para um entendimento mais afinado ao que o Quino (autor da Mafalda) propõe é necessário também ser alfabetizado na linguagem social (qual o lugar das crianças naquela sociedade, o que significa uma criança dizer aquelas coisas) e também deve ter algum entendimento acerca do contexto histórico da época da guerra fria (sem o qual não é possível entender o humor das piadas). É claro que é possível mesmo um entendimento muito profundo sem dominar totalmente todas as organizações (ou seja, todos os sistemas de regras) necessárias. É possível entender apenas um pouco de espanhol e entender perfeitamente várias piadas. É possível entender pouquíssimo de história e entender muito profundamente o humor de algumas piadas. Em alguns casos é possível se situar pelo contexto, caso em que preenchemos as lacunas ocasionadas pela nossa ignorância com suposições muitas vezes acertadas. As regras necessárias ao entendimento vão muito além daquelas já razoavelmente codificadas (como a leitura e a história).

Os sistemas de regras que usamos para a apreensão de uma obra em alguns casos são razoavelmente codificados (como a alfabetização e o conhecimento histórico). Mas em sua maioria estes sistemas de regras internalizados não são decodificados. Daí uma dificuldade em falar neles – eles nem sequer têm nome! Vamos a um exemplo: para o entendimento de uma tirinha da Mafalda você terá que ser alfabetizado nas regras pictoriais. Quem nunca enxergou e acabou de sofrer cirurgia para deixar de ser cego não terá internalizadas as regras pictoriais, não conseguirá entender o que é cada desenho. Ou seja, não bastam os olhos (hardweare) para enxergarmos, é necessário um sistema de regras para a leitura do mundo (softweare). O ex-cego ao olhar um quadrinho desenhado pelo Quino nem sequer vai entender que naquela mancha (o quadrinho da Mafalda) tem uma menina desenhada. E, pergunto a vocês, naqueles momentos em que o autor diz mais do que pretendia? Como é possível o receptor ter um entendimento diferente do autor? Gente, não sei exatamente como abordarei este assunto. Imagino que será no mesmo momento em que eu falar da arte abstrata. Aguardem, ok?

Até agora eu disse o seguinte: para o entendimento (falo de arte, mas isto se aplica a qualquer forma de conhecimento) é necessário recorrer a um sistema de regras* (um softweare). Mas daí um grande problema: este sistema de regras vai ser interpretado como? Por quem? Gente, por outro sistema de regras. E este segundo sistema de regras? Vai ser interpretado por quem? Por um quarto sistema de regras. Está vendo onde isto vai terminar? Não termina. É o que eu chamo de ‘paradoxo da regressão ao infinito das regras’.

Sempre que encontro meu pai temos longas caminhadas. Em uma delas ele usou este raciocínio (o de que as próprias regras demandam regras) para mostrar que é necessário uma regra inicial. A qual ele chamou de ‘memória rom’. Para quem não sabe a memória rom é a memória de inicialização do computador. É a partir dela que são lidos os programas iniciais que por sua vez lerão os programas que usamos no computador. Incrível e esclarecedora esta analogia, né? Mais incrível ainda é que o David Hume escreveu um livro sobre isto (muito antes da existência dos computadores!). Li Hume há muitos e muitos anos... mas para mim ficou muito claro: apesar dele abordar diversos assuntos o tema central do livro é exatamente este: O paradoxo da regressão ao infinito do sistemas de regras **: para ler um sistema é necessário outro sistema, como é possível o primeiro sistema? Como é possível a primeira aprendizagem? Gustavo Gollo (meu pai), como eu disse encontrou uma elegante solução: a memória rom. E qual foi a solução do David Hume? A solução dele foi bem precisa: nós nascemos com instinto que nos permite a aprendizagem. Instinto é um conceito que cabe perfeitamente. Pois instinto é a programação que nasce com os animais. Perfeito. O que acho mais incrível disto tudo é como David Hume é negligenciado... mas é melhor não falar disto. Não tenho a erudição necessária e fugiria demais do tema.

Gente, o assunto ficou mais ou menos claro? Acho este tema pesado e tive um certo esforço para deixá-lo mais leve. Espero ter conseguido. Não ficou claro? Pode ler novamente, por favor? E agora? Ficou? Você concorda? Descorda? Se concorda: ‘Oba! Consegui!’Descorda? Bem, vou postar este texto em alguns lugares (facebook, recanto das letras, se eu tiver muita força de vontade e pouca vergonha publicarem em vídeo no youtube). Se descordar pode opinar que te faço uma resposta : )

* Quem primeiramente apresentou a analogia entre humanos e computadores foi meu pai, a quem sou muito grato. Foi uma abordagem muito esclarecedora. Embora entendo que quem apresentou a questão foi o David Hume (usando, obviamente, a linguagem do seu tempo – a ele analogia usando computadores era impossível).

** O termo 'paradoxo da regressão ao infinito do sistema de regras' é meu. Você não encontrará em outro lugar, mas acredito ser um termo bem esclarecedor

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 13/12/2013
Reeditado em 16/12/2013
Código do texto: T4610088
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