As contribuições da ficção e da crítica literária para o incremento do discurso histórico

Considerando-se a discussão acerca do valor da ficção como pressuposto para a compreensão do particular visando o universal e da visão da História enquanto disciplina corrompida pelos valores e ideologias dominantes em uma determinada época, os romances Memórias de um sargento de milícias e Inocência merecem especial interesse por descreverem com bastante autenticidade a sociedade urbana e sertaneja, sem a tentativa de doutrinação perniciosa de Macedo ou a idealização de Alencar.

O primeiro contraste explícito entre Memórias de um sargento de milícias e Inocência é o ambiente, que impregna e até mesmo determina o destino das personagens (Manuel Antônio de Almeida retrata, e evidencia, a sociedade urbana “no tempo do rei”, enquanto Taunay utiliza a linguagem coloquial e um estilo simples para desvendar a vida do sertanejo).

Nas Memórias, sob a ótica do narrador onisciente intruso (de acordo com a tipologia de Norman Friedman), a caracterização dos personagens passa a ser secundária, pois o narrador se coloca ‘de fora’ das cenas, descrevendo os acontecimentos enquanto geradores de movimento, como se fosse um diretor assistindo aos ensaios de uma peça teatral, interferindo esporadicamente. A partir dessa visão, o perfil psicológico-moral da personagem é irrelevante ao conjunto, não importando até mesmo os nomes próprios (são conhecidas pelas suas ‘funções’ no ambiente onde se desenrola a ação: o compadre, a comadre, o mestre-de-cerimônias). Sua personagem principal, Leonardo, é uma figura sem qualquer traço marcante de personalidade ou preocupações éticas, continuamente levado pelos acontecimentos, e cuja trajetória ao longo da narrativa sofre as conseqüências das ações dos demais (principalmente do Major Vidigal). É o anti-herói por excelência, figura original e inesquecível justamente por não ter sido dotado de nobres ideais ou sentimentos elevados.

Já Inocência apresenta perfis morais e de conduta marcantes, que aliados aos costumes da gente simples do interior, ajusta com bom gosto a comicidade de algumas cenas com o desenlace trágico do desfecho. Cirino é inexoravelmente arrastado pelos acontecimentos e vê-se frente a frente com forças contra as quais não têm a menor chance de lograr êxito: o código de valores morais vigente nos longínquos sertões. Embora a idealização esteja presente na figura da jovem Inocência, isto não compromete o valor da obra como representação do ambiente a que se propõe descrever.

Por outro lado, considerando que o discurso histórico chega até nós na forma de um texto narrativo, sujeito às modalidades de construção narrativas, pressupõe-se que o seu enredo esteja baseado nas diversas perspectivas de como representar o fato histórico. Isso acontece porque ao elaborar seu relato, o historiador atribui valores diferentes aos elementos da pesquisa, na tentativa de recriar o que ele acredita ser a realidade, constituindo-a de componentes ideológicos indissociáveis do resultado final. Desta forma, a maneira pela qual são dispostos esses elementos na pesquisa, como são catalogados, valorados e priorizados para posterior representação formal implica, necessariamente, na utilização da imaginação e criatividade por parte do historiador. Contrapondo-se a isso, desde o século XIX a disciplina histórica reivindica para si o status de ciência, partindo da premissa de que seu texto narrativo é a única versão possível de representação da realidade. Os historiadores tradicionais, incorrendo no erro de subestimar as possibilidades de interpretação que a linguagem oferece e impondo uma visão limitada dos fatos históricos, esquecem-se que o texto histórico é uma tentativa de representação da realidade e não a própria. Esta posição, alimentada pelas correntes filosóficas da época, cristalizou a visão da história como sendo uma verdade inequívoca e inquestionável e os fatos históricos como fenômenos imutáveis (bastando serem transportados para o nível da narrativa) e compactados (prescindindo de qualquer acréscimo ou subtração).

Levando-se em conta o fato de que a literatura sempre buscou na História subsídios para suas construções ficcionais, atualmente postula-se a contribuição da crítica literária para uma renovação da visão da disciplina histórica, objetivando uma efetiva compreensão dos processos articuladores da narrativa, sob os diversos ângulos possíveis de análise. Seguindo esta tendência, alguns pesquisadores colocam-se na vanguarda de uma visão diferenciada, com o intuito de revitalizar e proporcionar novas perspectivas à pesquisa histórica, destacando a contribuição imaginativa e ideológica do historiador, sua visão de mundo e sua interpretação das disciplinas que contribuem para o esclarecimento do fenômeno histórico: a filosofia, a psicologia, a literatura, etc. Desta forma, a constituição por elementos ideológicos determina que a história não é uma ciência e que o trabalho de recriação da realidade, atribuindo aos elementos valores significativos, é um trabalho, acima de tudo, poético.

Assim, a ficção de Manuel Antônio e Taunay nos levam a reconhecer que os historiadores não deveriam ignorar a força de um narrador que, ora tornando explícitas as informações, ora fazendo com que o leitor as perceba nas entrelinhas, nos mostra o mesmo contexto sob a ótica de um discurso dotado de imaginação e criatividade. Sob este aspecto, a ficção tem a vantagem de assumir a fragilidade de sua visão da realidade e não incorre no erro e na pretensão de querer ser a única versão possível para a descrição dos ambientes e dos tipos humanos no decurso dos tempos.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Ática, 1996. (Série Bom Livro)

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 110-113.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 3. ed. São Paulo: Ática, 1995. 70p. (Série Princípios)

HUNT, Lynn. A nova história cultural. (tradução de Jefferson Luiz Camargo). São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.131-173.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 5 ed. São Paulo: Ática, 1991. 96p. (Série Princípios)

TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Ática, 1996. (Série Bom Livro)

WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. (tradução de José Laurênio de Melo). 2.ed. São Paulo: EDUSP, 1995. p.11-56.

Ruiva da Noite
Enviado por Ruiva da Noite em 06/05/2007
Reeditado em 06/05/2007
Código do texto: T476714
Classificação de conteúdo: seguro