Grande sertão: veredas – Riobaldo e a perversão da angústia

'Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a

gente perverte sempre por arredar mais de

si. Para isso é que o muito se fala?'

Em Grande sertão: veredas existe, além do narrador-protagonista (Riobaldo barranqueiro), um narratário a quem o ex-jagunço conta sua história e que no texto tem a função de registrar a linguagem oral. Assim, o leitor virtual, que recria as significações do texto por ocasião da leitura, recebe uma série de interpelações por parte do narrador que se destinam a um ouvinte ficcional; na verdade, o que lhe chega através da duplicidade de entidades, no âmbito da narrativa, é uma mimese do discurso oral.

Riobaldo, “aquele que é e não é”, passa a existir para o “outro” (leitor/ouvinte) que o constitui, por meio da linguagem. Daí a insistência do narrador em afirmar que a vida – travessia – é perigosa: porque o narrador não consegue reconstituir sua trajetória na íntegra, transfere essa responsabilidade ao ouvinte/leitor.

Entretanto, ao contar-se, o narrador atualiza o passado e confunde-se com o Riobaldo-jagunço, atribuindo maior valor a alguns fatos e “contando pelos altos” outros. Isso acontece porque ao debruçar-se sobre sua trajetória na tentativa de aliviar sua angústia, Riobaldo só transfere ao leitor suas dúvidas e incertezas com relação ao passado. Assim, se viver é muito perigoso, narrar é muito difícil e, por extensão, ler é muito complicado; porque na vida, o homem se transforma, o texto reflete esta mutação:

“Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (p. 60)

O narrador é um indivíduo consciente de sua condição de suposta inferioridade - “Sou um homem ignorante. Gosto de ser. Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida?” (p. 289) – para desta forma dialogar com um leitor ideal que, segundo ele próprio afirma, é culto, urbano, “doutor”.

Entretanto o narrador fala com o homem civilizado sem corromper-se ou ceder à linguagem dos doutores; ele se afirma como personagem universal ultrapassando seu próprio território e com suas próprias armas. Além disso, Riobaldo inventa sua linguagem (palavras como jan-dla-foz – p. 531; aflêima – p. 466; té-retê-retém – p. 22, são apenas alguns exemplos) e desta forma liberta-se dos códigos restritos do sertão.

Mas apesar de sua aparente modéstia, o ex-jagunço, contrariamente à personagem de Fabiano de Vidas secas que não consegue expressar-se e por isso não existe enquanto indivíduo a partir da defesa de Zé Bebelo por ocasião do julgamento, faz seu discurso pessoal e revela-se um ser com valores e opiniões próprias; é o próprio Diadorim que mais tarde chama a atenção de Riobaldo para o fato deste poder assumir a chefia do bando e pôr têrmo às lutas, devido principalmente à sua desenvoltura:

“Riobaldo, põe tento no que estou pedindo: tu fica! E tem o que eu ainda não te disse, mas que, de uns tempos, é meu pressentir: que você pode – mas encobre; que, quando você mesmo quiser calcar firme as estribeiras, a guerra varia de figura...” (p. 350)

A vida de Riobaldo – o seu vagar pelo sertão em companhia de Diadorim, as dificuldades e angústias resultantes desse tempo - tem sua representação simbólica na travessia do Rio São Francisco na companhia do Menino. Ali Diadorim resume, em poucas palavras, os tormentos advindos das andanças do futuro jagunço, numa espécie de premonição: “Carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem” (P.101).

No futuro, já adultos, Diadorim acompanharia Riobaldo na travessia do sertão, este então já chefiando o bando de jagunços. O espaço social sertanejo, que é o ponto de partida e de chegada da personagem Riobaldo (logo, de sua travessia), é o local onde acontece a transformação do eu para o nós; onde chega-se à universalização através da individuação minuciosa e transcendente.

A busca de reconciliação de Riobaldo com seu passado traz muitas reflexões ao leitor, mas talvez a mais importante de todas seja a capacidade que a linguagem tem de constituir o indivíduo, de conferir-lhe uma identidade e um lugar no espaço social, pois segundo o narrador aquilo que não é dito, nomeado, não existe, não aconteceu, como no momento em que se defrontou com o corpo sem vida de Diadorim: “Não escrevo, não falo! – Para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...” (p. 559).

Para configurar a vida no sertão, Guimarães Rosa serve-se de uma consciência em ação – ou um narrador em reflexão. O sertão é mutação, é algo que não pode ser definido, porque é um estado de alma de seus habitantes; é um estar-se sertão que transcende o tempo e o espaço; apresentado como indefinível, local incerto, mutante – travessia; assim como o ser humano:

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.” (p. 21)

Riobaldo-narrador é míope em relação a sua travessia; sua dificuldade em pactuar com os detalhes, o durante a travessia custou a vida de Diadorim, razão da sua culpa

“Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando foi que minha culpa começou? O senhor por ora mal me entende, se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível.” (p. 131)

Este é um dos fatores que despertam no leitor um grande prazer estético: o leitor é convidado a empreender a aventura de reconstrução do texto, a preencher os seus vazios que são, em última análise, os vazios existenciais de Riobaldo: “Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada” (p. 33).

O narrador, perante o ouvinte (narratário), coloca-se numa posição de quem nada sabe e, assim, abala todas as certezas; já que não existe um único discurso para a verdade, interpõe-se o diabo como o símbolo da dúvida. Essas incertezas circunscrevem-se, basicamente, à concretização ou não do pacto e a conseqüente existência do diabo - motivo de transformação do jagunço em crente, devoto. Mostrando-se bastante supersticioso ao longo da narrativa, Riobaldo acredita ter sido o suposto pacto com o diabo, que teve lugar nas Veredas-Mortas, a causa da morte de Diadorim:

“Aonde ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um lugar só: às Veredas-Mortas... De volta, de volta. Como se, tudo revendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não tinha tido, repor Diadorim em vida?” (P. 561, grifo do autor)

Essa é uma das razões pelas quais o narrador de Grande sertão: veredas difere do narrador de Proust: pelo fato de que o segundo narra porque é despertado pela memória afetiva das sensações, enquanto o primeiro quer libertar-se da culpa, da angústia em relação à sua dificuldade em perceber os acontecimentos por inteiro e buscando isto através da reflexão sobre o passado

“Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!” (p. 93)

Por tudo isso, segundo Sebastião Trogo, a linguagem tem o poder de neutralizar um conteúdo angustiante pelo seu poder de perverter (significando expurgo, extravasamento de sentimentos reprimidos que resulta em alteração, transformação desses sentimentos) o sentido da angústia. Essa perversão acontece porque enquanto se expressa, a consciência está alienada de si mesma, é uma consciência em ação. A angústia refletida por Riobaldo, seu sentimento de culpa no que se refere à morte de Diadorim, passa a ser consciente, pois transformada pela linguagem; é a crença no poder terapêutico da palavra que o narrador manifesta.

BIBLIOGRAFIA

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 33.ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 5.ed. São Paulo: Ática, 1991. (Série Princípios).

MIKETEN, Antônio Roberval. Travessia de “Grande sertão: veredas”. 2.ed. Brasília: Thesaurus, 1982.

Nonada: Letras em revista. UE / Porto Alegre / Faculdade Ritter dos Reis. Porto Alegre/RS, 1997, Nº 1, ago-dez/97.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 16.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

Travessia: Guimarães Rosa. Organizada por Walter Carlos Costa. Nº 15, 2º sem/87. Florianópolis-SC, UFSC, 1987. v.7.

Ruiva da Noite
Enviado por Ruiva da Noite em 06/05/2007
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