Perdas das referências pessoais: preocupação atual três:

Será que o homem perdeu a confiança nos seus sentimentos como referência de direção para sua própria vida?

Perdeu mesmo esse senso ou será que é uma miopidez minha diante daquilo que não posso compreender e, por isso entendo dessa maneira e me ponho a generalizar?

Constantemente ouço saberes circulando através dos meios de comunicação ou das próprias pessoas que denotam a existência de uma incerteza quanto ao que cada um pode fazer com sua vida para que ela seja gostosa de ser vivida.

Muitas vezes, atualmente, o bom de viver passa a ser medido através de dispositivos que não são vitais, tais como, o lazer, significando o quanto o indivíduo saiu, passeou, foi ao cinema, ao teatro, ao barzinho, jantar fora... E, às vezes, visitar e receber vistas e, raramente, muito raramente, quase nunca, ficar a sós consigo mesmo.

Ler um livro, cozinhar a própria comida ou a comida de quem se ama, cuidar de si, da própria casa, conversar sobre esses temas, com espaço na conversa para as contradições, as teimas, as discordâncias sobre os assuntos Deus me livre! Isso é desrespeito a individualidade e vira briga... Que para não brigar as pessoas próximas se abstêm de conversar e matam as relações grupais.

Ficar consigo mesmo, ouvindo as vozes vindas do próprio interior, somente se elas forem vozes nas condições que se deseja ouvir. Se o corpo demonstra seus sons e tons não se tem a capacidade de com eles conviver. Na convivência com o próprio corpo ele precisa ser dócil e para isso cada pequena dor corresponde a uma pílula, cada oscilação emocional imediatamente um tranquilizante, cada sentimento de fome precisa ser imediatamente substituído por comida e cada mínimo cansaço imediatamente um descanso precisa corresponder. Como conviver com um corpo vitalizado se dele queremos o silêncio de um corpo morto? Nesse caso, a relação consigo mesmo, se não está morta, porque os sintomas gritam e demandam drogas e mais drogas, estão inviabilizadas por acontecerem por si mesmo e independente das nossas necessidades fictícias. Dessa inviabilidade nascem às necessidades dos diferentes especialistas com seus tratamentos especializados e o mercado ganha.

Ensinar o dever a uma criança, Jesus! É um terror. Os choromingos e resmungos frutos da imaturidade infantil que o adulto deveria enfrentar com paciência em forma de psiu... Parou! Presta atenção! São analisados através da lógica e substantivados apressadamente como malcriação, de um modo que a criança também é definida nos moldes, “ele é fogo, não aceita o que a gente fala, tem resposta para tudo... A criança é vista como definitiva e é substantivada de modo que serve para se contratar um técnico que cuida não mais dela – a criança, mas daquele assunto que a criança passa a ser.

Nesses termos, quem vai cuidar da criança, se o técnico é uma autoridade técnica e não uma autoridade de afeto – pai, mãe, responsável e, por isso só vai tratar com ela (a criança) até aonde ela, na sua pertinente imaturidade permita. Quem vai estar com ela para que ela se esforce e até se force para superar o estado de imaturidade em que se encontra e que o faz apresentar as resistências em forma de choromingos e resmungos?

Assim, não há uma autoridade de afeto que se atenha a confrontar a sua maturidade com a imaturidade do seu infanto ou púbere. Quem o há de fazer? – as relações de cuidados estão mortas. Dessa morte nascem às necessidades “supernanes” e o mercado ganha.

A despeito do muito que nos é negado pelo sistema para termos harmonia no nosso viver e do muito que ele nos inculca como necessidades para uma vida sentida como suficientemente boa - feliz, a avaliação do que seria essa vida boa passa a ser uma questão de demanda por coisas, objetos e práticas que é para além do consumo entendido aqui como criticado, não sem razão, velho consumismo, uma questão de agenda das necessidades individuais, agora realizadas de fora para dentro, o que, na maioria das vezes, só faz inflacionar essa agenda para mais demandarmos.

Se as práticas necessárias a essas experiências cotidianas estão dificultadas dessa maneira o que dizer da nossa disponibilidade para conviver com questões existenciais amplas, tais como a compreensão da vida e da morte? No caso da doença nos tratamos não mais para restabelecer ou melhorar a saúde, mas para evitar a morte. Esta é um tema proibido. E, se temos acesso a toda tecnologia farmacológica não hesitamos em usá-la, indefinidamente, em alguém da nossa convivência, mesmo que dela pessoa somente um subcorpo pela decomposição decorrente de longos tempos atrelada em modernos aparelhos e sob o efeito de potentes drogas.

Diz-se do ser humano, que ele é sensível, que na evolução biológica chegaram ao estágio mais elevado, a matéria viva consciente. Essa matéria viva consciente rendeu muitos benefícios a uma vida de qualidade, porém nas condições valorativas atuais predomina um acordo tácito, expresso mais ou menos assim: eu sou uma pessoa, você é outra e convivemos até aonde cada um suporte a relação sem a presença de conflitos a serem mutuamente resolvido. Quando a relação chega a esse momento ela encolhe e se individualiza, de modo que cada um fique com o seu conflito, desde que seja o atendimento de uma satisfação sem medida, tal qual é a comida em excesso, o álcool, as drogas lícitas ou ilícitas e etc.

Nessas condições existenciais, como ter uma existência plena, onde as relações sejam completas, porque comportam o que de bom e ruim há nelas e para que a partir dessa experiência seja construído um feeling capaz de colocar as energias a disposição das resoluções dos conflitos humanos, que muitas vezes são para desmontar o velho e criar o novo?

Como o indivíduo poderá se autorregular, abrindo espaço para um sentir pleno das emoções humanas, de modo a não sentir-se somente resignado, conformado ou submetido, mas amadurecido, ou seja, com “capacidade de retardar prazer” para ao abrir mão do gozo imediato, intenso, porque imaturo e ensejar, realmente, o prazer, que demora, mas quando vem, inclui o gozo – orgasmo da experiência, seja ela qual for, evita a dor e garante a continuidade prazerosa do sentir que fez “bem feito” e por isso é auto-afirmativo do indivíduo e realizador da experiência do Eu.

Humana e portadora dos mesmos devires dos meus semelhantes, intuitivamente, sinto que em busca dessa falsa plenitude através do número exorbitante de ineficazes recompensas, na qual não há espaço para as pequenas mazelas cotidianas, criaram-se para nós humanos mazelas maiores, que não são possíveis de explicações somente político-sociais, mas também pelas nossas contradições que, às vezes não nos deixam construir uma existência feliz, mesmo que determinadas por nossas próprias escolham.

Assim, com perguntas para as quais não se encontra respostas, definitivas a saída que vejo é nos perguntar sobre essas e outras questões no sentido de atentarmos, especialmente, para o que estamos fazendo para não reforçarmos a corrente de “anomia”, na qual vivemos sem perceber as nossas próprias vivências, enganada por uma vida cômoda e preenchida por coisas que não reforçam o viver nem o vivente. Vida de gozo, mas não de prazer – anti-vida.

Francisca de Assis Rocha Alves
Enviado por Francisca de Assis Rocha Alves em 04/06/2014
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