HASTA LA VISTA BABY (apud Arnold Schwaznegger, em “O exterminador do futuro”)

Papel ingrato o do historiador e a do critico de arte, ao se obrigar a emitir juízos de valor sobre fatos recém acontecidos, ou de obras coetâneas, envolto nas paixões de momento e no turbilhão dos acontecimentos, sem o distanciamento no tempo que permite decantar a verdade, avaliar a autenticidade dos fatos, e na arte, a validade do objeto artístico.

O crítico de arte tem a função mediadora entre o produtor da obra e o fruidor, ou seja, entre o artista e o público, papel necessário de ser exercido quando se pretende que a obra de arte seja acessível ao maior número possível de pessoas, e que para a compreensão na arte contemporânea só se torna possível ao se decodificar a representação artística.

Ao realizar a crítica de arte, e por extensão inscrever artista e obra dentro da história da arte, o crítico deve se certificar da autenticidade da verdade artística, autenticidade que na obra de arte significa não-repetição, uma vez que a repetição é a interrupção do processo contínuo da Arte, condição sine qua non para que a realização humana se inscreva no universo artístico, aquele caráter de unicidade no pensamento criativo.

Analisei em 1994 a nova produção de Antonio Mir, que se utilizando de linguagem pós-modernista, prenunciava a recuperação da “pintura-pintura” em Santa Catarina. Naquela ocasião, baseando-me em cuidadosa análise, até mesmo com o recurso da projeção ampliada de fotografias a fim de determinar a execução técnica, encontrei na mostra então realizada na Galícia, a esperança de um artista que rompia as amarras artesanais que o prendiam à sua própria obra. Conhecia então as opiniões formadas a respeito do artista e de sua obra, do caráter de indefinição, da constante experimentação em trilhar novos caminhos que se resumem numa inquietação existencial, que bem analisada constitui a mola impulsora do verdadeiro artista.

Em 1995 ao inaugurar o painel “As quatro estações” na CEVAL, constatei a originalidade de sua criação, trabalhando um tema recorrente em sua obra, a janela, de profundo significado psicológico. A síntese então realizada pelo artista, indo de encontro à vocação da empresa, foi realizada com extrema elegância, em um painel à altura dos melhores artistas brasileiros.

Na exposição de 1996, proposta como consagração de trinta anos de carreira, veio a decepção. Concebida como mega-exposição revelou-se de uma total irregularidade devido principalmente ao caráter do artista, que sabendo de antemão do compromisso assumido apresentou apenas ¼ das telas terminadas, executando as demais em dez dias. Reside aí o grande problema de Mir, como de muitos artistas, a falta de reflexão na concepção da obra, a habilidade no traço fácil que leva à negligência.

Ao se analisar o conjunto da exposição percebe-se a repetição nas soluções plásticas, a tentativa de iludir o público e a crítica pelo artifício rasteiro. Executa cinco marinhas e muda apenas a posição do barco, da direita para a esquerda e vice-versa. Repete-se nas composições, vício, aliás, de longa data, centralizando o motivo num equilíbrio frontal fácil, opõe cores primárias complementares em campos contíguos, utiliza-se de matéria espessa como sensação tátil, de fácil apreensão psicológica pela voluptuosidade sensorial, em vez de se constituir em desafio pela dimensão agregada em profundidade.

O caráter experimental do material usado, tinta de uso industrial para realização de demarcação de rodovias e faixas de trânsito se revelou inadequado para execuções de obras, que se presumem duradouras. As rachaduras de contração do material, a possível inadequação entre índices de contração da madeira, preparação de fundo e superfície mostram que, apesar do brilho saturado que agrada ao artista e da possibilidade de trabalho com o material que permite os relevos, traz em si problemas técnicos que foram desconsiderados.

Mir sente-se hoje injustiçado pela falta de reconhecimento museológico e da crítica, afastando-se inclusive das galerias. Existem nisso delírios de grandeza com acentuada perda do juízo da realidade, aproximando-se até de delírios paranóicos persecutórios. Ora, esse reconhecimento inexistente só seria possível se em sua carreira houvesse exposições em grandes galerias, museus e premiações de peso, que trariam inevitavelmente os benefícios da crítica, coisa que não sucedeu.

Ao comparar o sucesso conseguido na Espanha, em suas palavras, obtido pela pintura “honesta e verdadeira”, omite o tráfico de influências lá realizado, a apresentação a um dos homens fortes do regime franquista e dos mais poderosos na Galícia. Esse contato abriu-lhe as portas das embaixadas, começando uma ronda de exposições que almeja atingir, no jargão diplomático, o circuito Elizabeth Arden (o filé das embaixadas: Paris, Londres, Washington), e, quem sabe New York.

O painel realizado para a Embaixada da Espanha em Brasília é um exemplo dessa falta de seriedade e gosto pelo dinheiro fácil, obra de caráter simplório que funde na composição as cores verde-amarelo da bandeira brasileira com as cores amarelo-vermelho da espanhola. Para introduzir um elemento dinâmico opõe pequenos triângulos que induzem a visão da esquerda para a direita e de cima para baixo, realizando a leitura da obra, Ao centro, como de costume, a flor repousa numa folha-toalha rendada, qual centro de mesa pequeno burguês.

Apresenta-se agora com a exposição “Mediterrânea 3”, em que a obra de chamada é um peixe sobre toalha de mesa. Belas cores, boa composição, confronto cubista na concepção do espaço, algo que agrada à primeira vista. Mas seria essa a pintura verdadeira, o pós-modernismo à beira do ano 2000? Parece-me triste se for verdade, pelo decorativismo fácil, pela falta de questionamento plástico, numa solução simples, próxima ao universo infantil. Talvez em Miami as cores alegres e a proposta light agradem ao público, assim como para a maioria dos espanhóis congelados pelo academismo dos anos de chumbo.

Falta-lhe o enigmático que é apanágio da obra moderna, a quebra dos códigos de representação, a recusa à imagem consagrada. Mais ainda, falta-lhe o suor no esforço de criação, sem o qual não existe arte.

Para Mir só existem dois caminhos possíveis, o retiro para um mosteiro em Lhasa no Tibete, refletindo sobre os caminhos e descaminhos do artista e suas dificuldades neste vale de lágrimas, ou o aplauso no país de origem, onde se aprecia a pintura “verdadeira”.

Walter de Queiroz Guerreiro

Historiador e Crítico de Arte (ABCA/AICA).

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 24/06/2014
Código do texto: T4856316
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.