US & B Trem das Américas
 
Capítulo I

O Trem

— Vou parar o seu trem! — Sentenciou Komal, com voz grave e pausada.
As palavras do terrorista ainda ecoavam nos alto-falantes dos Centros de Controle Remoto do Trem das Américas, em São Paulo e Nova York, quando o alerta de míssil foi emitido pelo operador do Sistema de Radares da Defesa Aérea Norte-Americana. Todos os olhares convergiram para os telões que mostravam belas imagens da composição, em tempo real, percorrendo vales e montanhas no território de Honduras, na América Central, indiferente às tormentas que se anunciavam.
— São dois objetos — completou o operador.
— Qual o tempo estimado para o impacto? — questionou Robert, o Chefe de Operações do terminal americano.
— Pouco! Os artefatos entraram na área de cobertura dos radares pelo Caribe e os computadores indicam impactos simultâneos, em quatro minutos.
— É suficiente para serem destruídos pela Defesa Antimíssil? — perguntou o americano.
— Impossível!… Nossas bases estão muito distantes e esse poder de fogo não foi considerado pelo Comando da Defesa. Não há tempo! — respondeu o homem.
***
O Trem, em sua viagem inaugural, levando autoridades e convidados, já ultrapassara a região de Tegucigalpa e seguia pela Cordilheira de Celaque, quase na fronteira com a Guatemala. O terreno acidentado da América Central exigiu do projeto a construção de vários túneis e elevados. No momento do alerta de míssil a composição transpunha uma cadeia de montanhas para, em seguida, chegar a um extenso vale.
A escolha do local de ataque demonstrava que os terroristas conheciam o traçado dos trilhos e sabiam exatamente onde o Trem estaria no momento do impacto.
Um artefato teleguiado para atingir um alvo em movimento, com velocidade e direção variáveis, tem seu curso reajustado permanentemente pelo próprio sistema de navegação. Entretanto, isso só pode ser feito se os movimentos do alvo forem conhecidos. Túneis e montanhas podem prejudicar o funcionamento desses equipamentos. Os impactos foram calculados para acontecerem no vale onde, em campo aberto, a composição estaria vulnerável.
***
A informação do ataque chegou ao Trem ao mesmo tempo, pelo Serviço de Inteligência, diretamente à segurança das autoridades e, pela comunicação interna, ao comandante da composição, causando muita apreensão. O reduzido espaço de tempo entre o alerta de ataque e a previsão dos impactos não dava margem à opção de esvaziamento do trem, considerando a velocidade de cruzeiro, o tempo de frenagem e a dificuldade imposta pelo terreno, demasiadamente acidentado. Uma tentativa dessas colocaria autoridades e tripulantes em risco ainda maior. Entretanto, algo teria de ser feito.
O Comandante informou aos passageiros e deu ordem aos tripulantes. Pânico e descontrole, nesse momento, só atrapalhariam as ações de emergência que teriam de ser implementadas. A serenidade do homem foi fator preponderante para manter a ordem. Todos foram instruídos para se dirigirem às suas cabines, fecha-las e fazerem uso dos kits de segurança disponíveis no compartimento individual de bagagem.
Logo iniciou-se uma movimentação frenética. Em instantes corredores e ambientes de uso coletivo foram esvaziados, autoridades e convidados acomodados em suas poltronas e, ao toque de um botão, iniciou-se o Sistema de Proteção Contra Impactos que inflou os air bags das poltronas, tudo acompanhado e orientado com eficiência pela tripulação.
***
— Tem alguma sugestão, Ramiro? — perguntou Robert ao Chefe de Operações do terminal brasileiro.
— Vamos reduzir a velocidade do trem — respondeu o Controlador de São Paulo.
— O que? Está maluco?
— Em quatro minutos, na velocidade atual, a composição vai estar em um vale, totalmente desprotegida. Antes do vale há um longo túnel. Vamos reduzir e parar lá!
O túnel a que o brasileiro se referia estava a poucos quilômetros do local onde a composição se encontrava. Entretanto, para atingi-lo o comboio teria de passar, ainda, por um trecho bastante sinuoso, entre paredões escarpados. O que era um dos fatores restritivos ao esvaziamento do trem, tornava-se um escudo natural a protegê-lo.
Uma precisa manobra de redução da velocidade foi iniciada. No limite do tempo estimado, o último vagão desapareceu no interior da montanha e, no instante seguinte, o primeiro míssil atingiu a entrada do túnel. A explosão causou um grande deslocamento de ar, precedido por uma imensa bola de fogo que percorreu os trilhos, indo se chocar com o Trem que acabara de parar. Com o impacto a composição oscilou, mas resistiu sem maiores danos. O mesmo não ocorreu com os trilhos. Os equipamentos eletroeletrônicos, em sua parte externa, sofreram avarias severas e as rochas que despencaram da encosta fecharam completamente a boca do túnel. No momento seguinte, o segundo projétil atingiu a montanha, na outra extremidade. Dessa vez os trilhos não foram tão castigados, mas muitas das rochas que rolaram acabaram obstruindo a passagem.
Enquanto nas Salas de Controle, operadores e homens da inteligência assistiam atônitos à cena, no Trem, a tripulação, se recuperando, iniciava o primeiro levantamento de danos e feridos e o Serviço de Segurança das autoridades se organizava para tentar evitar uma possível invasão. O pó e a fumaça das explosões ainda não havia se dissipado nas imagens dos telões, quando a voz de Komal voltou a soar:
— Então, senhores! Podemos negociar? — falou com sarcasmo. — Comecem a esvaziar Guantánamo ou vou enterrar de vez aquele trem!
— Vamos pegá-lo, Komal. Não duvide disso! — respondeu Ramiro.
— Antes esvazie aquela m… Você só tem alguns minutos!
Não havia mais dúvidas sobre a capacidade e as intenções de Komal, todos se surpreenderam com a precisão e violência do ataque. Os mísseis surgiram nas telas dos poderosos radares da Defesa Aérea, numa região de muitas ilhas, no Caribe. A suposta base de lançamento poderia estar em qualquer uma delas.
Imediatamente caças e helicópteros da Base Americana de Guantánamo, em Cuba, iniciaram uma varredura na região, enquanto outros sobrevoavam o território de Honduras e tropas já embarcavam para o local onde a composição estava parada.
***
O Trem das Américas, não é um trem comum, mas uma máquina fantástica, resultado de um audacioso projeto de engenharia desenvolvido por gênios da ciência das nações mais poderosas do Continente Americano: USA e Brasil.
Concepção de design futurista, capaz de alcançar velocidades inimagináveis para uma máquina de superfície. Como uma nave terrestre, o trem, sem rodas, flutua entre o que se pode chamar de trilhos: Uma estrutura de concreto e aço, com três vigas dispostas simetricamente a cento e vinte graus, unidas por círculos dos mesmos materiais, fortemente ancorados em distâncias que variam conforme a geografia do terreno e as curvas e retas ao longo do traçado. Equipamentos eletroeletrônicos de última geração, controlados por computadores moderníssimos, instalados no próprio trem e em estações remotas, produzem o campo magnético necessário para fazer a máquina funcionar. Os vagões platinados, de formato tubular, com três pistas, na mesma distância angular dos trilhos, se encaixam perfeitamente às vigas da estrutura e, assim como essas, possuem equipamentos semelhantes que se completam. Quando acionados em conjunto, esses equipamentos fazem o trem flutuar, acelerar de forma contínua e suave ou frear sem solavancos. O mesmo campo magnético que atrai seu semelhante, no momento seguinte inverte a polaridade para empurrá-lo, fazendo a composição deslocar tão rapidamente quanto maior for a força aplicada o sincronismo e a velocidade da alternância de polarização.
O interior dos vagões foi projetado para proporcionar aos passageiros o mesmo luxo e requinte das grandes aeronaves de propulsão a jato. Escotilhas herméticas, em nada lembram as grandes vidraças dos trens convencionais e a climatização, levemente pressurizada, proporciona conforto e silêncio. Além de flutuar entre os trilhos, a composição não tem motores de tração: é impulsionado por atração e repulsão magnética e desliza suavemente, sem contato mecânico, livre de quaisquer tipos de vibração.
O Consórcio US & B – Trem das Américas, um conglomerado das mais importantes empresas do ramo de transportes das Américas, é o resultado de exaustiva negociação abrangendo a diplomacia de todas as nações envolvidas.
Além de questões de ordem econômicas, barreiras políticas e ideológicas também tiveram de ser vencidas. Por fim, predominou o interesse comercial do Bloco das Américas que, pressionado pela globalização, na eminência de perder mercados, via no projeto um grande aliado para consolidação de suas economias.
Após a extensa bateria de testes, o trem iniciou sua primeira viagem, partindo de São Paulo. Fez uma rápida escala em Brasília, onde embarcou a comitiva de autoridades brasileiras. Poucas horas depois, após passar por Manaus, a composição deixou o território brasileiro e ingressou na Colômbia, atravessando a fronteira entre os dois países pela região conhecida como Cabeça de Cachorro. Entre passageiros e tripulantes, mais de uma centena de pessoas. Lotação muito aquém de sua capacidade, mas composta de autoridades, empresários, técnicos, artistas, notáveis da sociedade e jornalistas, muitos jornalistas. A grande mídia do Planeta estava ali representada. Entre as autoridades brasileiras, o próprio Presidente da República, alguns ministros, governadores e políticos. A cada parada, novos convidados se juntavam ao grupo de seletos passageiros. O Presidente Americano embarcaria em Ciudad de Panamá e a comitiva inaugural se completaria em Ciudad de México, de onde a composição seguiria, sem escalas, até Nova York.
A primeira parte da viagem transcorreu conforme planejada, sem sobressaltos. Embora o projeto fosse considerado totalmente seguro, praticamente à prova de ataques, havia preocupação com o trecho da América Central, onde a instabilidade política de alguns países produzia muita insegurança. Entretanto, o temor de que algo desse errado ainda durante a passagem pela Colômbia, não foi infundado:
***
No campo ondulado, o verde com matiz de vários tons compõe uma paisagem de rara beleza. O homem solitário que estacionou a camioneta na estrada de terra batida, a alguns metros da linha de transmissão de energia, poderia facilmente ser confundido com as centenas de outros camponeses que pararam seus afazeres para assistir, de longe, à passagem do magnífico trem que, reluzente, transpunha vales, campos e montanhas, como uma flecha platinada.
Assim que a composição desapareceu de sua vista, ele consultou o relógio e percebeu que perdera tempo demais, observando aquele trem. Demonstrando certo nervosismo, o homem retirou do veículo uma pequena mala, abriu-a para conferir o conteúdo, depois voltou a fechá-la e afastou-se da estrada procurando um lugar sob a linha de transmissão.
Quando julgou tê-lo encontrado vasculhou, com os olhos, todo o entorno para certificar-se de que poderia executar sua tarefa sem ser visto ou incomodado, só então, abriu a mala e começou a tirar dela alguns apetrechos: uma pequena marreta, hastes de metal, tesoura e rolos de fio muito delgados. Sempre consultando o relógio, ele começou a cravar as hastes no terreno, sob o curso dos cabos da rede elétrica. Feito isso, escolheu o carretel com um finíssimo fio de nylon, puxou a ponta e atou-a a uma pequena esfera de chumbo que, em seguida, atirou sobre os cabos de energia. Cuidadosamente ele calculou a distância da esfera, que ficara balançando suspensa pelo cabo superior, até o solo, ajustando-a conforme sua necessidade. Deu um nó de segurança, prendendo o fio à primeira haste, para sustentar temporariamente o conjunto, enquanto concluía o restante do serviço. De um segundo carretel o homem tirou o fio de cobre que passou por pequenos furos nas demais hastes que cravara alinhadas no sentido dos cabos. Amarrou firmemente na última e uniu os dois fios com um nó, formando uma única peça, ficando a parte de cobre em contato com a terra, nas hastes, e a outra, de material isolante, subindo até o cabo energizado onde o peso estava pendurado. Com ajuda da tesoura, cortou o nó de segurança que prendia o fio de nylon à primeira haste, liberando o peso que deslizou até tensionar o conjunto. Estava pronto o seu equipamento. Mais calmo, voltou a consultar o relógio e constatou que ainda lhe restavam alguns minutos.
***
Longe dali, na hidrelétrica construída pelo Consórcio para suprir a deficiência de energia daquele trecho, um operário deixa a Sala de Controle para verificar uma falha no sistema de comando remoto. Uma válvula equalizadora de pressão não funcionou impedindo a liberação de uma unidade geradora que estava em manutenção. Procedimento de rotina, pois mesmo nos projetos mais modernos, como o daquela usina, as falhas acontecem principalmente no estágio inicial da operação, que era o caso.
Levando na mão a pequena folha de papel com a sequencia das manobras que iria executar, o técnico desceu as dezenas de degraus da escada em caracol que o levaria à galeria de drenagem à jusante da casa de força, onde se localizavam os poços das válvulas. Com passadas largas percorreu os Salões dos Servomotores das Comportas de Fundo até chegar à cavidade da Unidade Geradora que estava parada. Desceu mais alguns degraus e caminhou pelo corredor estreito e úmido, desviando-se das gotas d’água que caiam do teto baixo. Ao chegar à borda do poço, parou um instante, ajustou os óculos e guardou a Ordem de Manobras no bolso da camisa, antes de encarar os dois lances da escada de marinheiro. Cuidadosamente, ele iniciou a descida. A umidade deixa os degraus de ferro escorregadios, o que aumenta o risco de acidentes.
Já no fundo, conferiu a identificação da válvula, abriu o cadeado e posicionou-se para iniciar seu trabalho. À sua volta, nas entranhas do concreto, a água rugia nos tubos de sucção das unidades vizinhas. Sem se importar com esses ruídos ou com as vibrações das estruturas, provocadas pelo giro das turbinas ao lado, ele agarrou-se com força ao volante e acionou a válvula. O barulho da água fluindo através da tubulação deu-lhe a entender que tudo estava normal, mas, repentinamente, um forte estalo seguido do ruído do tubo se partindo antecederam ao jato d’água que o atirou contra a parede. O impacto deixou-o atordoado. Tentou agarrar-se à escada, mas o redemoinho que se formou no ambiente reduzido, impedia qualquer movimento coordenado. Em segundos o poço transbordou e a água começou a se espalhar pela galeria. Então, ele se deixou levar pela correnteza ascendente desembaraçando-se dos degraus da escada como podia, até a borda do poço onde, com ajuda do corrimão, conseguiu ficar de pé. A água, no corredor, já atingia sua cintura quando ele venceu a pequena distância da cavidade que o levaria de volta aos grandes Salões dos Servomotores. Ainda confuso encharcado e com dificuldade para enxergar, devido à perda dos óculos, ele correu até o telefone mais próximo e pediu ajuda à Sala de Controle.
Imediatamente as equipes de manutenção foram acionadas. A água, agora, começava a inundar os Salões dos Servomotores das Comportas de Fundo. Nesse ambiente mais amplo a elevação do nível seria mais lenta, proporcionando tempo para raciocinar, apesar de ali ocorrerem, também, os primeiros danos.
Enquanto as equipes se deslocavam para o local, o Coordenador, na Sala de Controle determinou que fossem desligadas todas as alimentações elétricas da área. Isso minimizaria os estragos, evitando curtos-circuitos, mas os motores das bombas seriam irremediavelmente afetados em poucos minutos.
Tomadas as primeiras providências, o Coordenador da Sala de Controle também se dirigiu ao local, a fim de discutir com os encarregados de manutenção, as estratégias de ação.
A movimentação nervosa dos homens na superfície denunciava a gravidade da situação. Nos salões das comportas a água, embora num ritmo mais lento, subia inexoravelmente já tendo inundado as potentes bombas do Sistema de Drenagem, totalmente ineficazes num acidente dessas proporções. Logo seriam atingidos os motores das bombas de óleo dos servomecanismos e, em pouco tempo, através das janelas de passagem de cabos e tubulações, vazaria para a Galeria de Equipamentos Mecânicos, atingindo toda a Casa de Força.
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Sob a linha de transmissão, o homem da camioneta recebeu uma ligação pelo celular. O interlocutor, de voz grave, comunicou-lhe que o depósito estava preparado para receber a carga: era uma senha.
Imediatamente ele se dirigiu à última haste do grupo que cravara sob os cabos, onde atara o finíssimo fio de cobre e, com a tesoura, cortou-o. Puxado pelo peso que estava suspenso, o fio correu nos furos das hastes e subiu rumo à rede elétrica, mantendo contato com a terra. Quando estava prestes a terminar a parte de nylon do conjunto, antes de o peso atingir o solo, a aproximação da parte de cobre com o cabo energizado fez a corrente elétrica vencer a resistência e, com estrondo, saltar para o fio. Uma pequena e alongada nuvem de fumaça surgiu onde antes ele estivera. Enquanto a nuvem se dissipava ao vento, o homem recolheu tudo que restou e partiu em desabalada levantando pó na estradinha.
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Na Sala de Controle da hidrelétrica, a campainha de alerta soou, anunciando o desligamento da linha de transmissão que abastecia as Estações Conversoras do Trem. Um transtorno a mais, para quem já lutava contra a possibilidade de uma inundação e ainda tinha a responsabilidade de manter tudo funcionando para que a Composição, recheada de autoridades, na sua mais importante viagem, pudesse seguir seu curso.
Os monitores da Sala de Controle informavam que o desligamento da linha de transmissão fora provocado por uma grave falha para a terra, mas, felizmente, de caráter transitório. Analisando essas informações, o Coordenador autorizou o restabelecimento do Sistema e expediu ordem para que homens da equipe de manutenção percorressem o trecho da linha onde ocorrera a falha indicada pela Proteção, para verificar sua integridade. Imediatamente duas Plataformas Voadoras deixaram o pátio da hidrelétrica.
Assim como o Trem, as Plataformas Voadoras são, também, uma inovação tecnológica surgida da necessidade de um veículo de transporte pessoal rápido e eficaz, que pudesse transpor as dificuldades de acesso ao percurso dos trilhos: Acionados por um conjunto de três pequenos turbofans, dispostos simetricamente em uma estrutura circular, carenagem com desenho aerodinâmico e dutos para dar vazão ao fluxo de ar aspirado, tem em sua extremidade um anel metálico que além de dar sustentação ao conjunto, funciona como suporte do sistema de controle, flutuação e deslocamento. Sobre essa carenagem, um compartimento em forma de cesto acomoda o condutor que opera a plataforma através de um painel com pequenas alavancas, botões e indicadores.
A mobilidade e leveza desses veículos colocam-nos para o transporte aéreo assim como as motocicletas estão para o trânsito terrestre. Sua incrível capacidade de decolar e pousar em qualquer terreno, associando agilidade à possibilidade de voos em baixíssima altitude, torna-os indispensáveis ao projeto, assim, estão presentes em todas as instalações ao longo do percurso e, até no próprio Trem, como medida de segurança.
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O corte de energia era uma situação prevista no projeto do Trem. Isolado, esse fato não deveria trazer quaisquer transtornos ao prosseguimento da viagem e foi o que aconteceu. Os conjuntos de baterias supriram o sistema e os computadores fizeram a transferência de propulsão, acionando o potente turbofan instalado no vagão que fecha a composição. Com a perda do suprimento elétrico, o Trem perdeu, também, a flutuação magnética e, em seu lugar, um conjunto de esferas surgiu nas três pistas, se ajustaram às estruturas dos trilhos e o comboio passou a deslizar como um enorme rolamento linear.
Enquanto a estação remota de monitoramento e rastreamento do Trem, em São Paulo, recebia detalhes das ocorrências com a hidrelétrica e com a linha de transmissão de energia, outro telefone tocou. Um operador atendeu e o interlocutor de voz grave e pausada pediu para ser atendido pelo Chefe de Operações. Irritado com a chamada naquele momento, o operador, com um sinal, transferiu a ligação para a mesa do superior.
— Pois não! Aqui é o Engº Ramiro. Por favor, seja breve, estamos com uma ocorrência.
— Eu sei – respondeu a voz. – Ouça com atenção, pois não costumo repetir! O desligamento da linha de energia e o rompimento da válvula, na hidrelétrica, não foram acidentais. Informe isso aos seus superiores. Ligo mais tarde.
— Alô, quem está falando? – mesmo ouvindo o ruído de ligação desfeita, Ramiro insistiu, na vã tentativa de identificar seu interlocutor. – Alô, alô, quem esta falando...
Ramiro era um homem preparado. Sabia reconhecer um momento crítico. E esse era o tipo de telefonema que ele gostaria de não ter atendido. Por isso, não perdeu tempo. Imediatamente informou ao chefe de operações no outro extremo dos trilhos, em Nova York, e, em seguida, a direção do Consórcio US & B Trem das Américas, no Brasil. Logo uma agitação nervosa tomou conta das Salas de Operações, no Brasil e nos Estados Unidos.
***
Na hidrelétrica, enquanto os técnicos preparavam as ações para estancamento, o tubo rompido despejava água aos borbotões, colocando em risco todas as instalações da usina. Por prevenção, as estações remotas foram notificadas da possibilidade de desligamento total da Hidrelétrica, em emergência, caso o vazamento não fosse contido. Após consultar as plantas do projeto, o Coordenador da Sala de Controle deu as ordens:
— Tragam algumas lonas, barras de cano, pesos, cordas e um guindaste!
Nos Salões dos Servomotores a água continuava subindo. Mais alguns minutos e as janelas de interligação com a Casa de Máquinas seriam atingidas. Na Sala de Controle iniciavam-se os preparativos para desligar toda a Usina.
Quando o material solicitado chegou, o Coordenador mandou que amarrassem as lonas umas sobre as outras, formando uma espessa bandeira. Depois, prendeu o cano do lado superior e os pesos do inferior. Com o guindaste o conjunto foi içado, sendo guiado pelas cordas, então, mandou baixar tudo a alguns metros do ponto onde a boca do tubo estava submersa. Quando se certificou de que estava no nível correto, mandou puxar de encontro ao concreto.
Colada ao parapeito tubular, a pequena plateia observava a manobra com apreensão. Ao aproximar-se da zona de sucção o conjunto oscilou fortemente e colou-se com um tremendo impacto à boca do tubo. Nos salões, para alívio geral, a água parou de subir.
***
— Sobre vales profundos, construímos magníficos elevados. Para transpor os montes, perfuramos suas entranhas... — discorria o técnico do Consórcio US & B Trem das Américas, ao grupo de repórteres que cobria a viagem. — Nosso Trem é uma máquina perfeita. Confortável, veloz e, acima de tudo, segura...
A empolgação do técnico tinha motivos. O projeto do Trem das Américas foi criterioso. Todas as possibilidades foram pensadas e minuciosamente testadas à exaustão. Nenhum detalhe foi esquecido.
Nesse momento o Comandante da Composição apareceu nos monitores do sistema de Comunicação Interna e anunciou a mudança no modo de propulsão do Trem. A falha no suprimento de energia, provocada pelo desligamento da linha de transmissão, sequer fora notada. Apenas o leve ruído das esferas de rolamento, tocando as pistas dos trilhos, anunciava aos ouvidos mais atentos essa nova condição.
— Não há nada de anormal – mentiu o técnico aos repórteres. — A mudança no modo de propulsão foi efetuada como demonstração. O pior que pode acontecer com esta máquina é simplesmente parar. Sair dos trilhos é impossível!
Havia poucos minutos que o Trem deixara o território colombiano, onde estava a hidrelétrica, aproximando-se rapidamente de Ciudad de Panamá, para receber seus mais ilustres convidados.
***
A Direção do Consórcio US & B Trem das Américas foi informada, nos dois extremos dos trilhos, do teor da conversa que Ramiro tivera com o desconhecido de voz grave e pausada. Após uma rápida videoconferência, os empresários optaram por aguardar uma nova ligação do homem misterioso. Ramiro, no Brasil, e Robert, o Chefe de Operações em Nova York, receberam ordens para seguir o programa de viagem e informar quaisquer novas ocorrências.
Ramiro argumentou com veemência, alegando que ainda havia tempo para evitar o embarque do Presidente Americano, mas o diretor foi enfático. Não iria comprometer o brilho de uma festa daquelas proporções, por uma ligação que poderia, perfeitamente, ser apenas um blefe.
Deixando para trás a região de Lago Bayano, já com o sistema de propulsão eletromagnética restabelecido, o Trem cruzou o Canal do Panamá, em velocidade reduzida, para, em seguida, fazer escala em Ciudad de Panamá, sendo recebido com festa pelos panamenhos.
A passagem dos trilhos nessa região revestiu-se de grande importância, Um Centro de Manutenção e Controle foi construído. Equipado com oficina mecatrônica e base de plataformas voadoras, com técnicos de alto padrão, aptos a atender todas as necessidades dos trens. O tráfego previsto no projeto era intenso, dezenas de composições diárias nos dois sentidos e os trilhos, em mão dupla, operando em circuito fechado como um anel. Certamente aquele centro de manutenção, aumentaria muito a notoriedade internacional do local, já evidenciada pelo Canal do Panamá, estrategicamente localizado, unindo diferentes regiões do planeta.
O embarque foi rápido e logo o Trem seguiu seu destino. A composição mal havia deixado os arredores da cidade quando o telefone voltou a chamar, na mesa de Ramiro. O Chefe de Operações, em São Paulo, atendeu e antes mesmo de ele falar qualquer coisa, a voz grave e pausada se antecipou:
— Já podemos conversar! A direção do Consórcio está na sala?
— Sim, há Diretores na sala. Com quem estou falando?
— Saber meu nome tem pouca relevância, Ramiro. Mas, se lhe agrada, pode me chamar de Komal – respondeu o homem, delicadamente. – Vamos ser objetivos: para começarmos a nos entender, diga aos seus diretores que o Governo dos Estados Unidos mantém prisioneiros alguns amigos que pretendo libertar e para isso vou precisar da ajuda deles. Preciso desligar. Tenho algumas ordens para dar.
A agitação cresceu nas Salas de Operações. Os temores de Ramiro não eram infundados. Aquele homem não estava blefando! A constatação desse fato criou um clima de desconforto e apreensão: que ordens ele daria? O telefone voltou a tocar, aumentando a tensão. Ao ouvir a voz do outro lado, Ramiro disse em tom tenso, mas controlado:
— Carla! É bom falar com você. Mas não agora, estou com problemas. Ligue mais tarde.
— Esse trem é mesmo uma maravilha! Tudo bem ligo depois.
— O que disse? Onde você esta?
— No Trem, ora essa!
— Como no Trem?
— Ora Chefe de Operações, consulte seu controle de embarque – brincou ela.
— Tudo bem, conversamos mais tarde – encerrou ele.
A jornalista Carla Assumpção, namorada de Ramiro, trabalhava para o diário de maior circulação na America do Sul em São Paulo e desde quando tomara conhecimento do projeto acompanhava sua evolução. Fez tudo para estar na equipe que cobriria a viagem inaugural do Trem das Américas, mas sem motivo aparente, seu chefe escalara outro profissional. Só no último momento o homem voltou atrás e incluiu-a. Daí a surpresa de Ramiro.
***
Se nas Salas de Operações a tensão aumentava, no Trem o clima era tranquilo. Viajando com todo conforto, as autoridades aproveitavam o tempo despachando com seus assessores, enquanto outros convidados se entretinham em proveitosas conversas.
Entretanto essa tranquilidade não duraria. Ramiro mal terminara de falar com Carla e sua atenção já era solicitada junto aos monitores de rastreamento remoto:
— Veja Chefe: o Sistema firing da próxima casa de força não esta respondendo aos testes de pré-ignição e os computadores acusam falha no Banco de Thyristores PA64 — informou o operador.
A atração e repulsão magnética que desloca o trem, para funcionar corretamente exige precisão no momento de energização e inversão de polaridade nas bobinas que geram o campo magnético necessário. Em um momento polos magnéticos diferentes se atraem e, já no instante seguinte, ocorre a inversão. As mesmas bobinas produzem polos iguais que se repelem. Para garantir essa precisão, equipamentos sofisticados trabalham em sincronia, unindo eletrônica e ótica, eletricidade e luz, tudo controlado por poderosos processadores: o Sistema Firing. O sinal elétrico emitido por esse sistema é transformado em luz e conduzido por fibras óticas, até o local de destino, onde novamente são convertidos em eletricidade. O Thyristor, um semicondutor que necessita de estímulo para conduzir, recebe o impulso em seu gatilho e dispara o equipamento principal, energizando as bobinas que movimentam o trem da forma correta e no momento exato, alterando o fluxo da corrente elétrica em milésimos de segundo.
Grandes distâncias podem provocar um lapso de tempo, mesmo para quem viaja à velocidade da luz, caso dos sinais de controle dos thyristores. Para minimizar esse efeito, o percurso dos trilhos foi dividido em setores, com dezenas de casas de força que assumem automaticamente o controle de sua área assim que o trem se aproxima, num efeito dominó, coordenado e monitorado permanentemente pelas estações remotas. Assim, a falha do Banco de Thyristores PA64, mesmo antes de o trem entrar em sua área, foi detectada e anunciada: um problema a mais para os chefes de operação do Consórcio US & B Trem das Américas.
— Temos imagem em tempo real do PA64? — indagou Ramiro ao Operador.
— Claro Chefe.
— Coloque no monitor central.
Logo as imagens foram selecionadas. Ramiro e os diretores do Consórcio não gostaram nada do que viram no monitor.
— Esta vendo isso Robert? — perguntou Ramiro ao colega, no outro extremo dos trilhos.
— Sim — respondeu o americano com apreensão. — Temos problemas!
As imagens mostravam um longo trecho de trilhos e em alguns pontos podia se notar, claramente, pequenos tufos de fumaça se dispersando com a brisa.
— Trabalho de profissional — comentou Robert. — Curto circuito nos terminais de controle dos thyristores.
— Então eram essas as ordens do cretino — desabafou Ramiro.
Mal concluíram o rápido diálogo e a voz pausada de Komal soou nos alto-falantes da Sala de Controle, transferida da ligação telefônica:
— Desculpe se interrompi, mas precisava que vissem aquilo.
— Tudo bem Komal! Não precisamos de mais demonstrações. O que você quer?
— Vamos começar por Guantánamo. Aquele inferno deve ser fechado e todos os prisioneiros postos em liberdade.
— Ou então...? — ironizou Ramiro.
— Não brinque comigo, Chefinho — advertiu Komal. —Sabe que posso pegar seus passageiros...
Guantánamo, província cubana localizada a sudeste da Ilha, é conhecida no mundo inteiro pela beleza de sua música campesina a guajira, que tem na canção La Guantanamera, extraída dos Versos Sencillos, de Jose Marti, sua expoente mais significativa. Guantánamo é igualmente conhecida pela Base Naval de mesmo nome que os Estados Unidos da América mantêm na Província, em terras arrendadas do Governo Cubano. Entretanto o terrorista se referia ao questionável campo prisional existente na Base, onde se acredita que atrocidades são cometidas à revelia da Convenção de Genebra e sem conhecimento dos demais órgãos de defesa de prisioneiros do mundo.
— Fechar Guantánamo é uma decisão do Governo Americano. Não é de nossa alçada — respondeu Ramiro.
— A segurança dos presidentes de varias nações do continente americano, nesse momento, é responsabilidade de seu Consórcio. Portanto trate de negociar. Seu trem viaja muito rápido, não temos muito tempo! Ligo em alguns minutos.
***
Imediatamente os Chefes de Operações das Salas de Controle em São Paulo e Nova York expediam as primeiras ordens às estações intermediarias:
— Todas as plataformas voadoras disponíveis devem partir em inspeção dos trilhos! Veículos, pessoas, situações que despertem suspeita, tudo deve ser relatado. A inspeção deve estar à frente da composição pelo menos 30 minutos.
O Trem, nesse momento, aproximava-se da fronteira entre Panamá e Costa Rica e logo entraria na área do banco de thyristores afetado. Os danos causados pelo curto circuito no sistema de controle não impedia a passagem da composição. Contudo a propulsão a jato teria, forçosamente, de ser acionada. Na primeira vez que isso ocorreu, quando houve a falha da linha de transmissão de energia da hidrelétrica, não foi difícil esconder dos passageiros que alguma coisa havia dado errado, mas uma nova transferência do modo de propulsão certamente seria notada e explicações teriam de ser dadas.
Através das escotilhas os passageiros podiam ver, de um lado, as ondulações verdes em suave declive terminarem no azul do Pacífico e, de outro, o majestoso pico do Volcán Barú recortado entre nuvens escuras, prenunciando tempestade. A calmaria e a tormenta anunciada.
Os diretores do Consórcio US & B optaram por comunicar as ameaças de Komal ao seu Diretor Presidente, que acompanhava os convidados na viagem, e, deixar para ele a decisão de informar os serviços de inteligência e informação do Brasil e dos Estados Unidos da América. O homem esbravejou muito, mas, diante da gravidade da situação, optou por relatar às autoridades a sequencia de ocorrências, as ameaças e as exigências do terrorista.
***
Relatos das plataformas voadoras que faziam a inspeção à frente do trem começaram a chegar às estações de controle. Atitudes suspeitas, consideradas de alguma relevância eram informadas às Salas de Operações, em São Paulo e Nova York. Contudo a maioria se referia a fatos corriqueiros. Tudo aparentemente normal: Camponeses a pé ou em carroças, um ou outro veículo carregado com produtos do campo, enfim, nada que representasse algum risco ou que justificasse uma abordagem.
Diferentemente dos contatos anteriores, feitos com Ramiro, no Brasil, Komal ligou para Robert, em Nova York.
— A prisão de Guantánamo precisa ser fechada. Mas não é tudo: há, também, o Afeganistão. Entretanto vamos por etapa. Primeiro negociamos Cuba, vou lhes dar um quarto de hora. Mais que isso é impossível, esse trem é muito veloz! Ao final desse tempo volto a ligar, se a proposta não me parecer boa... — Desligou.
Assim que o aparelho foi desligado, o chefe do Serviço de Inteligência, que já se encontrava na Sala de Operações, consultou o agente que operava o equipamento de rastreamento de chamadas telefônicas:
— Localizou a ligação?
— Sim, ela partiu da região de San Francisco, na Califórnia.
— Vamos ver se ele vai ter tempo para cumprir suas ameaças!
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Ao entrar na zona do PA64, a propulsão a jato foi acionada e, como já se esperava repórteres e autoridades, agora sabendo a diferença entre os sistemas, procuraram se informar dos motivos dessa transferência. Para manter o clima de tranquilidade o Comandante, através dos monitores de vídeo, informou a todos que se tratava apenas de uma perda transitória de comunicação.
Deixando para trás as planícies do Panamá, o Trem entrou em Costa Rica pela região a sudoeste de Rio Sereno. A transposição da fronteira mudou, também, a formação do terreno, de elevações e vales suaves, para uma área de relevo mais acentuado. Para não alarmar os viajantes, apenas as principais autoridades foram informadas das exigências de Komal. Enquanto os Serviços de Inteligência agiam em terra, a segurança embarcada, discretamente, assumia posições estratégicas.
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O rastreador de chamadas telefônicas, quando confrontado com o mapa da região metropolitana de San Francisco indicou, com precisão, a localidade de San Leandro, do outro lado da Baia, como sendo o local de origem da ligação de Komal.
Partindo da área central da cidade, as viaturas da Polícia Especial cruzaram a Baia de San Francisco pela San Mateo Bridge, numa corrida frenética, para chegar ao ponto indicado no limite do tempo especificado pelo terrorista. Ao se aproximar da casa o forte aparato policial cercou-a, estranhando o excesso de calma no local. A residência era bonita, recém-pintada e se encontrava completamente fechada. No jardim algumas folhas secas sobre o gramado e uma pequena tabuleta com os dizeres “for sale” indicavam que ela estava desabitada.
Sem tempo para mais averiguações, o comandante da guarnição ordenou a invasão do imóvel, o que foi feito sem dificuldade. No interior, totalmente vazio, os homens da Polícia Especial agiram rápidos e constataram que o sistema de rastreamento de chamadas operara corretamente: em um dos cômodos encontraram uma pequena central telefônica automática que desviou a chamada feita de outro local, dando-lhe aquela origem.
Pelo relógio da Sala de Operações do Consórcio US & B, em São Paulo, operadores, diretores e os homens do Serviço de Inteligência viram o tempo esvair-se. Ainda faltavam alguns segundos para terminar o prazo dado por Komal, quando Robert comunicou o fracasso da operação policial em San Francisco.
Pontualmente ao fim do quarto de hora prometido o terrorista ligou, dessa vez, para Ramiro.
— Idiotas! Tomam-me por imbecil? Espero que tenham uma boa proposta.
— Não temos proposta alguma. Não reconhecemos suas reivindicações nem negociamos com terroristas — endureceu Ramiro.
— Terrorista ou não, esta é uma questão de ponto de vista. Depende, apenas, de que lado você está. Não me considero terrorista! Tão pouco sou um soldado. Soldados lutam por obediência. Eu luto por uma causa, um ideal. É uma pena que não tenham uma proposta. Poderíamos resolver isso de outra forma, mas vejo que terei de usar argumentos mais convincentes.
— Use os argumentos que quiser, mas lembre-se, vamos pega-lo!
— Rastreando chamadas? Duvido — desligou.
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O Rio Grande de Térraba, significativo potencial hídrico de Costa Rica, percorre a Província de Puntarenas, descrevendo uma imensa e sinuosa curva, buscando as terras baixas da Província, na costa ocidental do País, já próximo ao delta no Oceano Pacífico. Terras férteis, onde se concentra grande parte da produção agrícola da Província. Região pontilhada de pequenas e bucólicas cidades. Em Palmar Sur, território das misteriosas esferas de pedra pré-colombianas, objetos muito antigos que variam de alguns centímetros a mais de dois metros de diâmetro e que ninguém sabe ao certo quem as fez e porque foram feitas, a passagem do Trem das Américas proporciona um inusitado encontro entre passado e futuro: Exposta sobre um pequeno trecho de trilhos enferrujados, em um parque público da cidade, a velha 84 dos “tren bananero”, locomotiva a vapor que a muito deixou de circular, mas que por longo período foi expressão máxima de progresso no mundo, pode ser contemplada a pouca distância dos trilhos tríplices. Passado e presente. Evolução e tecnologia.
Após transpor o vale do Térraba, o Trem volta a ganhar altitude, para chegar a San Jose, já acima de mil metros.
— Temos a origem dessa chamada? — indagou o agente brasileiro.
— Partiu de Foz do Iguaçu, região da Tríplice Fronteira Brasil, Paraguai e Argentina — informou o operador do rastreador.
— Mande investigar.
A curta distância entre o vale do Grande Térraba e a capital de Costa Rica, apesar do terreno acidentado, não consumia mais que alguns minutos da viagem. Como não havia escala programada para San Jose, os comandos dos Serviços de Inteligência brasileira e americana, em ação conjunta, passaram a planejar um arriscado resgate de suas autoridades, envolvendo uma rápida parada da composição e ação de forças militares costarriquenhas. Todavia a ação teve de ser abortada, em função do tempo de mobilização dessas forças. Uma ação dessa grandeza requer planejamento e grande contingente de homens e equipamentos. Qualquer falha pode transformá-la em um desastre de consequências imprevisíveis. O Trem em movimento, a 1200 Km/h, era opção mais segura.
A posição firme de Ramiro, o negociador brasileiro, culminou com a mudança de estratégia do terrorista. Breve o Trem deixaria a prosperidade costarriquenha para entrar na zona de instabilidade política da América Central, local apropriado para ações efetivas.
— Pode me explicar o que está ocorrendo?
— Carla! Sim, já podemos conversar — consentiu Ramiro, com um sorriso, ao reconhecer a voz da namorada. — Porem o que vou lhe dizer não é uma informação para a imprensa.
— Como assim? É algo com o Trem?
— Não é propriamente com o Trem, mas tem a ver com ele...
Ramiro interrompeu a conversa. No sistema de comunicação da Sala de Operações, a voz de Komal exigia sua atenção.
— Não vai negociar Chefe de Operações? Pois bem, vou parar o seu trem!
Ramiro sentiu, nas palavras do terrorista, não uma ameaça, mas a firmeza de uma decisão. Todavia, parar aquele trem não era tarefa fácil. As plataformas voadoras continuavam seu trabalho de inspeção dos trilhos e até aquele momento nada de anormal havia sido relatado, o que significava que o ataque, caso se confirmasse, não viria de terra. Com a velocidade de cruzeiro em torno de 1200 Km/h, só uma arma aérea poderia alcançá-lo. Não era do conhecimento dos serviços de inteligência que alguma organização terrorista tivesse tais armas. E, se tivessem de onde seriam lançadas?
Todo o sistema de monitoramento via satélite do Consórcio US & B foi colocado em alerta, assim como, os potentes radares de vigilância aérea das forças militares do Brasil e dos Estados Unidos da América foram reorientados para cobrir a região por onde o trem trafegava.
Passando ao largo de San Jose, a composição iniciou uma forte descida, saindo do Planalto Central costarriquenho, com altitude acima de 1200m, para, rapidamente, chegar à fronteira com a Nicarágua, abaixo dos 100m e seguir ao longe pela margem oriental do lago homônimo ao país.
Estranhamente Komal deu uma trégua em suas ligações. Essa interrupção trouxe muita apreensão para os negociadores do Consórcio US & B: qual seria a próxima ação do terror? A resposta veio na chamada de uma estação remota da região de Juigalpa.
— O Banco de Thyristores NI23 não está respondendo aos testes de pré-ignição — anunciou o operador da estação.
— O que está ocorrendo? Faça um rastreamento detalhado da área e mantenha-nos informados — ordenou Ramiro.
As extensas planícies da margem oriental do Lago Nicarágua, na divisa dos departamentos de Río San Juan e Chontales, intercalam áreas agricultáveis e grandes espaços de terra em estado selvagem, contudo o que chama a atenção dos viajantes do Trem das Américas é a deslumbrante vista dos vulcões Madera e Concepción, ambos na Isla de Ometepe no Lago Nicarágua.
— Os testes preliminares indicam que o Sistema Firing desse Banco de Tyristores enlouqueceu. Os disparos estão acontecendo de forma completamente desordenada — informou o operador da estação remota.
— Substitua o computador principal — ordenou o Chefe de Operações, em São Paulo.
— Já fiz isso, Chefe. O Sistema continua maluco, mas os computadores estão funcionando normalmente, quando desconectados.
— Ouviu isso, Robert? — Perguntou Ramiro ao Chefe de Operações de Nova York.
— Claro Ramiro. Tudo indica problemas com os Thyristores.
— Tenho minhas dúvidas Robert. O relatório da proteção mostra falha intermitente e transitória. É pouco provável que ocorra o mesmo tipo de falha em tantos equipamentos.
— Cabos e fibras óticas, então?
— Sim, as probabilidades são grandes! Já testou a continuidade do cabeamento? — perguntou Ramiro ao operador da estação remota.
— A continuidade está perfeita, Chefe!
— E o localizador de curtos-circuitos?
— Estamos providenciando. Assim que obtivermos os resultados, informo.
Antes de o operador retornar com os resultados dos testes com o localizador de curtos-circuitos, um técnico a bordo de uma plataforma voadora que fazia inspeção nos trilhos informou, através do sistema de comunicação, que uma das caixas de passagem de cabos havia sido violada.
Os cabos de suprimento de força e controle do trem acompanham os trilhos em dutos subterrâneos e as caixas de passagem são pontos de inspeção e acesso a esses cabos. Como são os locais mais vulneráveis do sistema, as caixas são herméticas, trancadas a chave e monitoradas por um sistema de alarmes. O arrombamento da caixa foi executado por pessoa com alto nível de conhecimento, os alarmes foram neutralizados por isso não dispararam.
— O localizador de curtos-circuitos confirma danos nessa caixa — informou o operador da estação remota.
O técnico que fazia a inspeção pousou a plataforma voadora ao lado da caixa e desceu ao seu interior. A princípio nada de anormal foi notado.
— Não há sinais de curto-circuito — informou pelo comunicador.
— Alguma coisa está errada com essa caixa. Procure com atenção. O problema, certamente, está nos cabos de controle. Se fossem nos cabos de força obviamente já teria notado, pois o rombo seria maior — comentou Ramiro.
Os cabos de força transportam a energia e alimentam as bobinas que geram os campos magnéticos que movem o trem. Por isso, operam em tensão mais alta. Provocar um curto-circuito nesses cabos, em um local tão restrito, é muito perigoso. O que não ocorre com os cabos de controle, que operam em nível de tensão mais baixo e são, em sua maioria, constituídos de fibras óticas, que não oferecem riscos. Seguindo as orientações do Chefe de Operações o técnico passou a fazer uma verificação detalhada nesses cabos. Tudo parecia normal, mas um pequeno ferimento, quase imperceptível, na cobertura plástica de um dos cabos de controle, chamou sua atenção.
— Achei Chefe — comunicou o técnico com voz triunfante.— Obra de mestre! Só vendo para crer.
Muitas vezes os serviços de inteligência das organizações e, até de nações, preparam suas defesas com grandes aparatos bélicos, esperando ser atacados por foguetes e bombas. Todavia acabam surpreendidos por coisas simples como uma tesoura, estiletes, um prego ou até inofensivos rolos de fio, como no caso da interrupção de energia, provocada por Komal, na linha de transmissão da hidrelétrica do Consórcio US & B.
Dessa vez não foi diferente. Exibindo um delgado e diminuto prego que fora cravado no cabo, até sumir totalmente sob a camada de plástico que envolve e protege seus componentes, o técnico explicou ao Chefe de Operações o que havia encontrado.
O inocente preguinho não era suficiente para romper os fios internos, mas ligava eletricamente uns aos outros, o que impedia os computadores de funcionar corretamente, tendo como consequência o desordenamento de disparo do Sistema Firing. O sistema de flutuação magnética do trem funciona em conjunto com as bobinas que produzem os campos de atração e repulsão que impulsiona o comboio, portanto, os Tyristores precisam ser disparados no momento exato, seguindo a ordem cronológica na direção do movimento. Sem isso não há deslocamento.
***
Pelo tempo decorrido entre o anuncio da falha nos testes de pré-ignição do Banco de Thyristores NI23 até a localização da falha, pelo técnico, Robert, o Chefe de Operações de Nova York, deduziu que o invasor da Caixa de Passagem ainda estaria na região. Várias Plataformas Voadoras foram enviadas para vasculhar as redondezas, em busca de pistas do suposto agente do terror.
Na região predominantemente agrícola era comum o tráfego de pequenos veículos, carregados com os produtos das fazendas sendo transportados para os centros comerciais. Seria muito difícil identificar entre tantas inocentes caminhonetas usadas pelos verdadeiros camponeses, aquela que estava a serviço dos homens de Komal, se não fosse por um pequeno detalhe que chamou a atenção do técnico a bordo da Plataforma Voadora: A velocidade de um deles, destoante dos demais. Levantando pó na estradinha de terra batida a caminhoneta, com a caçamba coberta por lona, seguia em disparada, com a pressa de quem empreendia uma fuga. Pelo rádio da Plataforma, o técnico comunicou o fato e recebeu ordens para acompanhar o veículo, mas aguardar reforços antes de abordar. Outras plataformas já se aproximavam ao longe, quando o motorista, percebendo que era seguido, num ato inesperado, parou o veículo, saltou empunhando uma bazuca e disparou contra a plataforma que, atingida em cheio, explodiu numa bola de fogo.
Antes de o homem recarregar a arma, em ação rápida, os ocupantes das quatro primeiras plataformas que chegaram ao local se anteciparam e dominaram-no. O que ninguém esperava era que houvesse um segundo homem escondido na cabine do veículo e, muito menos, pela reação dele. De arma em punho, o terrorista apareceu atirando desesperadamente.
Na fração de segundo seguinte, dois corpos jaziam no solo: o terrorista armado e um dos agentes de segurança do Consórcio US & B. Com a situação novamente dominada, os homens das plataformas voadoras voltaram sua atenção para o prisioneiro. Entretanto, antes que eles o alcançassem, o homem atirou-se ao solo e, num ato desesperado, tomou da arma do companheiro e disparou contra a própria cabeça.
Ato lamentável, pois se fosse levado prisioneiro, poderia ser interrogado e possivelmente contribuir para a localização de Komal.
***
Enquanto os passageiros apreciavam a paisagem, Carla circulava pelo trem, observando o comportamento das pessoas. As informações de Ramiro aguçaram seus sentidos e sob essa ótica ela já conseguia identificar ações que antes lhe passariam despercebidas. Pelo menos três pessoas, dois homens e uma mulher, que apesar de integrarem comitivas diferentes, trocavam olhares sutis, que não escaparam da perspicácia da repórter.
— Há infiltrados, entre os convidados — informou Carla, quando Ramiro atendeu sua ligação.
— Cuidado. Não quero que se exponha!
— Fique tranquilo! Sei me cuidar.
— Quantos conseguiu identificar?
— Até o momento, desconfio de três: dois homens e uma mulher.
— Não faça nada. Eles são perigosos.
— Sossegue Ramiro. Não sou uma iniciante!
Mais uma vez, o modo de propulsão do trem foi transferido para o sistema a jato. O banco de Tyristores com o cabo danificado estava próximo e o reparo ia demorar horas. Nas Salas de Controle de São Paulo e Nova Iorque, Os chefes de operações mantinham contato permanente, fazendo a interface dos homens da inteligência americana com os brasileiros, definindo que ações seriam praticadas, em caso de um ataque efetivo.
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A localização do equipamento de desvio de chamadas, em Foz do Iguaçu, na tríplice fronteira Brasil, Argentina e Paraguai, também só confirmou o que todos já sabiam: o rastreamento de chamadas telefônicas era totalmente ineficiente neste caso. A evolução tecnológica, disponibilizada a qualquer cidadão, facilitava a ação dos terroristas.
O Trem já havia deixado a Nicarágua e viajava a oeste de Tegucigalpa, em Honduras, na região de Lempire. O traçado dos trilhos não contemplava, diretamente, as capitais de Honduras e El Salvador. Por questões técnicas e, para não prejudicar o andamento da viagem, as paradas teriam de manter certo limite de distância. Como Tegucigalpa e San Salvador estão relativamente perto, considerando a velocidade de cruzeiro do trem, optou-se por uma parada única, que contemplasse as duas cidades. O terreno acidentado da América Central exigiu do projeto a construção de vários túneis e elevados. No momento a composição transpunha uma cadeia de montanhas para, em seguida, chegar a um extenso vale, onde o trem poderia ser monitorado sem obstáculos.
As últimas palavras de Komal faziam eco no cérebro de Ramiro: — Vou parar o seu trem! — Ameaçara o terrorista.
O Chefe de Operações brasileiro não acreditara que tal proeza pudesse ser realizada. Ainda sob o impacto das cenas do ataque, mostradas no telão, Ramiro ouviu a voz desafiante de Komal:
— Então, vamos negociar?
— Sem negociação, Komal. Vamos pegá-lo.
— Sua condição não lhe permite fazer ameaças, chefinho. Seus passageiros estão em minhas mãos.
— O Trem esta seguro, fora do alcance de seus mísseis.
— Mas não fora do alcance de meus homens. Fique sabendo, Eng. Ramiro, a decisão de parar o trem naquele túnel foi minha! Você apenas foi previsível e agiu conforme minha vontade.
— Maldito! Eu juro que vou pegá-lo — desabafou Ramiro, desferindo um soco na mesa.
 
(Fim do primeiro capítulo.)